Na casa na Rua Arthur Barbosa,
em Petrópolis,
funcionava aparelho clandestino do Centro de
Informações do
Exército (CIE)
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RIO — Depois de cinco horas de
conversa, o velho oficial estava livre de um dos mais bem guardados segredos do
regime militar: o propósito e a rotina do aparelho clandestino mantido nos anos
1970 pelo Centro de Informações do Exército (CIE) em Petrópolis, conhecido na
literatura dos anos de chumbo como “Casa da Morte”, onde podem ter sido
executados pelo menos 22 presos políticos. Passados quase 40 anos, um dos
agentes que atuaram na casa, o tenente-coronel reformado Paulo Malhães, de 74
anos, o “Doutor Pablo” dos porões, quebrou o silêncio sobre o assunto.
No jargão do regime, revelou
Malhães, a casa era chamada de centro de conveniência e servia para pressionar
os presos a mudar de lado e virar informantes infiltrados, ou RX, outra gíria
dos agentes. O oficial não usa a palavra tortura, mas deixa clara a crueldade
dos métodos usados para convencer os presos:
— Para virar alguém, tinha que
destruir convicções sobre comunismo. Em geral no papo, quase todos os meus
viraram. Claro que a gente dava sustos, e o susto era sempre a morte. A casa de
Petrópolis era para isso. Uma casa de conveniência, como a gente chamava.
As equipes do CIE, afirmou,
trabalhavam individualmente, cada qual levando o seu preso, com o objetivo de
cooptá-lo. O oficial disse que a libertação de Inês Etienne Romeu, a única
presa sobrevivente da casa, foi um erro dos agentes, que teriam sido enganados
por ela, acreditando que aceitara a condição de infiltrada.
Malhães só não contou o que era
feito com os que resistiram à pressão para trair. Diante da pergunta, ficou em
silêncio e, em seguida, lembrou que nada na casa de Petrópolis era feito à
revelia dos superiores. As equipes relatavam e esperavam pela voz do comando:
— Se era o fim da linha? Podia
ser, mas não era ali que determinava.
Até terça-feira, quando o
militar abriu a porteira do sítio na Baixada Fluminense aos repórteres, nenhum
dos agentes da casa havia falado sobre ela. O que se sabia era o testemunho de
Inês Etienne, colhido em 1971 mas só divulgado em 1979, após o período em que
cumpriu pena por envolvimento com a guerrilha da VAR-Palmares. Outras
referências ao local apareceram em entrevistas e livros de colaboradores do
regime, como o oficial médico Amilcar Lobo, o sargento Marival Chaves (CIE-DF)
e o delegado da Polícia capixaba Cláudio Guerra.
Sentado ao lado da mulher no
alpendre da casa maltratada pelo tempo, Malhães revelou que já pertencia ao
Movimento Anticomunista (MAC) quando ingressou nos quadros da repressão. Sua
ascensão, iniciada com um curso de técnicas para abrir cadeados, fazer escuta,
aprender a seguir pessoas, foi rápida. Após o golpe militar, passou pela 2
Seção (Informações) e pelo Destacamento de Operações de Informações (DOI) do I
Exército (RJ) antes de ingressar no Centro de Informações do Exército (CIE),
onde passou a perseguir as organizações da luta armada pelo país.
Torturador da Casa da Morte se aliou ao PCdoB na Baixada
Fama de
justiceiro deu ao oficial uma suplência na Câmara de Nova Iguaçu
Paulo Malhães, o oficial do
Exército que atuou na Casa da Morte e na repressão à Guerrilha do Araguaia, foi
candidato a vereador nas eleições de 2000, em Nova Iguaçu, pela coligação
“Frente Democrática”. Além do PDT, partido ao qual era filiado, faziam parte da
aliança o PV e o PCdoB, o mesmo partido que deflagrou a guerrilha e foi
duramente combatido por Malhães. O oficial recebeu 1.432 votos (0,41% do total)
e ficou na suplência graças à fama de justiceiro que o popularizou em sua
comunidade.
Malhães fala hoje da ameaça
comunista como se o Brasil estivesse à beira de uma revolução
marxista-leninista. Desdenha dos antigos inimigos, os chamado de covardes. Mas
não consegue esconder uma discreta admiração pelo partido que combateu no
passado:
— O PCdoB sempre foi o pior
grupo a ser combatido. A origem disso foi a Intentona Comunista, que envolveu
vários oficiais, cooptados pelo PCdoB. E era o único grupo que tinha estrutura
militar, que tinha capacidade. Para fazer guerrilha, precisa de teoria, prática
e estrutura. Os outros eram guerrilheiros fantasmas. Se diziam guerrilheiros,
mas eram medrosos, covardes. Os argentinos, sim, eram guerrilheiros. No Brasil,
houve pouca morte em combate, mesmo na guerrilha. E a maior no Brasil, a do
Araguaia, foi um fracasso.
O oficial, que vive há pelo
menos 27 anos com a mulher na Baixada, disse que hoje quer apenas
tranquilidade. Teme que ela acabe depois que a reportagem for publicada. Mesmo
assim, concordou em falar:
— Sabia que esse dia ia chegar.
Autor de “Um tempo para não
esquecer”, livro relançado este ano com uma lista de agentes do regime
envolvidos em tortura, o professor Rubim Aquino acusou Malhães de atuar em
pontos-chaves da repressão, “sempre à base da carnificina”.
— Ele não fica a dever ao
Brilhante Ustra. Era um violento anticomunista, que aparece relacionado à
repressão no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul e no Paraná.
O Grupo Tortura Nunca Mais do
Rio de Janeiro incluiu o nome do oficial na lista dos “Elementos Envolvidos
Diretamente com Torturas”. Pelo menos três ex-presos políticos, Sérgio Ubiratan
Manes, Paulo Roberto Manes e Paulo Roberto Telles Franck, disseram ter sofrido
espancamentos, sessões de choque elétrico e outras violências praticadas pelo
militar — os dois primeiros no DOI do Rio e o terceiro no Rio Grande do Sul.
Fonte e dossiê completo: Contextolivre
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