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Por ANA CRISTINA CARVALHAES
30 DE MAIO DE 2012
Claro que os processos de
mobilização ampla sempre impressionam, em particular aos que simpatizam de
antemão... De qualquer modo, não é exagero afirmar que há algo de novo no reino
do Primeiro Mundo. No Quebec, a província mais populosa e mais rica do industrializado
Canadá, uma greve começou estudantil e se tornou a maior mobilização popular do
pós-guerra.
Os mais de 7 milhões de
habitantes do Quebec são descendentes de colonizadores franceses, em contraste
com as outras nove províncias anglófonas do país. 82% dos quebequianos são
franco-canadenses e 10% anglo-canadenses. A província é de tradição
ultracatólica e conservadora: até os anos 60, a Igreja Romana monopolizava a
educação, por força da constituição provincial. À Universidade superelitista
chegavam 3% dos jovens francófonos do lugar e não mais que 11% dos anglos.
Nos revolucionários anos 60,
com o Partido Liberal do Québec (tido como progressista) no poder, a educação
passou à responsabilidade do Estado provincial, que mantém os liceus secundários
e universidades. Os liberais são os mesmos que, liderados pelo premiê Jean
Charest, hoje enfrentam as passeatas e panelaços da rebelião. Nas
Universidades, estuda-se em troca de uma taxa anual chamada de “direitos de
escolaridade” ou simplesmente frais (custos), que começou nos 500 dólares
canadenses (R$ 1.000 de hoje) ao ano e veio aumentando e se congelando de
acordo com a correlação de forças.
É o equivalente à
"tuitions" das universidades privadas norte-americanas. (Não é
exatamente a soma das mensalidades das privadas brasileiras, porque inclui
impostos.) Pois o governo de Monsieur Charest decidiu, em 2010, que a partir de
2012 até 2017 haveria um aumento progressivo da taxa, dos atuais 2.168 dólares
canadenses (cerca de R$ 4.200) ao ano para o equivalente a R$ 7.300, o que
significa 75% de aumento em cinco anos.
Como essas cifras anuais podem
até parecer pouco para os castigados estudantes de escolas privadas no Brasil,
é bom ressaltar os seguintes dados: dois terços dos universitários quebequianos
não moram com os pais, 80% estudam e trabalham em regime parcial, 40% não
recebem ajuda alguma da família e os outros 60%, além de ajuda, se endividam
para bancar os estudos. Porque quase todos precisam de período integral, ou
quase isso, para concluir os cursos.
Segundo o IBGE deles, a
Statistique Canada, o aumento de 200% nos custos de estudos entre 1995 e 2005
fez saltar de 49% a 57% a proporção de secundaristas que desistem da
universidade. Outro detalhe interessante: o mercado de empréstimos para pagar
as "frais" criou, com a financeirização, uma bolha especulativa com
papéis lastreados em empréstimos estudantis... Os analistas norte-americanos se
arrepiam só de pensar...
Pois bem, enquanto o governo
liberal preparava o pacotaço, as organizações estudantis preparavam a greve,
que começou em 13 de fevereiro deste ano. Em 22 de março, uma data
"nacional" quebequiana (com tradição de luta por autonomia frente ao
governo central do Canadá), aconteceu a maior passeata da história de Montreal,
a maior cidade da província. Incapaz e refratário a negociar, o governo liberal
começou a ver cair mais rapidamente sua maioria nas pesquisas (até abril a
opinião pública do Quebec ainda estava bem dividida em torno da necessidade do
aumento das taxas).
Àquela altura, os estudantes já
passavam a contar com o apoio de pais, mães, avós em passeatas diárias.
Artistas, esportistas, personalidades, sindicatos e OAB local aderiram. Os
jovens grevistas inventaram umas incríveis passeatas noturnas nas cidades
quebequianas, com muitos tambores, cornetas e os indefectíveis paninhos
vermelhos grudados nas lapelas. Em 13 de abril, o sindicato docente de uma das
maiores universidades, Université du Québec en Outaouais (UQO), votou em
assembléia partir para "ação direta" em defesa dos estudantes contra
a polícia, o que desencadeou uma onda de adesões de professores. (Quem vir os
vídeos das marchas no youtube vai identificar os docentes vestidos com trajes
de “segurança” das manifestações.)
