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segunda-feira, 31 de março de 2014

A ditadura brasileira e a luta de classes no campo da memória

José Rubens Mascarenhas de Almeida
 
Como historiador e materialista, não me esquivo de abordar a memória como elemento social e não como mero aporte biológico ou psíquico. Aliás, um sociólogo de nome Maurice Halbwachs já chamava atenção para o caráter coletivo e social da memória, entre o final do século XIX e início do XX, num livro despretensioso denominado Memória Coletiva. Nele, evidenciava que, no campo da memória, o individual se desenhava no coletivo. Mas, Halbwachs abordava a construção da memória sem dar conta das contradições sociais que permeiam a esfera social. Ao não primar pelo conflito de classes, sua teoria naturalizava as relações sociais, apresentando a realidade como algo inevitável, dado, posto.
Neste dia (31/03) em que se (des) comemora (enquanto antítese de desmemoria) o Golpe Militar no Brasil, quero fazer uma leitura da memória não como algo relacionado meramente ao passado. Aliás, a memória, recorrendo ao passado, é lida no presente da rememoração. Ou seja, passa pelos olhos do presente. Quando rememoramos reminiscências, estamos revisitando o passado – distante ou recente –, mas com um olhar de revisita, retorno a momentos e lugares vividos.
Elizabeth Jelin[i], socióloga argentina, afirma que as ditaduras na América Latina tratam de um passado recente, porque mui presente entre nós (2012, p. 10). A memória que quero evidenciar ressalta processos autoritários e não só os que dizem respeito à ditadura militar desferida contra os trabalhadores brasileiros e que hoje é rememorada em seu meio século de deflagração. A memória do autoritarismo que aqui se revisita faz parte da história própria dos povos oprimidos da América Latina desde a chegada dos conquistadores europeus, passando pelos caudilhos ou coronéis. Esse autoritarismo congênito, socialmente forjado, nasce com a conquista do continente americano e grassa pela formação colonial e se estendeu à republica, chegando até os dias atuais, contrariando os discursos floridos e maquiados reverberados pela democracia burguesa.
Registrando de soslaio a barbárie instalada aqui pelos conquistadores e colonizadores europeus, que também eram cristãos, mercantilistas, brancos e de cultura ocidental, a forma de governo instituída no pós-independência (1822) no Brasil foi marcada por um profundo autoritarismo. Às vezes civil, às vezes militar. Noutras, civil-militar.
Tendo como referência Le Goff quando afirma que o passado é, “ao mesmo tempo, passado e presente” (p. 41)[ii], podemos afirmar, sem medo de errar, que memória não diz respeito apenas ao passado, é também expressão do presente, eivada de mensagem ideológica, a refletir as diferentes forças que se digladiam na sociedade pelo domínio social. E, sendo presente, aponta para o futuro, por isto também campo da luta de classes. Assim, memória é elemento construído socialmente, não isento das contraditórias relações sociais que envolvem os sujeitos – e (as) sujeitados – dos processos sociais, eivados que são de contradições: de classe, sexistas, racistas, etc. Essas interações constituem a dinâmica da produção da memória.

Entulho autoritário

Nesse sentido, pressionado pelas contradições sociais e pela ideologia dominante, o campo da memória acaba por refletir as lutas sociais que aí também explodem como reflexo das lutas de classes. Exemplo disso, a atual criminalização das manifestações políticas e sociais que ganharam corpo a partir de junho de 2013 no Brasil evidenciou também que os aparelhos repressivos do “Estado democrático” atuam nos mesmos moldes da ditadura. Isto é memória, mas também é história.
Esse “passado que não quer passar” (Calveiro)[iii] aqui no Brasil é marcado pela persistência de boa parte do entulho autoritário da ditadura militar de 1964 que, governo após governo, vem sido varrido para debaixo do tapete. Mesmo a Comissão Nacional da Verdade, trata-se de uma comissão de “meia-verdade”, pelos poderes a ela outorgados e por pautar-se na Lei da Anistia (Lei nº 11.961/2009, regulamentada pelo do Decreto nº 6.893/2009), que tem por pressuposto as prerrogativas militares da ditadura.
Outro entulho autoritário é a Polícia Militar. Com as atuais características, é fruto do Golpe Militar de 1964, fundada na concepção de inimigo interno. Á época, justificava-se como instrumento de combate ao comunismo, antonomásia usada para a repressão a todo e qualquer opositor ao regime, atendendo às prerrogativas da ideologia da Doutrina de Segurança Nacional[iv]. Ainda hoje a Polícia Militar brasileira continua atuando como se a ditadura ainda estivesse vívida – e acredito que está, apesar da máscara ideológica que a recobre –, mostrando-se um instrumento anacrônico de um modelo idem de segurança pública cuja característica é inerente àquele período obscuro de nossa história. Vejamos. A Folha de S.P acaba de publicar informação dando conta de que, atualmente, existem 16 projetos de criminalização das manifestações populares[v].
Matar suspeitos pobres sem julgamento é rotina na polícia brasileira. Levantamento feito pela BBC Brasil, a PM do Rio matou seis vezes mais pessoas durante ações de combate ao crime do que seus pares da Polícia Civil em São Paulo no ano de 2011[vi]. Dados de 16/07/2007 dão conta de que a polícia do Rio matava 41 civis por cada policial morto[vii]. Nesse sentido, quando se fala em “guerra” interna, isso não passa de um temendo jargão ideologizado. A guerra em vigor é a travada no âmbito da luta de classes, basta que se comprove de que classe social é formado o grande contingente de vítimas: os pobres. Os fatos são tão gritantes que, em 30/05/2012, o Conselho da ONU sugeriu o fim da Polícia Militar no Brasil, recomendação apresentada pela Dinamarca, alegando execuções sumárias desrespeito aos direitos humanos[viii]. “Dos filhos deste solo és... mãe gentil?”
A memória e a história desses últimos meio século registraram que a gentileza dessa mãe faltou a tantos filhos torturados, desaparecidos, assassinados cruelmente... Alguns deles bem próximos de nós (todos próximos e identificados pela luta por uma sociedade justa ou, no mínimo, menos injusta), como Dinaelza Santana Coqueiro (conquistense morta na Guerrilha do Araguaia) e Péricles Gusmão Régis, que foi morto nas dependências do Nono Batalhão de Polícia Militar (Vitória da Conquista); Aderval Alves Coqueiro (de Aracatu); Rosalindo de Souza (de Caldeirão Grande); Vandique Reidner Pereira Coqueiro (de Boa Nova); Vitorino Alves Moitinho (de Poções); e tantos outros, só para citar alguns mais próximos, geograficamente, de nós (Bahia).
Outros, por outro lado, como defensores da ignominia, da opressão, como também registram a memória e a história: Amílcar Lobo, médico psiquiatra que emprestou seus serviços à “tortura científica”; Dalmar Caribé, à época da ditadura Cabo do Exército e torturador que matou friamente Carlos Lamarca[ix]; Cabo Anselmo, biografia degradante e perversa criada pelo regime de terrorismo estatal, responsável por um sem número de mortes que nem mesmo ele pode contabilizar, entregou aos milicos, inclusive, a própria mulher, grávida de sete meses. Ela e o bebê foram assassinados pelo regime. Passaríamos centenas de páginas aqui rememorando as atrocidades cometidas pelos carrascos da ditadura, mas sem concebê-los por monstros, mas por indivíduos forjados no cotidiano brutal de uma ditadura civil-militar de caráter capitalista.

