Publicado em Quinta, 04 Julho
2013
Brasil - Diário Liberdade -
[Danilo Enrico Martuscelli, UFFS] Os protestos recentes, que tomaram as ruas de
várias cidades do país, podem ser caracterizados como uma combinação de
espontaneísmo com movimento organizado. O espontaneísmo tem se manifestado por
meio de pautas difusas que questionam a malversação das verbas públicas, a
corrupção no sistema político, a legitimidade dos partidos políticos, entre
outros pontos. Trata-se de pautas com conteúdo progressista, mas facilmente
apropriadas pelas forças conservadoras, justamente por se fixarem no plano das
denúncias, sem apresentarem medidas concretas para solucionar as mazelas
apontadas. Já o movimento organizado tem se valido da reivindicação de pautas
concretas, frutos, na maioria das vezes, da experiência de lutas travadas por
diversos grupos políticos e movimentos sociais ao longo das últimas décadas.
Queremos ressaltar, com isso, que as lutas pelo passe livre, por mais verbas
para a educação e para a saúde, pela tributação das grandes fortunas, pela
redução da jornada de trabalho, pela democratização da mídia, não surgiram em
junho de 2013, mas são resultantes de muitos debates e embates realizados nas
ruas e nos mais variados espaços sociais. São exatamente as pautas concretas,
construídas nas lutas que têm sido até agora vitoriosas, o que nos leva a
salientar a importância da mobilização e da organização na luta por direitos e
pela ampliação de conquistas democráticas.
Quem tem acompanhado o
noticiário deve ter percebido a dificuldade que os diferentes governos e
prefeituras têm tido para compreender e lidar com os protestos. Entre a
indisposição para a negociação e a tática de neutralizar os protestos, com a
inserção de pautas secundárias presentes nas manifestações de maneira difusa,
governos e prefeituras, com o apoio da mídia, têm tomado clara orientação, nos
últimos dias, no sentido da neutralização dos movimentos. É preciso ressaltar
que, desde a crise política de 2005, a bandeira da reforma política tem sido
defendida com unhas e dentes pela burguesia brasileira para se livrar de eventuais
"conturbações" das massas. Ao contrário do que pregava a esquerda e a
centro-esquerda, não vivíamos a iminência de um golpe das elites, pois a maior
parte destas vinha defendendo a reforma política – e não, o impeachment de
Lula. Basta ler o documento "Agenda mínima para a governabilidade",
entregue ao governo Lula por seis entidades empresariais (CNI, CNA, CNT, CNC,
CNF e Ação empresarial), em agosto de 2005, e as declarações dos presidentes da
Fiesp e da Febraban, na mídia, para chegarmos à conclusão de que a burguesia
brasileira não queria conviver novamente com o movimento de massas que tomou as
ruas de todo o Brasil em 1992 para pedir a cabeça de Collor de Mello - hoje,
aliado dos governos Lula e Dilma. A defesa da reforma política é retomada,
agora, não só como uma forma de neutralizar as manifestações de massa que vêm
questionando as cláusulas pétreas da rolagem da dívida pública e da isenção
fiscal, e concessão de serviços e atividades públicos ao capital privado, mas
também como um meio de superar a instabilidade política que atingiu o
país. Além disso, é uma pauta que pega
de surpresa o movimento organizado, não havendo sequer acúmulo suficiente por
parte deste para debatê-la. Alguns poderiam dizer que a inserção do tema na
pauta dos debates nacionais, ajudaria a fomentar o conhecimento da matéria. No
entanto, é preciso reconhecer que o que se pode ou não fazer com uma reforma
política, o significado de uma assembleia constituinte exclusiva e as
diferenças existentes entre plebiscito e referendo se apresentam como questões
bem distantes da compreensão do grande público e de parte considerável da
intelectualidade e das forças e movimentos progressistas organizados. Se
desejasse realizar mudanças substanciais e progressistas com a reforma política,
o governo Dilma teria que primeiramente ouvir e negociar a matéria com tais
forças e movimentos, de modo a amadurecer a proposta e permitir que a mesma
ganhasse capilaridade. Nada disso fez, preferiu o voluntarismo, tornando-se
presa fácil da oposição de direita, dos partidos de aluguel aliados e das
forças conservadoras que compõem o seu governo.