Acuado, Charest não teve melhor
idéia do que fazer aprovar agora em maio, no parlamento provincial, que
controla, uma Lei que restringe o direito de manifestação, impedindo
aglomerações públicas de mais de 10 pessoas sem aviso prévio de 8 horas e
licença da polícia, vetando reuniões a menos de 50 metros das universidades e
proibindo o uso de máscaras, sob pena de multas altíssimas. A aprovação da lei
foi o estopim de uma nova fase do movimento: os dirigentes chamaram a população
a apoiar as passeatas, cada vez mais radicalizadas, com enfrentamentos,
pedradas e pauladas com a repressão, com o barulho das panelas. As mesmas
panelas do Chile de Allende e da Argentina do argentinazo.
O
concerto das caçarolas
O Quebec vive há semanas um
imenso e ininterrupto panelaço. A nova fase tirou da paralisia as velhas
gerações. O movimento hacker Anonymous perpetrou uma invasão dos sites do
ministério da Educação e do governo do Quebec. E a moçada autodenominou sua
rebelião Primavera do Quebec, em analogia com a Primavera Árabe.
Clique aqui para ver um vídeo do movimento que
se tornou viral no mundo anglo-saxão, lindíssimo:
No dia 23 passado, depois de
tentar excluir uma organização estudantil da mesa de negociações, a ministra da
Educação caiu. Começaram sinais de concessões mínimas por parte do governo. Mas
a radicalização do movimento parece estar impedindo os negociadores estudantis
de qualquer recuo. E agora as ruas exigem a revogação da Loi 78, a que
restringiu o direito de manifestação e expressão.
As principais organizações dos
estudantes são a Federação dos Universitários do Quebec (FEUQ), a Federação dos
Secundaristas (FECQ), e a interessante Classe, sigla em francês de Coalizão
Ampla da Associação por uma Solidariedade Sindical Estudantil. Essa, organizada
pela base, decide tudo em Congressos, não tem líderes, mas dois
“co-porta-vozes”, e é ligada pelo menos a uma federação importante, a dos
funcionários públicos do Quebec. A Classe tem como ponto programático a
educação pública e gratuita e não aceita menos do que o congelamento das taxas.
No sábado, 26, o principal
jornal de Montreal tinha como chamada de capa a decisão dos grevistas da
fábrica da Rio Tinto Alcan, em Alma, Quebec, de se "somar à greve
estudantil". Dizia um piqueteiro: "Nós nos manifestamos contra a obra
de Charest. Chegou a hora de a voz do povo se fazer ouvir. Nós queremos
denunciar a venda da eletricidade estatal à Hydro-Québec, mas também nossa
solidariedade aos estudantes. O conflito é um conflito da sociedade contra o
governo".
Impossível prever os
desdobramentos dos fatos dos últimos 104 dias de luta. No entanto, há quem
diga, como Jean Marc Léger, dono do Ibope canadense, uma das personalidades
pró-movimento, que há no ar e nas ruas uma raiva maior do que a raiva contra o
aumento dos "direitos de escolaridade". Léger é autor de um texto que
já se tornou um manifesto do movimento. No estilo das pesquisas de opinião de
que é especialista, ele diz: "E você? O que você defende? Retornar a seus
velhos hábitos no conforto e na indiferença? Você acha essa greve
super-simpática desde que não mexa na sua quietude e que passe logo para que
tudo fique como antes? Muito bem, senhores babyboomers (cidadãos hoje entre 60
e 70 anos), vocês não entenderam nada desse movimento! Os meninos e meninas não
querem mais carregar o fardo dos seus erros. Não os quebrem e dêem a eles a
chance de vencer. Do contrário, vocês terão fracassado".
O movimento do Quebec,
descaradamente boicotado pela grande mídia, conta com o apoio do Ocuppy Wall
Street, dos estudantes da Universidade da Cidade Nova York, de universidades de
todo o resto do Canadá e da Islândia! Bem que está precisando e merecendo um
apoio fraterno dos sindicatos docentes, de professores e organizações
estudantis brasileiras.
Ana Cristina Carvalhaes é
jornalista.
Fonte: Correio
da Cidadania
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