Uma ditadura civil-militar

Tudo o que as ditaduras fizeram para além daquilo que se denominou Estado de Direito, a burguesia, nacional e estrangeira, foi partícipe. A ditadura eliminou garantias individuais e coletivas, cassou mandatos e direitos, censurou e proibiu, torturou, prendeu arbitrariamente, saqueou bens de seus inimigos políticos, quebrou toda e qualquer garantia política institucional, conferiu a seus agentes policiais e militares o poder de sequestrar, torturar, matar e promover desaparecimentos forçados. Enfim, jogou na lata de lixo aquilo que a própria classe dominante denomina “Estado de Direito”.
Todas essas ações foram financiadas e apoiadas logística e ideologicamente pelas burguesias nacional e estrangeira, mostrando que, para o processo de acumulação capitalista tanto faz o regime político. Aliás, a participação da burguesia nas ditaduras não foi privilégio da brasileira, mas de todos os processos ditatoriais latino-americanos. Exemplo marcante foi o do empresário dinamarquês radicado no Brasil, presidente do Grupo Ultra, Henning Boilensen (ver filme a seguir). Sua participação foi ativa (financiando, disponibilizando os veículos da empresa, presenciando as torturas) na OBAN (Operação Bandeirante[x]). Sua presença é memória “honrada” daqueles momentos, agraciada com nome de rua em São Paulo (CEP 05338-050). Memória oficial. A história também registra outros cúmplices, como empresários da Camargo Correa, da Folha de São Paulo, a Globo, de Roberto Marinho, e o Grupo Abril, de Victor Civita[xi], entre muitos outros. Na Argentina, a indústria de automóveis Ford, durante a ditadura cedeu seus espaços para que as forças repressoras espionassem seus funcionários, prendessem, custodiassem, torturassem, etc.
 
Aliás, por tudo o que fez e representou, a ditadura brasileira não foi só uma ditadura brasileira. Na conjuntura em que se deu, todo o Cone Sul da região (Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai) também sofreu a sua. Todas elas atenderam, a partir de sua peculiaridade, às premissas da famigerada Doutrina de Segurança Nacional, doutrina forjada no contexto da Guerra Fria, capitaneada pelos EUA e sua Escola Militar das Américas, que exportava a ideologia do inimigo interno (comunista). Tal ideologia defendia os interesses dos setores dominantes locais e do capital estrangeiro, que deu frutos como, no Brasil, à Escola Superior de Guerra e ao famigerado Serviço Nacional de Informações. Páginas tristes da história e memória nacionais.
Nesse sentido mais amplo (internacional), as memórias que se entrecruzam na história não são só nossas (nacional), mas planetárias, pois tratam de uma construção a partir do processo de acumulação de capitais em escala internacional. O atesta a participação do grande capital estrangeiro assim como manobras militares internacionais, como a operação Brother Sam (força-tarefa da marinha estadunidense, retaguarda para o golpe); operativos de intelligentsia (CIA e FBI)[xii]; diplomática (OEA); ideológico (USAID – Umited States Agency for International Development); a Aliança para o Progresso (1964); A tutela do FMI; a Operação Condor (a aliança do terror, na qual os militares do Cone Sul se uniram para perseguir, torturar, exterminar mesmo aqueles dissidentes que se encontravam no exílio. Todo uma literatura dá conta disso.
Nesse entendimento dialético (memórias enquanto produção social e constructo político e ideológico e, portanto, lócus de conflitos e contradições), as ditaduras não se deram por uma questão cultural ou por um estalo fortuito das instituições militares brasileiras, que, num surto psicopático, resolveram implementar atroz regime. Elas foram uma variante da violência de classe, imposta pelo Estado burguês em favor da manutenção de sua dominação. Não à-toa se deram em sequência em quase todos os países da América Latina: Brasil, 1964; Chile, 1973; Argentina,1966 e 1976; Peru, 1962; Bolívia,1964, só para citar os do Cone Sul. Assim, lembrar ou esquecer são processos típicos da luta de classes quando explode, ideologicamente, no campo da memória.
Para finalizar, quero ressaltar que discutir o direito à verdade, à memória, a desvendar os esquecimentos acerca do processo ditatorial no Brasil é um exercício saudável e uma experiência importante, quer do ponto de vista social, intelectual ou político – que são uma só coisa – inda mais por sabermos viver num regime político de fragilidade imensa, constantemente ameaçado pelo autoritarismo, fardado ou não.


