Por
Ronaldo Ferraz*
Recentemente, tive acesso há um
conjunto de materiais como textos, documentários e o livro lançado, em 2011,
pelo jornalista Denis Russo, “O fim da guerra”. Os documentários são “Cortina
de fumaça”, com direção de Rodrigo Mac Niven, estreado em 2010, e “Quebrando o
Tabu”, do diretor e produtor Fernando Grostein, de 2011. O que possuem em
comum? Todos trazem no centro de suas discussões o debate sobre drogas, no
mundo e no Brasil, e as políticas voltadas para elas, tomando como ponto
essencial a liberalização e regulamentação da maconha.
O que se percebe é que o debate
sobre política de drogas emerge do subterrâneo, do consensual e dos velhos
discursos moralistas para assumir lugares, até então, pouco habitados: o da
ciência, da geopolítica e o da saúde pública. Percebe-se que esse debate vem se
avolumando, tomando grandes dimensões e provocando pessoas, grupos, políticos e
a sociedade a se posicionarem. Essa discussão é quente como lava vulcânica,
provoca incômodo e traz à tona o medo de um tema tabu. Mas o fogo precisa ser
enfrentado.
Para quem considera que a
contenda sobre as drogas estaciona-se na dicotomia liberar ou não liberar, os
documentários acima e o livro de Denis Russo elevam a questão para dimensões
mais altas, para complexidades que envolvem a todos – usuários, simpatizantes,
contrários e indiferentes. Isso porque a discussão transcende a temas maiores –
violência, saúde, direitos individuais e mercado. Vejamos por que.
Um primeiro passo na discussão
sobre política de drogas é reconhecer que a política da repressão, hegemônica
em todo o século XX, comandada, sobretudo, pelos EUA, tornou-se um dos grandes malsucedidos
da história. Não apenas fracassou, mas trouxe consequências catastróficas,
elevando os índices de violência, por onde passou, a níveis cada vez maiores.
Ao empurrar para o mercado negro, para o comércio ilícito e para as mãos dos
traficantes todos os tipos de drogas consideradas ilegais, independentes do seu
grau de risco para a saúde pública e para a sociedade, criou-se um monstro fora
de controle. A ideia parecia ser bem simples, cheia de boas intenções e eficaz.
Tentar livrar o mundo das drogas pondo-as no lugar da ilegalidade e da
contravenção. E o que deu errado?
Primeiro, que as drogas
acompanham a história da humanidade. Não se trata de um hábito da
contemporaneidade, da vida moderna, mas de uma disposição adquirida desde sempre,
desde quando nossos ancestrais se espalharam pela terra – seja através do uso
de frutas entorpecentes, ervas e todos os tipos de plantas e sementes, bebidas
de várias origens (vinho, cerveja, cauym) até os paraísos artificiais advindos
das descobertas da química, a partir do século XVIII. Assim, o uso de drogas
acompanha nossa evolução cultural, amalgamou-se nela. A humanidade sempre
buscou o torpor, a desabituação e o barato de sentir a realidade em outras
vibrações. Não há povos que não se entorpeçam, alguns mais outros menos. E como
mudar um hábito cultural tão arraigado com a simples proibição? E não se trata
apenas de proibir, mas de declarar uma guerra na qual as únicas armas foram a
repressão e a violência.
Segundo, esta guerra trouxe e
traz resultados parecidos com o de qualquer guerra convencional: muita
destruição e mortos. E o pior, os únicos que se beneficiam com ela, além de um
monte de gente (políticos) que justifica verbas públicas caras, projetos,
financiamentos, compras de armas, salários, contratações, campanhas políticas,
em prol do combate às drogas, são os traficantes. Estes teem sua existência
justificada e garantida pelo enorme favor que lhes fora dado ao colocar a
questão das drogas no submundo e no terreno da ilegalidade. São os que colhem,
junto aos que se beneficiam com a repressão, os lucros mais altos desse
processo. Essa guerra apontou metas ambiciosas – eliminar as drogas através do
combate ao tráfico. Contudo, a realidade, os fatos e as pesquisas só veem
demonstrando que tal medida é improfícua. Estamos enxugando um grande iceberg.
Basta observarmos como o tráfico nunca sente as baixas cotidianas pela ação da
polícia, realimentando-se a cada dia de crianças, jovens e adultos pobres da
periferia, ou de outros extratos sociais. Mesmo os poucos chefes de peso do
tráfico que são presos vão sendo substituídos por outros, isso quando não
continuam suas atividades dentro do próprio sistema prisional.