Para fazer o jogo de que é um
governo progressista, a presidente Dilma sugeriu a ideia de que a reforma
política poderia ser debatida por meio da organização de um plebiscito que
aprovaria uma assembleia constituinte exclusiva sobre o tema. No entanto, em
menos de 24 horas depois de ir à rede nacional lançar a proposta, a presidente
Dilma, sob pressão da própria base e da oposição, procurou abortar a ideia inicial
da assembleia constituinte exclusiva. Se acreditássemos no que diz o governo, a
oposição de direita e a imprensa, seríamos levados a concluir que a medida era
inconstitucional e por isso não poderia ser levada adiante. Do ponto de vista
jurídico, não há consenso sobre a matéria, já que alguns especialistas da área
do direito têm defendido a constitucionalidade da proposta. No entendimento
desses especialistas, para autorizar a realização de um plebiscito para aprovar
ou não a assembleia constituinte exclusiva, a presidente da República
precisaria encaminhar uma proposta de emenda constitucional ao Congresso
Nacional, que, por sua vez, teria que aprová-la por maioria qualificada. Do
ponto de vista político, diferentemente do método adotado pela assembleia
constituinte de "congressistas" de 1987-1988, a realização de uma
assembleia constituinte exclusiva com representantes externos ao Congresso
Nacional poderia abrir precedentes para uma maior politização do debate acerca
da reforma política, algo muito inconveniente para o governo, a oposição de
direita e a imprensa. Obviamente, o problema não era jurídico, mas político!
A recente divulgação dos cinco
temas propostos pela presidência da República ao Senado indica claramente a
natureza despolitizada do debate em curso sobre a reforma política. Os cinco temas sugeridos são os seguintes: 1)
financiamento de campanha; 2) sistema eleitoral; 3) suplência do senador; 4)
fim do voto secreto em deliberações do Congresso Nacional; 5) fim das
coligações partidárias proporcionais. Com exceção da questão do fim do voto
secreto nas decisões do Congresso, todos os demais seguem a lógica da reforma
política sem reformas. O ponto do financiamento de campanha é importante, mas o
fundamental é saber como se daria a distribuição do financiamento público, caso
seja aprovado o financiamento público exclusivo. Já o tema do sistema eleitoral
foi inserido no plebiscito para gerar confusão, pois a votação pode seguir
várias diretrizes: voto majoritário, voto proporcional com lista fechada, voto
proporcional com lista flexível, voto distrital, voto distrital misto. Aqui o
propósito do plebiscito parece se confundir com uma prova objetiva de ciência
política, de marcar "X". A questão da suplência do senador chega a
ser risível e está muito distante de ser uma preocupação nacional para ser
votada num plebiscito. Imaginem-se as manchetes de jornal informando que o
Brasil realiza plebiscito para aprovar a permanência ou não da suplência do
senador... Por fim, é curioso constatar a inserção da votação sobre a
continuidade ou não das coligações partidárias nas eleições proporcionais. Isso
não faz o menor sentido se colocado no mesmo regime de votação do sistema
eleitoral, pois, caso vencesse a proposta do voto distrital - tão desejada pela
oposição de direita - a votação das coligações nas eleições proporcionais não
teria nenhum efeito.
Pelo exposto, torna-se urgente
ampliar os espaços de debate sobre a reforma política. Se, num primeiro
momento, estava correta a crítica à manobra do governo de dar centralidade à
pauta da reforma política, consideramos que, agora, chegou o momento de mudar
de posição. A despeito da queda da popularidade da presidente Dilma, devemos
reconhecer que ela conseguiu transformar a pauta da reforma política numa pauta
central. Assim sendo, entendemos que cabe à esquerda e às forças progressistas
enfrentar o debate e politizá-lo. É com essa preocupação que indicamos abaixo
um conjunto de ideias e medidas que devem ser minimamente debatidas e
consideradas, caso não queiramos transformar a reforma política numa enquete
despolitizada que não aponte para mudanças substanciais, mantendo tudo como
está.
Para ser didático e correndo o
risco de ser superficial, apontamos questões que deveriam ser trabalhadas por
uma reforma política ampliada, portanto, não meramente restrita ao âmbito
partidário e eleitoral:
1) Criação de mecanismos de
controle popular
a) Criação de mecanismos para a
realização de amplos debates, na sociedade, sobre a reforma política,
promovendo-se a reforma por meio de assembleia constituinte exclusiva desde que
garantida a participação de representantes dos movimentos popular e sindical.
b) Instituição do mandato
revogatório. Após metade do mandato, desde que preenchido o requisito mínimo de
20% de assinaturas do total de eleitores, seria concedida à iniciativa popular
a prerrogativa de realizar referendo para aprovar ou não a continuidade do
ocupante do cargo executivo. Tal dispositivo existe na Constituição de outros
países, como é o caso da Venezuela.
c) Extensão da prerrogativa de
convocar plebiscitos e referendos sobre temas de relevância nacional à
iniciativa popular, desde que preenchido o requisito mínimo de 20% assinaturas
do total de eleitores.