[1] JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. 2ª ed. Lima: IEP, 2012.
[1] LE GOFF. J. História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.
[1] CALVEIRO, Pilar. Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina. Coleção estado de Sítio. São Paulo: Boitempo, 2013.
[1] Acerca ver COMBLIN, Pe. Joseph. A ideologia da segurança nacional: o poder militar na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
[1] Ver “Em ano eleitoral, Congresso tem fila de projetos contra manifestante violento”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/03/1424810-em-ano-eleitoral-governo-tem-fila-de-projetos-contra-manifestante-violento.shtml. Acessado em 31/03/2014.
[1] Acerca ver: “PM mata seis vezes mais que Policia Civil em São Paulo”. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/06/120601_direitos_humanos_policias_onu_lk.shtml. Acessado em 31/03/2014.
[1] Ver: “Polícia do Rio mata 41 civis para cada policial morto”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1607200701.htm. Acessado em 31/03/2014.
[1] Ver “Conselho da ONU sugere fim da Polícia Militar no Brasil”. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,conselho-da-onu-sugere-fim-de-policia-militar-no-brasil,880073,0.htm. Acessado em 31/03/2014.
[1] Acerca ver “O caratê e a ditadura, também entre nós”. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/colunas/papodeesporte/ult1419u12.shtml. Acessado em 31/03/2014. Também “Esculacho na Bahia denuncia assassino de Lamarca”. Disponível em: http://levante.org.br/esculacho-na-bahia-denuncia-assassino-de-lamarca/. Acessado em 31/03/2014.
[1] Estrutura repressiva governamental que antecedeu o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).
[1] Acerca ver “Empresários que apoiaram o golpe de 64 construíram grandes fortunas com dinheiro público”. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/blog/2014/03/empresarios-que-apoiaram-o-golpe-de-64-construiram-grandes-fortunas-com-dinheiro-publico/. Acessado em 31/03/2014.
[1] Edgard Hoover, duas semanas após o golpe declarava, em jornal brasileiro, do orgulho da participação do FBI no processo. Acerca ver SODRÉ, Nelson Werneck. Vida e morte da ditadura: 20 anos de autoritarismo no Brasil. 2ª ed. Petróplis: Vozes, 1984. P. 65.

sábado, 29 de março de 2014

ANDARILHO

Alex Conceição*


Pensamentos desordenados
A mente foge voa longe e o tempo escorre pelo ralo, num estalo,
Tô aqui, num outro já nem sei,

No peito algo aperta e me alerta que ainda não cheguei, mas falei,
Eu te amo antes de partir, eu disse sim eu não quero, mas preciso ir,
Enfim deixei pra trás as certezas matemáticas
Com os jornais me embrulhei e fiz a tácita reconciliação
Com aquilo escondido aos olhos, que só se sente com seu coração,
Eis a alienação, da qual tentei fugir,
Nos becos e vielas foi onde eu me escondi, foi donde eu renasci,
Foi onde eu me venci foi onde eu percebi que o céu tem mais estrelas
A vida é mais do que se entende, então por que não me contento em tê-la?

[refrão] Andarilho, busca a redenção,
Faz da tua fome instrumento pra reflexão,
Uma moeda um pão um copo de café
Vivendo em meio ao caos e sustentando a sua fé,
Em dias melhores que virão em dias melhores que virão...

Chinelo gasto, a boca seca e na cidade se encolhendo,
Atrás de mim existem mil cabeças, presas,
Por uma lógica da qual me desvencilho
Eu não vejo o trem da vida, mas sigo num trilho,
Sem saber se ele vem de lá de cá, dali, daqui a pouco ou logo mais,
Se ele vai passar por cima, isso tanto faz,
Só que não dava mais pra viver só calado
Hoje eu grito alto, pros ouvidos surdos, sigo a passos largos,
Com medo do mundo,
A mão se estende pra pedir as faces viram de lado,
Indiferença, por mim, não... Mas por outros vários,
Que estão aqui por falta de opção, eu caminho,
Não por isso, mas por redenção, inconformação,
Pura subversão, a chuva cai, o vento sopra e leva embora,
O suor do meu rosto, eu não sabia, isso tem outro gosto,
Oposto ao que se compra com dinheiro
Exala cheiro de um perfume natural, do mal,
Esse sistema que inibe os seus sentidos,
Quantos sábios na sarjeta sabem disso?
 
