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domingo, 20 de maio de 2012

Propriedade Privada e Trabalho Alienado: desvendando imbricações ocultas

1 – Para além do fato da propriedade privada
ROSALVO SCHÜTZ
Os “Manuscritos de Paris” são um conjunto de apontamentos e de estudos realizados por Karl Marx nos anos 1843/44 em seu exílio em Paris. Estes escritos, publicados apenas em 1932 em Berlin, são também denominados “Manuscritos Econômico-Filosóficos”.
Como o nome revela, eles tematizam simultaneamente questões econômicas e filosóficas. Neles Marx buscava compreender os pressupostos estruturais e sociais da economia política. Sua forma de proceder objetivava, portanto, desvelar a gênese social de conceitos econômicos, uma vez que estes, por serem tomados como fatos dados, e, à medida que mediatizavam as relações humanas da sociedade capitalista, emprestavam, em sua opinião, uma aparente e enganadora naturalidade necessária a esta sociedade.
Mesmo sendo de uma variedade temática incrível, a relação entre trabalho alienado e propriedade privada toma uma importância singular ao longo dos “Manuscritos”, especialmente do primeiro. Nas três primeiras partes deste, Marx faz estudos sobre economistas renomados – entre eles J. B. Say, A. Smith e D. Ricardo – onde se destacam temas como salário, renda da terra e lucro do capital. Percebe-se um claro esforço de Marx a fim de entender os avanços destes economistas e, ao mesmo tempo, de superá-los. Foram os próprios economistas, segundo Marx, que deixaram claro, por exemplo, que, no modo capitalista de produção, a grande maioria das pessoas, que depende exclusivamente da venda de sua força de trabalho para sobreviver, está condenada a uma vida miserável, mesmo que a economia vá bem, pois quanto mais o trabalhador produz mais ele aumenta aquilo que o domina, ou seja, mais ele se torna impotente e relativamente pobre. E, quando a economia está em decadência, o primeiro que sofre as conseqüências disto, sendo submetido a salários de fome ou à miséria absoluta do desemprego, também é o trabalhador. Mesmo admitindo que a única fonte de riqueza e valor é o trabalho, estes mesmos economistas também afirmam uma superioridade dos proprietários em relação aos trabalhadores. Para eles, isto era um fato pressuposto, que resultava naturalmente da realidade.

Segundo Marx, isto só era possível porque a “[...] economia política parte do fato da propriedade privada. Não o explica” (MARX, 1975: 157). E, assim, ela é obrigada a aceitar também suas conseqüências como inevitáveis. O que sugeriria, inclusive, uma analogia com o mundo místico-religioso, onde a realidade só se torna aceitável à medida que dogmas fundamentais são aceitos e pressupostos.

2 – A especificidade da propriedade privada
Do que foi acima exposto decorre, portanto, que, caso se almeje qualquer possibilidade de questionamento ou de transformação da realidade em questão (tematizada pelos economistas apenas a partir de pressupostos dogmáticos), a desmistificação de conceitos, como o de propriedade privada, se coloca como sendo uma tarefa da maior importância. Por isto, a quarta e última parte do manuscrito leva o título “O Trabalho Alienado” (Die entfremdete Arbeit). Marx passa, assim, de um trabalho mais interpretativo de textos a uma perspectiva formuladora, com o objetivo de superar uma “absurda mística da propriedade privada” (Idem: 153) que impediria a humanidade de usufruir apropriadamente as riquezas socialmente produzidas.
Interessante é notar que, nessa época, algo que hoje é aceito com uma extraordinária naturalidade ainda estava em vias de constituição de sua legitimidade social: busca de propriedade privada enquanto motor e fim do agir humano. Ou seja, a busca privada de propriedade, o que, de antemão priva o outro de dela usufruir e que é a forma específica de esta existir na sociedade capitalista. Daí seu caráter privado, identificador de sua especificidade em relação a outras formas, como a propriedade comunitária, social ou mesmo da simples posse. Esta característica específica muito facilmente deixa de ser percebida por nós nos dias atuais. Ela carrega consigo o pressuposto que torna possível a legitimidade social da apropriação privada do trabalho alheio, sem que, para tanto, sejam necessárias ameaças e coações físicas, como era o caso no escravismo, ou mesmo sem precisar recorrer a uma suposta ordem teológica, como era o caso no período feudal. Por esta especificidade de a propriedade na sociedade capitalista não estar suficientemente clara, qualquer ameaça à mesma pode muito facilmente ser convertida em ameaça a toda e qualquer forma de propriedade, inclusive da simples posse. Até mesmo aqueles que não a possuem, ou que são regularmente impedidos de usufruir os frutos de seu próprio trabalho (por sua condição específica de trabalhadores), mesmos estes se sentem em risco com tal suposta ameaça. O que é, sem dúvida, uma artimanha ideológica muito eficiente contra o questionamento da propriedade privada, uma vez que qualquer questionamento é logo sofisticamente convertido em ameaça às próprias condições de existência material das pessoas e mesmo contra sua liberdade.
À época de Marx, esta forma de propriedade ainda não gozava da legitimidade ideológica que tem nos dias atuais. A existência da mesma era, muitas vezes e facilmente, associada a todo tipo de mazelas humanas e sociais. Uma questão citada, por exemplo, por Thomas Morus, em seu livro Utopia, é o processo violento de desapropriação de terras ao qual foram submetidos imensos contingentes da população inglesa, que exerciam sobre estas terras diversas formas de propriedade, que não a privada. A causa da miséria decorrente desses processos de cercamento, processos exercidos a fim de viabilizar a criação de ovelhas, com o objetivo de abastecer as nascentes indústrias têxteis com matéria-prima, era identificada claramente com a apropriação privada das terras. Não foram poucos os teóricos que identificaram todo o tipo de misérias da época com a existência da propriedade privada. Propostas dos socialistas utópicos, como as cooperativistas de Proudhon ou mesmo os falanstérios de Charles Fourier, eram tentativas de se contrapor à mesma, tida como a geradora de uma sociedade e de indivíduos cada vez mais alienados de suas autênticas propriedades humanas e sociais. Segundo Marx, no entanto, estes pensadores, em certa medida, partiam do mesmo pressuposto dos economistas, pois assumiam dogmaticamente a propriedade privada como sendo um fato dado, sem explicá-lo, deixando, assim, de entender a gênese social deste fato.
Para, no entanto, poder questionar algo a partir de sua gênese constituidora, é preciso entender suas condições de possibilidade, ou, em outras palavras, a processualidade social e humana pressuposta. O mérito da reflexão de Marx em relação ao tema, no escrito em questão, é que, em vez de afirmar que a propriedade privada é a causa da alienação, como faziam os socialistas utópicos, afirma o contrário: que o trabalho alienado é a causa (condição de possibilidade) da propriedade privada.
Para continuar lendo o texto, acessar: Espaço Acadêmico

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