Na primeira parte deste texto
argumentamos como a política para as drogas, através da repressão e da
proibição a todo custo, não conseguiu obter resultados positivos, agravando
ainda mais tal problemática. Essa política elevou os índices de violência, não
reduziu a demanda e a oferta por drogas, fortaleceu o mercado negro com uma
fonte de renda estável, gerou desinformação e impediu pensar outras soluções
para além da saída monossilábica e hegemônica da coerção.
Acreditamos que a legalização e
a regulamentação do uso de drogas se colocam como medidas sensatas para se
pensar uma política do cuidado e da redução de danos. O objetivo da
legalização/regulamentação é eliminar os prejuízos causados pela proibição, portanto,
enfraquecer o poder do tráfico, reduzir a violência gerada pelo combate,
diminuir uma das grandes fontes de dinheiro da criminalidade e, principalmente,
inserir a questão das drogas consideradas ilícitas como um problema de saúde
pública e não de polícia.
Todavia, quando se fala em
legalizar/regulamentar há uma série de equívocos e desencontros. O argumento
contrário mais simples, oriundo desse debate, é o de que essa medida traria o
aumento do consumo com o uso exagerado de drogas, sendo apenas uma disposição
para atender as necessidades de usuários, facilitando o acesso. Como já
pontuamos, a política da repressão afeta a todos – usuários e não usuários. Por
conseguinte, pensar outro encaminhamento para a questão também diz respeito a
ambos. É mais que evidente que o problema não envolve apenas um dos sujeitos
dessa relação. Os estilhaços são para todos. Quando se fala no aumento do
consumo de drogas com a legalização/regulamentação entra-se numa seara escura.
Não há dados que demonstrem isso, não há precedentes, não há referências, falta
conhecimento. Nenhum país do mundo experimentou, de fato, tal política. Também
não deve ser uma política para um país isolado. É preciso posturas conjuntas,
com um mínimo de nações se articulando. Esse foi, inclusive, o passo dado para
a política da intolerância a certas drogas na segunda metade do século XX. Ela
foi estabelecida em convenção com a participação de 180 países, em 1961, sob a
liderança dos EUA que, habilmente, vem mantendo os signatários a forte pressão
para não romperem com o acordo ali estabelecido.
Outro dilema é o de que se
pensa a legalização/regulamentação através de um viés simplista, acreditando
que o imbróglio seja resolvido unicamente com a decretação leniente de uma lei
liberando o uso. A questão não se resolve assim. Seria um caminho perigoso.
Essa medida implica pensar formas de uso, locais, condições, proibição de
propaganda, formas de produção e distribuição, taxação, esclarecimentos sobre
riscos e prejuízos à saúde e, porque não, posturas de desestímulo ao uso. Basta
lembrarmos que algumas dessas medidas estão sendo tomadas, com certo êxito, com
uma das drogas mais poderosas, à frente do álcool e da maconha, e de uso em
larga escala – o cigarro. O enfrentamento à nicotina é um bom exemplo de como é
possível estabelecer uma política de redução de danos sem que necessariamente
se recorra à proibição. Assim, estabelecer a legalização/regulamentação é
apenas um passo nesse processo. Outro é a longa discussão que deve envolver
médicos, juristas, cientistas, sociólogos, especialistas de várias áreas,
usuários, de como deve ser conduzida e colocada em prática tal questão.
Nesse sentido, alguns países do
mundo teem se colocado como referências para se pensar o trato com as drogas
(Portugal, Espanha, Suécia, Holanda, Califórnia, nos EUA). E a maconha tem sido
a droga referencial para o pontapé nessa discussão. Por que? Primeiro, há um
consenso entre os que estão à frente do debate de que é preciso pensar soluções
a partir de cada droga em específico. Não se pode dar os mesmos encaminhamentos
para drogas tão diferentes em impactos, poder de dependência e prejuízos como a
maconha, a cocaína, a heroína, o LSD, o ecstasy etc. Segundo, a maconha tem se
mostrado, do conjunto de drogas consideradas ilegais, como uma das drogas de
maior faceta. O que se deve ao seu menor grau de nocividade, pelo seu impacto
econômico e pelas descobertas no campo da pesquisa que tem demonstrado sua
eficácia no uso medicinal.