[refrão] Andarilho, busca a redenção,
Faz da tua fome instrumento pra reflexão,
Uma moeda um pão um copo de café
Vivendo em meio ao caos e sustentando a sua fé,
Em dias melhores que virão em dias melhores que virão...
 
O silencio precede a atrocidade
Caminho com lagrimas nos olhos ao ver a realidade
Olhos abertos enquanto durmo por medo de voltar ao sonho
Sorriso medonho, pesadelo da conformação,
Sou andarilho em movimento pra fugir dessa programação
Buscando a redenção, ou a revolução?
Taxado como louco por não ser do padrão
Sou realização do que o sistema não quer
Enquanto a bala se projeta ainda estou de pé
Como os pinheiros na floreta, vou morrer em pé,
Meu escaler num mar imenso de encontro à maré
Andarilho, andarilho, busca a redenção,
Faz da tua fome instrumento pra reflexão,
Uma moeda um pão um copo de café
Vivendo em meio ao caos e sustentando a sua fé,
Em dias melhores que virão em dias melhores que virão...

*Estudante de História da UESB

sexta-feira, 28 de março de 2014

Estado brasileiro é criticado na OEA por ainda usar lei de exceção da Ditadura Militar

Estado brasileiro foi questionado sobre o uso de uma lei que marcou a Ditadura Militar e que, hoje, vem atropelando os direitos constitucionais, em especial de populações indígenas

por Justiça Global

28/03/2014

Na semana em que o Brasil lembra os 50 anos do golpe de 1964, o Estado brasileiro foi questionado publicamente, nessa sexta-feira (28), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington (EUA), sobre o uso de uma lei que marcou a Ditadura Militar e que, hoje, vem atropelando os direitos constitucionais, em especial de populações indígenas e tradicionais e os relativos ao meio ambiente para defender grandes interesses econômicos.

Instados pelo governo e grandes empresas, presidentes de tribunais vêm lançando mão da chamada “suspensão de segurança”, pela qual podem suspender unilateralmente decisões de instâncias inferiores diante de um suposto risco de “ocorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”. Em resumo, esse instrumento permite cassar decisões que esses presidentes julguem impertinentes, mesmo que elas não façam mais do que aplicar a lei em vigor no país. A suspensão de segurança foi usada, por exemplo, contra os direitos de comunidades afetadas pelas hidrelétricas de Belo Monte (PA) e do Teles Pires (MT) e pela estrada de ferro de Carajás (PA/MA).

O líder indígena Josias Munduruku (MT), Alaíde Silva, morador de Buriticupu (MA), município atravessado pela estrada de ferro de Carajás, e a juíza federal Célia Bernardes, da Associação Juízes pela Democracia, são alguns dos membros de organizações não governamentais e vítimas diretas da suspensão de segurança que estiveram na comissão para denunciar esse instrumento como um entulho autoritário e uma ameaça ao Estado de Direito no Brasil.

O pedido de audiência na OEA foi feito pela Justiça Global, Justiça nos Trilhos, Associação Interamericana para a Defesa do Meio Ambiente (AIDA), International Rivers, Terra de Direitos e Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos.

“Sofremos com as consequências das barragens que estão sendo construídas em cinco de nossos rios”, lembrou Josias Munduruku. “O Ministério Publico Federal apresentou uma ação na Justiça para parar as obras no Tapajós, mas o governo derruba tudo, usando a Suspensão de Segurança. As obras continuam. O governo não fez consulta previa aos índios”, completou.

“Tudo isso está acontecendo com a ausência do Estado e de seus órgãos públicos, que concedem licenças sem respeitar as comunidades”, disse Alaíde Silva.

“Com seus critérios amplos e subjetivos, a Suspensão de Segurança viola a Convenção Americana de Direitos Humanos e acaba com qualquer possibilidade de efetividade das medidas judiciais adequadas para a salvaguarda dos direitos humanos no sistema jurídico brasileiro”, analisou, durante a audiência, Alexandre Sampaio, da Associação Interamericana de Defesa Ambiental (Aida). “A Suspensão de Segurança está em frontal violação dos direitos ao devido processo legal e acesso à justiça, em desacordo com os artigos 8 e 25 da Convenção Americana”, concluiu.

“A suspensão de segurança é uma grave permanência da Ditadura militar e impede que o Judiciário aja de forma independente e imparcial”, critica Eduardo Baker, advogado da Justiça Global. “Quando se trata de megaprojetos de desenvolvimento que estão diretamente ligados à política estatal de crescimento econômico, o sistema judicial brasileiro tem sido utilizado de maneira a não garantir, ou mesmo desconsiderar, os direitos das populações afetadas” acrescenta. 

Saiba mais sobre a Suspensão de Segurança

A Suspensão de Segurança foi criada no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) e depois reformulada e ampliada na ditadura militar (1964-1985). Entre seus usos mais notórios hoje, está a suspensão de decisões dos tribunais sobre a ilegalidade de grandes empreendimentos, como hidrelétricas, rodovias e portos. Ela foi usada também no caso do complexo petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), contra os quilombolas da Restinga de Marambaia (RJ) e de Alcântara (MA) e na hidrelétrica de Barra Grande (SC).