A alternativa da repressão
trouxe não apenas o inchaço das cadeias. Estima-se que no Brasil 25% da
população carcerária é oriunda do tráfico, a grande maioria negros e pobres, gente
cuja prisão não abala as estruturas do comércio ilegal de drogas. Mas que
superlota nosso sistema penitenciário, minguando recursos financeiros que
poderiam ser canalizados para outras áreas, inclusive, o da saúde no tratamento
a dependentes e políticas de prevenção. O que essa repressão vem provocando, no
mundo e no Brasil, é que cada vez mais ficou fácil comprar drogas. Os preços
baixaram, contrariando a ideia de que o combate a todo custo tornaria os preços
mais altos, as estratégias dos traficantes tornaram-se mais sofisticadas e a
represaria a certas drogas, a exemplo da cocaína, permitiu o surgimento de
drogas mais letais e perigosas como o crack que se tornou uma epidemia.
Terceiro, as drogas
consideradas ilícitas, como parte da estratégia da guerra, foram
verdadeiramente demonizadas. Drogas são sempre perigosas. Isto é consensual.
Mas esta demonização implicou num verdadeiro desconhecimento sobre os seus
reais perigos. Gerou uma desinformação tão perigosa quanto a própria existência
das drogas. Criou um distanciamento tanto da sociedade, quanto da ciência. E o
saber científico que muito poderia ajudar nesse grande enredo, limitou-se
basicamente a mostrar o lado perigoso dessa história, colaborando com a lógica
da repressão. Assim, conhece-se por demais os prejuízos e malefícios, mas
sabe-se muito pouco, ainda, sob formas eficazes de tratamento, alternativas,
possíveis benefícios, a exemplo da maconha, e, sobretudo, como lidar com a
presença das drogas num nível de tolerância e segurança que não traga tantos riscos
para todos – usuários e não usuários.
Campanhas inócuas de
convencimento, sobretudo, para a juventude, com slogans vazios e sem sentido
como “Não use drogas” e “Drogas matam”, como se os jovens possuíssem um botão
interno que automaticamente é ligado com frases como essas, não surtem o menor
efeito. Soam até como falsas e mentirosas quando muitos experimentam e
descobrem que usar drogas é prazeroso, é um grande barato. Mas não percebem que
justamente por serem prazerosas, e sempre pedindo mais prazer, levando a uma
possível compulsão, é que são perigosas. A proibição máscara o conhecimento,
desinforma e até estimula o uso. Se a rebeldia, a intempestividade e a
experimentação compõem a natureza da juventude, estes atributos se aguçam,
chocam-se diante do que é proibido. Os anos 60, do século passado, notadamente
conhecido, entre outras coisas, pela prática em escala do uso de drogas não
pode ser entendido isoladamente. Foi uma resposta rebelde ao conservadorismo e
a caretice das décadas anteriores. Experimentar do fruto proibido, querer
degustá-lo é da natureza humana. Não se barra essa força com leis e decretos.
Negocia-se, dialoga-se, esclarece-se, cria-se consciência.
Quarto, a variedade de drogas
consideradas lícitas preenche a um cardápio amplo e diversificado – são barbitúricos,
cafés, chás, álcool, nicotina, chocolate, estimulantes, antidepressivos, soníferos,
xaropes, anabolizantes etc. O curioso é que o banquete é vasto e de tantas
opções, e dele elegeu-se certas drogas para a proibição. Mas com que critérios?
Quem avaliou? Diriam muitos que pelos riscos que podem causar e pelo seu poder
de destruição. Mas, quando olhamos a questão de perto, mais apuradamente, as
coisas não parecem tão simples assim.
Nesse sentido, a história da
maconha, sua trajetória enquanto uma droga amplamente difundida, as formas de
lidar com sua presença e suas possibilidades terapêuticas podem indicar novos
caminhos na lida com as drogas. Pode direcionar as políticas públicas para as
drogas para novos rumos que não sejam apenas o da repressão pura e simples.
Estas questões é o que se
evidencia como plano introdutório nos documentários e no livro do Denis Russo,
citados no início deste texto. O mais surpreendente, ainda, é perceber como
alguns países veem lidando com a questão das drogas e apontam suas políticas
para outros horizontes como o da política do cuidado, da tolerância, da redução
de danos e da saúde pública. É o que se ver, por exemplo, na discussão
conduzida pelo ex-presidente da república, Fernando Henrique Cardoso, no
documentário “Quebrando o tabu”, no qual assume o posicionamento pela legalização
e regulamentação da maconha, visitando lugares como a Holanda, a Espanha e
Portugal que mostram ao mundo alternativas e novas referências na forma de
lidar com essa problemática.
Foto: Blog do Fábio Sena |
Considero o livro “O fim da
guerra: a maconha e a criação de um novo sistema para lidar com as drogas” um
ótimo pontapé inicial para quem quer aprofundar na questão e descobrir o que
portugueses, espanhóis, holandeses e californianos teem dado de contribuição na
forma de enfrentamento da problemática exposta aqui, além de estabelecer um
debate bem construído acerca da necessidade de se liberalizar e regulamentar o
uso da maconha. Tal discussão, central nessas produções, é que o pretendemos
elencar na continuidade desse texto.
*Professor de História da educação básica.
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