É necessário destacar que o
grau de nocividade da maconha é menor do que de drogas como o álcool e o
cigarro. Vários estudos indicam que 9% dos usuários dessa droga atingem a
dependência, enquanto os números sobem a 15% e 32% para o álcool e o tabaco,
respectivamente. Os danos sociais causados pelo uso de bebidas alcoólicas, por
exemplo, atinge números estratosféricos, passando pela violência doméstica,
acidentes de trânsito, aumento de homicídios e de mortes relacionadas a
complicações na saúde devidas ao seu uso. Todas as pesquisas sobre o álcool
demonstram o quanto este é uma droga muito mais perigosa que a maconha. Não
queremos aqui adentrar nesse terreno de comparações. Não é o objetivo. Mas é
sempre bom lembrar que a solução da repressão também já foi tentada com as
bebidas etílicas. A Lei Seca norte-americana (1920-1933), assim como a atual
proibição às drogas consideradas ilícitas, só trouxe os mesmos resultados que
já mencionamos anteriormente. Mas, se o álcool tornou-se uma das drogas mais
difundidas e usadas no mundo, tendo seu uso justificado nas diversas
celebrações sociais e até religiosas, por que então a maconha tomou direções
tão diferentes?
O uso da maconha para diversos
fins é milenar. Seu registro passa por povos de diferentes culturas e regiões,
sendo liberada até o início do século XX. O caminho que trilhou com destino à
proibição foi cimentado, sobretudo, pela discriminação. No Brasil, era fumada
por escravos e praticantes de terreiros de candomblé. Na Europa, a exemplo da
Inglaterra, era associada a árabes e indianos. Nos EUA, difundiu-se com a
grande leva de trabalhadores mexicanos que atravessava a fronteira e a usava
largamente. Foi se configurando como uma droga de imigrantes, marginalizados e
pobres. Junto à morfina e à cocaína, sobre ela recaíram as mais torpes
acusações – desencadeava hábitos depravados, incentivava o crime, dava poderes
sobrenaturais aos negros e desenvolvia todos os tipos de mazelas. A ideia de
controle social também passa pelo controle das formas de desabituação das
camadas consideradas perigosas. Desta forma, não foi difícil para os
norte-americanos, depois da lei seca, justificar a continuidade à caça as
bruxas. Manter sua estrutura de repressão (oriunda da lei seca) e convencer o
mundo de que drogas como a maconha deveriam ser duramente reprimidas e
exterminadas.
Contudo, certas questões veem
pesando no debate sobre sua legalização/regulamentação. A primeira delas é o
fato da maconha ser diferente de outras drogas industrializadas como a cocaína,
o ecstasy e a heroína. Trata-se de uma planta consumida, enquanto droga, em
estado natural (o que não justifica que seja inofensiva). Mas isso lhe dar uma
grande vantagem. Sendo uma droga produzida pela natureza, permite que usuários
possam plantá-la para consumo próprio, rompendo com a dependência ao mercado
ilícito e diminuindo os prejuízos à saúde com uma droga de melhor qualidade (no
tráfico, a forma prensada da droga, por exemplo, vem com produtos altamente
nocivos, como a amônia). Tal iniciativa é o que os espanhóis estão fazendo ao
criar o sistema de associações e cooperativas para quebrar as brechas para
intermediários ganharem dinheiro de forma ilegal.
Outra questão importante é o
fato de que seu consumo corresponde a mais de 50% de toda a droga usada no
mundo, alcançando números ainda maiores em países como o Brasil e a Austrália.
Assim, a grande sacada da Holanda ao criar, desde a década de 70, os chamados
coffee shops – únicos lugares em que é permitido o consumo de maconha com a
proibição de menores, regras de uso e ausência de qualquer propaganda – foi
separar essa droga das demais. Com que vantagem? Como o uso de canábis era
alto, sobretudo, entre a população jovem, foi a saída para romper com a máxima
de que a maconha é a porta de entrada para drogas mais pesadas (argumento até
hoje propalado). Pensamento que se traduz verdadeiro apenas pelo fato de que
esta é comprada no mercado negro (dominado pelo tráfico) em que o contato com
outras drogas é inevitável. Basta lembrarmos que nesse mercado a maconha
corresponde à fatia mais pobre dos lucros. Induzir o usuário a outras drogas
mais pesadas é muito mais interessante. Assim, a política dos coffee shops
permitiu o afastamento de parte da juventude das mãos do tráfico.