Artigos da Constituição e tratados internacionais referendados pelo País têm sido descumpridos pelo uso desse instrumento. Um dos mais importantes deles é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). De acordo com ela, qualquer medida administrativa ou empreendimento que afete territórios indígenas e tradicionais exige a consulta prévia, livre e informada às comunidades atingidas.

quarta-feira, 26 de março de 2014

A dura vida dos ateus em um Brasil cada vez mais evangélico

A parábola do taxista e a intolerância. Reflexão a partir de uma conversa no trânsito de São Paulo. A expansão da fé evangélica está mudando “o homem cordial”?
Eliane Brum*

O diálogo aconteceu entre uma jornalista e um taxista na última sexta-feira. Ela entrou no táxi do ponto do Shopping Villa Lobos, em São Paulo, por volta das 19h30. Como estava escuro demais para ler o jornal, como ela sempre faz, puxou conversa com o motorista de táxi, como ela nunca faz. Falaram do trânsito (inevitável em São Paulo) que, naquela sexta-feira chuvosa e às vésperas de um feriadão, contra todos os prognósticos, estava bom. Depois, outro taxista emparelhou o carro na Pedroso de Moraes para pedir um “Bom Ar” emprestado ao colega, porque tinha carregado um passageiro “com cheiro de jaula”. Continuaram, e ela comentou que trabalharia no feriado. Ele perguntou o que ela fazia. “Sou jornalista”, ela disse. E ele: “Eu quero muito melhorar o meu português. Estudei, mas escrevo tudo errado”. Ele era jovem, menos de 30 anos. “O melhor jeito de melhorar o português é lendo”, ela sugeriu. “Eu estou lendo mais agora, já li quatro livros neste ano. Para quem não lia nada...”, ele contou. “O importante é ler o que você gosta”, ela estimulou. “O que eu quero agora é ler a Bíblia”. Foi neste ponto que o diálogo conquistou o direito a seguir com travessões.

 - Você é evangélico? – ela perguntou.

 - Sou! – ele respondeu, animado.

 - De que igreja?

 - Tenho ido na Novidade de Vida. Mas já fui na Bola de Neve.

- Da Novidade de Vida eu nunca tinha ouvido falar, mas já li matérias sobre a Bola de Neve. É bacana a Novidade de Vida?

- Tou gostando muito. A Bola de Neve também é bem legal. De vez em quando eu vou lá.

- Legal.

- De que religião você é?

- Eu não tenho religião. Sou ateia.

- Deus me livre! Vai lá na Bola de Neve.

- Não, eu não sou religiosa. Sou ateia.

- Deus me livre!

- Engraçado isso. Eu respeito a sua escolha, mas você não respeita a minha.

- (riso nervoso).

- Eu sou uma pessoa decente, honesta, trato as pessoas com respeito, trabalho duro e tento fazer a minha parte para o mundo ser um lugar melhor. Por que eu seria pior por não ter uma fé?

- Por que as boas ações não salvam.

- Não?

- Só Jesus salva. Se você não aceitar Jesus, não será salva.

- Mas eu não quero ser salva.

- Deus me livre!

- Eu não acredito em salvação. Acredito em viver cada dia da melhor forma possível.

- Acho que você é espírita.

- Não, já disse a você. Sou ateia.

- É que Jesus não te pegou ainda. Mas ele vai pegar.

- Olha, sinceramente, acho difícil que Jesus vá me pegar. Mas sabe o que eu acho curioso? Que eu não queira tirar a sua fé, mas você queira tirar a minha não fé. Eu não acho que você seja pior do que eu por ser evangélico, mas você parece achar que é melhor do que eu porque é evangélico. Não era Jesus que pregava a tolerância?

- É, talvez seja melhor a gente mudar de assunto...

O taxista estava confuso. A passageira era ateia, mas parecia do bem. Era tranquila, doce e divertida. Mas ele fora doutrinado para acreditar que um ateu é uma espécie de Satanás. Como resolver esse impasse? (Talvez ele tenha lembrado, naquele momento, que o pastor avisara que o diabo assumia formas muito sedutoras para roubar a alma dos crentes. Mas, como não dá para ler pensamentos, só é possível afirmar que o taxista parecia viver um embate interno: ele não conseguia se convencer de que a mulher que agora falava sobre o cartão do banco que tinha perdido era a personificação do mal.)

Chegaram ao destino depois de mais algumas conversas corriqueiras. Ao se despedir, ela agradeceu a corrida e desejou a ele um bom fim de semana e uma boa noite. Ele retribuiu. E então, não conseguiu conter-se:

- Veja se aparece lá na igreja! – gritou, quando ela abria a porta.

- Veja se vira ateu! – ela retribuiu, bem humorada, antes de fechá-la.

Ainda deu tempo de ouvir uma risada nervosa. 

