1 – Para além do fato da propriedade privada
ROSALVO SCHÜTZ
Os “Manuscritos de Paris” são
um conjunto de apontamentos e de estudos realizados por Karl Marx nos anos
1843/44 em seu exílio em Paris. Estes escritos, publicados apenas em 1932 em
Berlin, são também denominados “Manuscritos Econômico-Filosóficos”.
Como o nome revela, eles
tematizam simultaneamente questões econômicas e filosóficas. Neles Marx buscava
compreender os pressupostos estruturais e sociais da economia política. Sua
forma de proceder objetivava, portanto, desvelar a gênese social de conceitos econômicos,
uma vez que estes, por serem tomados como fatos dados, e, à medida que
mediatizavam as relações humanas da sociedade capitalista, emprestavam, em sua
opinião, uma aparente e enganadora naturalidade necessária a esta sociedade.
Mesmo sendo de uma variedade
temática incrível, a relação entre trabalho alienado e propriedade privada toma
uma importância singular ao longo dos “Manuscritos”, especialmente do primeiro.
Nas três primeiras partes deste, Marx faz estudos sobre economistas renomados –
entre eles J. B. Say, A. Smith e D. Ricardo – onde se destacam temas como
salário, renda da terra e lucro do capital. Percebe-se um claro esforço de Marx
a fim de entender os avanços destes economistas e, ao mesmo tempo, de
superá-los. Foram os próprios economistas, segundo Marx, que deixaram claro,
por exemplo, que, no modo capitalista de produção, a grande maioria das
pessoas, que depende exclusivamente da venda de sua força de trabalho para
sobreviver, está condenada a uma vida miserável, mesmo que a economia vá bem,
pois quanto mais o trabalhador produz mais ele aumenta aquilo que o domina, ou
seja, mais ele se torna impotente e relativamente pobre. E, quando a economia
está em decadência, o primeiro que sofre as conseqüências disto, sendo
submetido a salários de fome ou à miséria absoluta do desemprego, também é o
trabalhador. Mesmo admitindo que a única fonte de riqueza e valor é o trabalho,
estes mesmos economistas também afirmam uma superioridade dos proprietários em
relação aos trabalhadores. Para eles, isto era um fato pressuposto, que
resultava naturalmente da realidade.
Segundo Marx, isto só era
possível porque a “[...] economia política parte do fato da propriedade
privada. Não o explica” (MARX, 1975: 157). E, assim, ela é obrigada a aceitar
também suas conseqüências como inevitáveis. O que sugeriria, inclusive, uma
analogia com o mundo místico-religioso, onde a realidade só se torna aceitável
à medida que dogmas fundamentais são aceitos e pressupostos.
2 – A especificidade da propriedade privada
Do que foi acima exposto
decorre, portanto, que, caso se almeje qualquer possibilidade de questionamento
ou de transformação da realidade em questão (tematizada pelos economistas
apenas a partir de pressupostos dogmáticos), a desmistificação de conceitos, como
o de propriedade privada, se coloca como sendo uma tarefa da maior importância.
Por isto, a quarta e última parte do manuscrito leva o título “O Trabalho
Alienado” (Die entfremdete Arbeit). Marx passa, assim, de um trabalho mais
interpretativo de textos a uma perspectiva formuladora, com o objetivo de
superar uma “absurda mística da propriedade privada” (Idem: 153) que impediria
a humanidade de usufruir apropriadamente as riquezas socialmente produzidas.
Interessante é notar que, nessa
época, algo que hoje é aceito com uma extraordinária naturalidade ainda estava
em vias de constituição de sua legitimidade social: busca de propriedade
privada enquanto motor e fim do agir humano. Ou seja, a busca privada de
propriedade, o que, de antemão priva o outro de dela usufruir e que é a forma
específica de esta existir na sociedade capitalista. Daí seu caráter privado,
identificador de sua especificidade em relação a outras formas, como a
propriedade comunitária, social ou mesmo da simples posse. Esta característica
específica muito facilmente deixa de ser percebida por nós nos dias atuais. Ela
carrega consigo o pressuposto que torna possível a legitimidade social da
apropriação privada do trabalho alheio, sem que, para tanto, sejam necessárias
ameaças e coações físicas, como era o caso no escravismo, ou mesmo sem precisar
recorrer a uma suposta ordem teológica, como era o caso no período feudal. Por
esta especificidade de a propriedade na sociedade capitalista não estar
suficientemente clara, qualquer ameaça à mesma pode muito facilmente ser
convertida em ameaça a toda e qualquer forma de propriedade, inclusive da
simples posse. Até mesmo aqueles que não a possuem, ou que são regularmente
impedidos de usufruir os frutos de seu próprio trabalho (por sua condição específica
de trabalhadores), mesmos estes se sentem em risco com tal suposta ameaça. O
que é, sem dúvida, uma artimanha ideológica muito eficiente contra o
questionamento da propriedade privada, uma vez que qualquer questionamento é
logo sofisticamente convertido em ameaça às próprias condições de existência
material das pessoas e mesmo contra sua liberdade.
À época de Marx, esta forma de
propriedade ainda não gozava da legitimidade ideológica que tem nos dias
atuais. A existência da mesma era, muitas vezes e facilmente, associada a todo
tipo de mazelas humanas e sociais. Uma questão citada, por exemplo, por Thomas
Morus, em seu livro Utopia, é o processo violento de desapropriação de terras
ao qual foram submetidos imensos contingentes da população inglesa, que
exerciam sobre estas terras diversas formas de propriedade, que não a privada.
A causa da miséria decorrente desses processos de cercamento, processos
exercidos a fim de viabilizar a criação de ovelhas, com o objetivo de abastecer
as nascentes indústrias têxteis com matéria-prima, era identificada claramente
com a apropriação privada das terras. Não foram poucos os teóricos que
identificaram todo o tipo de misérias da época com a existência da propriedade
privada. Propostas dos socialistas utópicos, como as cooperativistas de
Proudhon ou mesmo os falanstérios de Charles Fourier, eram tentativas de se
contrapor à mesma, tida como a geradora de uma sociedade e de indivíduos cada
vez mais alienados de suas autênticas propriedades humanas e sociais. Segundo Marx,
no entanto, estes pensadores, em certa medida, partiam do mesmo pressuposto dos
economistas, pois assumiam dogmaticamente a propriedade privada como sendo um
fato dado, sem explicá-lo, deixando, assim, de entender a gênese social deste
fato.
Para, no entanto, poder
questionar algo a partir de sua gênese constituidora, é preciso entender suas
condições de possibilidade, ou, em outras palavras, a processualidade social e
humana pressuposta. O mérito da reflexão de Marx em relação ao tema, no escrito
em questão, é que, em vez de afirmar que a propriedade privada é a causa da
alienação, como faziam os socialistas utópicos, afirma o contrário: que o
trabalho alienado é a causa (condição de possibilidade) da propriedade privada.
Para continuar lendo o texto,
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