Num mundo dominado pelo ideário
liberal e onde o mercado é deus, a proibição cega soa como um grande
contrassenso. A legalização/regulamentação pode contemplar ou chocar-se com
interesses comerciais poderosos. Nunca é demais lembrar que a entrada da
maconha no continente americano deu-se através da chegada europeia com seus
navios carregados de artefatos (velas, cordas, tecidos, papéis etc.) fabricados
da fibra de cânhamo (cannábis indica). Essa fibra tornou-se uma das principais
fontes de confecção para produtos diversos até a primeira metade do século XX,
quando despertou a ira da crescente indústria de materiais sintéticos, a
exemplo do náilon. A partir de então, proibir o uso da maconha era atender aos
pedidos do lobby comercial dos fabricantes das fibras artificiais. Mas, para
além dessas possibilidades produtivas, mesmo a comercialização da maconha para
uso recreativo vislumbra um mercado de grandes proporções. Na Califórnia,
apesar da ilegalidade e do uso apenas para tratamento médico, a produção de
cigarros, comidas, cremes, óleos etc., movimenta um comércio milionário com uma
enorme capacidade de arrecadação de impostos, significativamente, explorados.
No Brasil, com apreciadores espalhados pelos quatro cantos, a taxação sobre o
comércio da maconha regulamentada, em locais específicos (nem todo maconheiro
irá plantar seu pé de maconha), seria uma fonte de dividendos substancial,
inclusive, para se investir em clínicas e tratamentos que realmente funcionem
para dependentes de diversas drogas.
Outra dimensão nesse debate é o
uso medicinal e terapêutico. Várias pesquisas têm apontado a eficácia da canábis
no tratamento de diversas doenças como inapetência, enjoos provocados pela
quimioterapia, glaucoma, câncer, AIDS, dores crônicas etc. Os californianos são
os que mais estão à frente nessa prática. Lá, já não se diz fumar maconha, mas
tomar a dose diária de remédio. No Brasil, os estudos dos neurocientistas
Sidarta Ribeiro (UFRN) e Renato Malcher-Lopes (UnB) dão provas da dimensão do
uso da maconha medicinal. Só para termos uma ideia, o trabalho científico do
professor Malcher tem revelado a presença de mais de 70 canabinóides,
substâncias que compõem a maconha, sendo a mais conhecida o tetraidrocanabinol
(THC), principal responsável pelo efeito psicoativo, que poderiam ser
manipulados para produzir diferentes linhagens de maconha para tratamentos específicos:
sedativo, analgésico, estimulante de apetite, antiespasmódica,
antiinflamatória, broncodilatadora etc. O que não quer dizer que qualquer
baseado tenha todos esses efeitos. Trata-se de produções específicas para fins
também específicos e com controle de qualidade. O que, certamente, não se
encontra em nenhuma boca de fumo.
Portanto, o que destacamos aqui
é um outro lado desse debate. É lógico que ele não se encerra nessa
perspectiva. Fumar maconha não é um ato idílico e inocente. Traz consequências,
pode causar dependência e tem seu grau de nocividade, ainda que seja bem menor
do que de drogas como o cigarro e o álcool, o que já se sabe a décadas. Mas
fechar os olhos para a perspectiva da legalização/regulamentação é perder a
oportunidade de lançar novos horizontes sobre a questão e tratar de forma
racional o problema das drogas. A atual discussão no Brasil, nos meios formais,
está estacionada, ainda, na descriminalização. O que de longe não resolve o
problema. A comissão de justiça do Senado brasileiro, agora em maio, aprovou no
conjunto de leis antidrogas a descriminalização de pequenos portes de maconha e
cocaína, mediante a interpretação “imparcial” de um juiz. O que na prática já
existia desde 2006. Assim, o problema vai sendo empurrado e não se pensa
soluções efetivas. Esse é um passo que, provavelmente, não será dado por
políticos ou pelo Estado. Não rende votos. É uma espinha atravessada na
garganta. É uma discussão, como já vem acontecendo em alguns lugares, lançada
pela sociedade civil organizada. Aqui, a provocação está feita, enriqueci-a o
debate de usuários e não usuários.
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