A parábola do taxista me faz pensar em como a vida dos ateus poderá ser dura num Brasil cada vez mais evangélico – ou cada vez mais neopentecostal, já que é esta a característica das igrejas evangélicas que mais crescem. O catolicismo – no mundo contemporâneo, bem sublinhado – mantém uma relação de tolerância com o ateísmo. Por várias razões. Entre elas, a de que é possível ser católico – e não praticante. O fato de você não frequentar a igreja nem pagar o dízimo não chama maior atenção no Brasil católico nem condena ninguém ao inferno. Outra razão importante é que o catolicismo está disseminado na cultura, entrelaçado a uma forma de ver o mundo que influencia inclusive os ateus. Ser ateu num país de maioria católica nunca ameaçou a convivência entre os vizinhos. Ou entre taxistas e passageiros.

Já com os evangélicos neopentecostais, caso das inúmeras igrejas que se multiplicam com nomes cada vez mais imaginativos pelas esquinas das grandes e das pequenas cidades, pelos sertões e pela floresta amazônica, o caso é diferente. E não faço aqui nenhum juízo de valor sobre a fé católica ou a dos neopentecostais. Cada um tem o direito de professar a fé que quiser – assim como a sua não fé. Meu interesse é tentar compreender como essa porção cada vez mais numerosa do país está mudando o modo de ver o mundo e o modo de se relacionar com a cultura. Está mudando a forma de ser brasileiro.

Por que os ateus são uma ameaça às novas denominações evangélicas? Porque as neopentecostais – e não falo aqui nenhuma novidade – são constituídas no modo capitalista. Regidas, portanto, pelas leis de mercado. Por isso, nessas novas igrejas, não há como ser um evangélico não praticante. É possível, como o taxista exemplifica muito bem, pular de uma para outra, como um consumidor diante de vitrines que tentam seduzi-lo a entrar na loja pelo brilho de suas ofertas. Essa dificuldade de “fidelizar um fiel”, ao gerir a igreja como um modelo de negócio, obriga as neopentecostais a uma disputa de mercado cada vez mais agressiva e também a buscar fatias ainda inexploradas. É preciso que os fiéis estejam dentro das igrejas – e elas estão sempre de portas abertas – para consumir um dos muitos produtos milagrosos ou para serem consumidos por doações em dinheiro ou em espécie. O templo é um shopping da fé, com as vantagens e as desvantagens que isso implica.

É também por essa razão que a Igreja Católica, que em períodos de sua longa história atraiu fiéis com ossos de santos e passes para o céu, vive hoje o dilema de ser ameaçada pela vulgaridade das relações capitalistas numa fé de mercado. Dilema que procura resolver de uma maneira bastante inteligente, ao manter a salvo a tradição que tem lhe garantido poder e influência há dois mil anos, mas ao mesmo tempo estimular sua versão de mercado, encarnada pelos carismáticos. Como uma espécie de vanguarda, que contém o avanço das tropas “inimigas” lá na frente sem comprometer a integridade do exército que se mantém mais atrás, padres pop star como Marcelo Rossi e movimentos como a Canção Nova têm sido estratégicos para reduzir a sangria de fiéis para as neopentecostais. Não fosse esse tipo de abordagem mais agressiva e possivelmente já existiria uma porção ainda maior de evangélicos no país.

Tudo indica que a parábola do taxista se tornará cada vez mais frequente nas ruas do Brasil – em novas e ferozes versões. Afinal, não há nada mais ameaçador para o mercado do que quem está fora do mercado por convicção. E quem está fora do mercado da fé? Os ateus. É possível convencer um católico, um espírita ou um umbandista a mudar de religião. Mas é bem mais difícil – quando não impossível – converter um ateu. Para quem não acredita na existência de Deus, qualquer produto religioso, seja ele material, como um travesseiro que cura doenças, ou subjetivo, como o conforto da vida eterna, não tem qualquer apelo. Seria como vender gelo para um esquimó.

Tenho muitos amigos ateus. E eles me contam que têm evitado se apresentar dessa maneira porque a reação é cada vez mais hostil. Por enquanto, a reação é como a do taxista: “Deus me livre!”. Mas percebem que o cerco se aperta e, a qualquer momento, temem que alguém possa empunhar um punhado de dentes de alho diante deles ou iniciar um exorcismo ali mesmo, no sinal fechado ou na padaria da esquina. Acuados, têm preferido declarar-se “agnósticos”. Com sorte, parte dos crentes pode ficar em dúvida e pensar que é alguma igreja nova.

Já conhecia a “Bola de Neve” (ou “Bola de Neve Church, para os íntimos”, como diz o seu site), mas nunca tinha ouvido falar da “Novidade de Vida”. Busquei o site da igreja na internet. Na página de abertura, me deparei com uma preleção intitulada: “O perigo da tolerância”. O texto fala sobre as famílias, afirma que Deus não é tolerante e incita os fiéis a não tolerar o que não venha de Deus. Tolerar “coisas erradas” é o mesmo que “criar demônios de estimação”. Entre as muitas frases exemplares, uma se destaca: “Hoje em dia, o mal da sociedade tem sido a Tolerância (em negrito e em maiúscula)”. Deus me livre!, um ateu talvez tenha vontade de dizer. Mas nem esse conforto lhe resta.

Ainda que o crescimento evangélico no Brasil venha sendo investigado tanto pela academia como pelo jornalismo, é pouco para a profundidade das mudanças que tem trazido à vida cotidiana do país. As transformações no modo de ser brasileiro talvez sejam maiores do que possa parecer à primeira vista. Talvez estejam alterando o “homem cordial” – não no sentido estrito conferido por Sérgio Buarque de Holanda, mas no sentido atribuído pelo senso comum.