2) Poder econômico e política
A reforma política não
resolverá o problema da influência do poder econômico sobre o processo
eleitoral, pois as desigualdades socioeconômicas existentes nas sociedades
capitalistas não colocam todos os indivíduos em condições de igualdade de
participação política, seja como candidato, seja como eleitor, nos processos
eleitorais. Nesse sentido, faz-se necessário construir, para além de uma defesa
genérica do financiamento público exclusivo de campanha, uma pauta que detalhe
como se dará a distribuição desse financiamento e que estabeleça mecanismos
para dificultar ou constranger a influência do poder econômico nos pleitos
eleitorais.
No âmbito da reforma política,
as seguintes medidas poderiam ser adotadas:
a) Aprovação do financiamento
público exclusivo de campanha. Medida a ser adotada não só para reduzir os
custos de campanha, mas também para ampliar as condições de concorrência dos
partidos que não recebem os volumosos recursos de empreiteiros, banqueiros e
outros financiadores privados, como os principais partidos: PT, PSDB, PMDB,
PSD, etc.
b) Destinação do montante total
do fundo partidário ao financiamento público exclusivo de campanha: 50% do
orçamento deveria ser destinado a todos os partidos de maneira igualitária e
50% dos recursos restantes deveriam ser distribuídos proporcionalmente de
acordo com a representação de cada partido nas instâncias legislativas federal,
estadual e municipal. Isso garantiria recursos mínimos para cada partido
realizar sua própria campanha e romperia, em certo sentido, com as assimetrias
fomentadas pelo atual modelo;
c) Criação de dispositivos
punitivos mais incisivos para os partidos que fizerem uso do caixa dois em suas
campanhas eleitorais. Uma possibilidade é transformar o caixa dois num crime
inafiançável.
d) Proibição do pagamento de
cabos eleitorais, com previsão de multas com valores correspondentes até 50% do
financiamento público recebido pelo partido, no caso de desrespeito a esse
dispositivo.
e) Garantia de uso de tempo
igual no horário eleitoral para todos os candidatos aos cargos executivos.
f) Garantia de divisão
igualitária de 50% do tempo do horário eleitoral para os partidos que disputam
as vagas, nos legislativos, e de distribuição proporcional dos 50% do tempo
restante de acordo com a representação de cada partido nos legislativos
federal, estadual e municipal.
g) Garantir na TV e no rádio,
durante o período eleitoral, o mesmo tempo de cobertura da campanha dos
candidatos aos cargos executivos, seja na publicização das matérias, seja na
realização dos debates entre tais candidatos.
Além disso, seria de suma
importância que a reforma política viesse acompanha da regulamentação da
taxação sobre grandes fortunas e da aprovação do imposto progressivo com vistas
a promover efeitos redistributivos de amplo alcance e tornar o processo eleitoral
menos vulnerável à influência do poder econômico.
3) Combater o carreirismo
a) Indexação do salário de
parlamentares e ocupantes de cargos executivos ao salário mínimo e
estabelecimento de um teto de 10 salários mínimos.
b) Permissão de uma única reeleição
e de, no máximo, três mandatos não consecutivos para os ocupantes de cargos
parlamentares e executivos.
c) Matrícula obrigatória aos
parlamentares e ocupantes de cargos executivos de seus filhos em escola
pública.
4) Voto
a) Manutenção do voto obrigatório.
b) Validação dos votos nulos e
brancos, tendo em vista sua importância para identificar o voto de protesto.
Caso a soma dos votos nulos e brancos seja superior ao percentual atingido pelo
primeiro colocado, convocação de novas eleições.
5) Fidelidade partidária e
fortalecimento dos partidos
a) Adoção, para as eleições de
cargos legislativos, da lista pré-ordenada de candidatos por partido,
observando-se critérios de gênero (50% de mulheres e 50% de homens). Tal
dispositivo poderá contribuir para neutralizar a força do personalismo político
e para transferir a posse do mandato para o partido do candidato. O parlamentar
que desejar mudar ou sair do partido de origem perderá o mandato, e o próximo
colocado da lista do partido passará a ocupar o seu lugar.
b) Criação de dispositivo para
calcular anualmente a taxa de infidelidade partidária nas votações, prevendo-se
a perda automática do mandato do parlamentar que contrariar em mais de 20% as
decisões da bancada do partido ou, quando for o caso, as decisões do Diretório
Nacional do seu partido.
Em resumo: para pensar numa
reforma política ampliada e efetivamente participativa, cabe aos setores de
esquerda e progressistas defenderem a realização de uma assembleia constituinte
exclusiva, caso contrário, corre-se o risco de transformar o plebiscito numa
enquete despolitizada e a reforma política numa farsa. Certamente, as mudanças
mais substanciais, ainda que nos limites da democracia burguesia, não ocorrerão
sem mobilização e movimento organizado nas ruas. Fica aqui também registrada a
pergunta: qual partido da ordem abraçaria o conjunto de medidas acima proposto?
Chapecó, 4 de julho de 2013.
Fonte:
Diário
Liberdade
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