Me arriscaria a dizer que a liberdade de credo – e, portanto, também de não credo – determinada pela Constituição está sendo solapada na prática do dia a dia. Não deixa de ser curioso que, no século XXI, ser ateu volte a ter um conteúdo revolucionário. Mas, depois que Sarah Sheeva, uma das filhas de Pepeu Gomes e Baby do Brasil, passou a pastorear mulheres virgens – ou com vontade de voltar a ser – em busca de príncipes encantados, na “Igreja Celular Internacional”, nada mais me surpreende.

Se Deus existe, que nos livre de sermos obrigados a acreditar nele.

*Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. elianebrum@uol.com.br

O legado da Fifa na saúde e educação

Programa da Fifa em parceria com três ministérios ensina hábitos “saudáveis” em escolas públicas; especialistas consideram o conteúdo, a concepção de promoção à saúde e de currículo um retrocesso

 
Por Cátia Guimarães
Da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – EPSJV – Fiocruz
25/03/2014

 
 
Quando as manifestações nas ruas gritaram que, em vez de Copa, queriam mais saúde e educação, talvez não soubessem que a Federação Internacional de Futebol (Fifa) está atuando também nessas áreas.


Continuando uma ação iniciada na África do Sul, em 2010, com o objetivo de deixar um “legado médico” para o país, a Fifa está promovendo no Brasil o programa “11 pela saúde”, que visa “ajudar os jovens” do país a “viver uma vida saudável”.


Legitimado por uma parceria dos ministérios da Saúde, Educação e Esportes, o programa apresenta conteúdos de saúde e abordagens educacionais que, segundo diversos especialistas, vão na contramão das políticas e das demandas da sociedade civil organizada no Brasil.

 
“A parceria com a Fifa está dada no âmbito de todos os demais ministérios. Trabalhar na perspectiva de ter legados para a saúde e a promoção se colocar como um desses legados é importante para o ministério da Saúde e para o governo brasileiro”, explica Débora Malta, coordenadora geral de vigilância de agravos e doenças não transmissíveis do Ministério da Saúde, responsável pela articulação com o programa.

 
No entanto, Carlos Eduardo Batistella, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que estuda currículo, principalmente na área da saúde, discorda: “É de estranhar que os Ministérios da Saúde e da Educação não tenham obstado essa iniciativa, uma vez que a construção de políticas de saúde e educação no país já nos autoriza a considerar que não precisamos de auxílio iluminado para estabelecer um ‘programa de educação séria sobre saúde’, como anuncia a Fifa no material do programa”.


Minutos e conteúdo contados


O “currículo” do programa é dividido em 11 sessões que associam um tema sobre futebol a uma mensagem sobre saúde, cada um trabalhado em 45 minutos, representando dois ‘tempos’ de uma partida de futebol.

 
No Brasil, uma versão-piloto do programa foi aplicada em Curitiba e agora esses professores estão treinando os outros. O material de referência é o Manual do Treinador, que orienta detalhadamente o professor sobre cada atividade que ele deve desenvolver com os alunos, determinando inclusive o número de minutos que cada etapa deve levar.

 
“O grau de prescrição de comportamentos chega a níveis absurdos, em que se propõe a criação de ‘círculo de elogios’ e a ‘lista de controle’ determina cada passo da preparação das sessões, seus tempos e movimentos”, analisa Batistella. O destino final dessas mensagens de saúde são alunos de 11 e 12 anos de escolas públicas das cidades-sede da Copa do Mundo do Brasil.

 
“A simples denominação do material como ‘Manual do Treinador’ já nos remete a duas questões bastante críticas no campo da educação: de um lado, assume uma perspectiva de forte diretividade, já que o uso do termo ‘manual’ quer restringir a atividade docente à mera implementação de um currículo prescrito, negligenciando a ação pedagógica como possibilidade de reconstrução de conhecimentos e sentidos. De outro, transparece uma visão de educação como adestramento, numa perspectiva comportamentalista que, nos últimos anos, tem sido reanimada – com nova roupagem – pela pedagogia das competências”, critica Batistella.

 
Colonização

 
A mensagem mais polêmica – embora não seja a única – é a que, junto com o uso de camisinha, indica a abstinência sexual e a fidelidade como formas de prevenção ao HIV/Aids.

 
O Ministério da Saúde garante que, na revisão que fez do material utilizado na África, retirou essas orientações. Débora reitera que a política brasileira investe apenas na prevenção por meio de preservativos. Mas o fato é que elas permaneceram na versão final do Manual do Treinador, utilizado para treinar os professores que, por sua vez, reproduzirão com os alunos o conteúdo e a dinâmica didática que aprenderam.

 
Perguntada sobre o que uma instituição que tem essa concepção de promoção e prevenção à saúde tem a ensinar às crianças brasileiras, a coordenadora do Ministério da Saúde afirmou que “toda parceria é bem-vinda” e legitimou o conhecimento técnico da Fifa nessa área. “O mote da Fifa realmente é o futebol, mas ela se valeu de especialistas. Ela tem discutido isso com a OMS (Organização Mundial de Saúde) há anos. O desenho está de acordo com os eixos da OMS na priorização das doenças crônicas não transmissíveis”, diz.

 
Para Batistella, a interferência da Fifa em ações de educação e saúde tem objetivos bastante específicos: “Numa época em que todo mundo educa, a Fifa aparece como a nova candidata ao posto de instituição educadora aos países subdesenvolvidos. Por trás da aparente benevolência dos países centrais, repete-se o velho mecanismo de colonização que já acompanhou a Europa na invenção do Oriente: o recurso ao estereótipo, a padronização de condutas servis, a disseminação de valores desejados para a manutenção do sistema”.

 
Mudança de comportamento

 
Especificamente em relação ao conteúdo de saúde do programa, a primeira crítica mais geral diz respeito à própria concepção de promoção da saúde que o sustenta, focada numa estratégia de informação para mudança do comportamento individual.


De acordo com Paulette Cavalcanti, pesquisadora do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (CpqAM/Fiocruz Pernambuco), tem-se lutado, no Brasil, por uma prática de promoção que seja coerente com o conceito ampliado de saúde. “Não é possível produzir carros sem se pensar na promoção da saúde, tocar uma fábrica de alimentos sem se pensar na quantidade de sal e outras substâncias que vão ser utilizadas”, exemplifica, lembrando que a diminuição do sal dos alimentos é uma ação muito mais estrutural para o controle da hipertensão do que a administração de medicamentos àqueles que já se tornaram hipertensos. Paulette explica que a grande referência mundial é a Carta de Ottawa, de 1986, que apresenta cinco eixos principais para essa concepção de promoção à saúde. “Apenas um eixo fala da mudança de comportamento. Mas o Brasil está elegendo exatamente esse para ser o principal”, diz. Todos os outros – criação de ambientes saudáveis, reforço da ação comunitária, reorientação dos serviços de saúde e um olhar para o futuro – dizem respeito à participação do Estado e da sociedade.


Água engarrafada

 
Na cartilha da Fifa, esse problema aparece, por exemplo, no tema do saneamento, presente na sessão ‘Beba água tratada’ que, segundo Alexandre Pessoa, engenheiro sanitarista e professor- -pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), não só dá destaque como incentiva, em uma das “mensagens-chave”, o uso de água engarrafada.

 
“Essa abordagem trata os recursos hídricos como mercadoria, desconsiderando todo o debate sobre a universalização do direito à água. Ao se naturalizar o uso de água engarrafada como referência de água tratada, está-se ignorando que é obrigação do Estado fornecer água em quantidade e qualidade necessárias para o consumo humano”, diz. Alexandre considera também injustificável que, com toda a importância que a questão ambiental tem nos dias de hoje, um programa de promoção à saúde não aborde em nenhum momento a importância do uso racional da água.


Fora de contexto

Ana Lucia Pontes, médica e também professora-pesquisadora da EPSJV/ Fiocruz, faz o mesmo debate em relação à sessão ‘Controle seu peso’. Segundo ela, a cartilha ignora que o que as comunidades de baixa renda, muito presentes nas escolas públicas em que esse programa está sendo aplicado, têm à sua disposição são alimentos de baixa qualidade nutricional.
 

“Não é um questão de escolha, como o programa faz parecer”, diz. Ela destaca um trecho da cartilha que afirma que não se precisa ser rico para seguir uma dieta equilibrada, já que frutas, legumes e carboidratos seriam mais baratos do que os alimentos ricos em gordura e açúcar.
 

“Essa é a grande ironia do momento atual. Os alimentos orgânicos, que são livres de agrotóxicos, por exemplo, são os mais caros. As pessoas não podem plantar seus próprios alimentos e, em função da vida atribulada, desaprenderam a preparar alimentos que antes eram feitos em casa e a solução são os produtos industrializados. Na prática, nas condições urbanas de vida no Brasil, para se alimentar bem, tem que ser rico sim”, discorda.

 
O foco do papel do indivíduo na promoção à saúde fica evidente também, segundo a pesquisadora, na ausência de qualquer referência à propaganda de alimentos – já que as crianças, que são o público do programa, são uma das mais afetada pela publicidade que incentiva o consumo de refrigerantes, biscoitos, comidas de fast food e tantos outros alimentos nada saudáveis.
 

Para Ana Lucia, a abordagem desse tema com crianças seria também uma ótima oportunidade para ensiná-las a ler a tabela nutricional, o que, mais do que prescrever comportamentos, permitiria que elas participassem da escolha e da decisão sobre os alimentos mais saudáveis. Mas a cartilha não faz qualquer referência a isso. Bastistella conclui: “O que o currículo da Fifa ensina é o conformismo, a obediência e o individualismo, valores e atitudes esperadas ao papel de subordinação que se destina às crianças pobres nestes países”.


Destacando o mesmo tom comportamental da perspectiva de promoção à saúde do programa da Fifa, Alexandre Pessoa aponta, por exemplo, a ausência de qualquer discussão ou mesmo informação sobre o “caminho das águas” no conteúdo sobre saneamento. “Não se apresenta esse bem em todas as suas etapas, o que implicaria falar sobre a proteção dos mananciais, o combate à perda de água no transporte, o cuidado com a caixa d’água para daí chegar à filtração, entendendo que a fervura é o último recurso”, diz. E completa: “O programa tem uma abordagem comportamentalista normativa e, consequentemente, culpabilizadora. Ao fim e ao cabo, se algo não deu certo, a culpa é do indivíduo”. (Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – EPSJV – Fiocruz)