Foto de arquivo pessoal. A tia Sandra (esquerda) é a mais
parecida com Lia, que reencontrou a família do pai morto em 2009.
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História de menina criada Belém pode esclarecer casos de crianças desaparecidas nas mãos de militares no Araguaia.
Lia Cecília da Silva Martins,
uma microempresária que vive na cidade de Catalão, em Goiás, é o elo perdido
que pode esclarecer um dos mais escabrosos crimes da ditadura militar: o
desaparecimento forçado de bebês e crianças filhos de militantes do PCdoB fuzilados
no Araguaia.
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Sequestrada com poucos meses de
idade e levada para um internato em Belém, no Pará, hoje aos 39 anos, Lia é um
desses bebês cuja sobrevivência assusta os militares que tentaram eliminar
todos os vestígios da guerrilha, sumindo inclusive com os órfãos do conflito.
Há informações que levam ao desaparecimento de oito crianças pelas mãos de
militares. Os indícios mais fortes rondam três casos.
Lia, o mais forte deles, ao ser
entregue por dois homens que se apresentaram como autoridades (um como delegado
e o outro como militar) ao orfanato Lar de Maria, um centro espírita no bairro
São Brás, em Belém, em junho de 1974, tinha o corpo cravejado de picadas de
mosquito e estava esquálida. A instituição, à época, era dirigida por um
coronel do Exército, Oli de Castro, seu fundador.
Pelos fragmentos de história
que chegam a Lia, antes a dupla teria tentado internar o bebê numa creche
conhecida por Berço de Belém, da igreja católica, no mesmo bairro, mas as
freiras que geriam a instituição não aceitaram o inusitado pedido.
A criança foi então deixada com
o casal Sandoval e Eumélia Martins, que cuidavam do centro espírita e do
orfanato, com a promessa de apanhá-la de volta. Nunca mais foram vistos.
Afeiçoada ao bebê, Eumélia a registrou clandestinamente como filha do casal no
dia 1º de julho de 1974 no cartório mais próximo.
Lia soube que havia sido
adotada aos nove anos de idade, mas só em 2009 se interessou pela história ao
ler uma reportagem publicada no jornal O Estado de S. Paulo. Era o relato de um
dos guias dos militares, José Maria Alves da Silva, o Zé Catingueiro, apontando
a existência de “um bebê branco” retirado da mãe pelos militares e que poderia
ser filho de um guerrilheiro.
“O relato tinha detalhes
parecidos com os da minha vida. Decidi então entrar em contato com o jornal”,
diz ela. Os episódios seguintes mudaram a vida de Lia e dos Castro, uma família
cearense que há quase duas décadas andava atrás de vestígios do ex-estudante de
farmácia e bioquímica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Antônio
Teodoro de Castro, quadro do PCdoB, conhecido entre os militantes por Raul,
desaparecido no Araguaia.
Traços faciais e DNA
Um a um, ela foi conhecendo os
oito irmãos de Raul. Primeiro a advogada Mercês, depois Maria Eliana, Paulo,
Roberto, Vitória, Socorro, Laura e Sandra. Num restaurante em Brasília, onde se
encontrava com Maria Eliana, veio a testemunhar um fato curioso: um amigo da
família Castro foi ao encontro de Maria Eliana e, depois de um abraçá-la,
estranhou o distanciamento de Lia: “poxa Sandra, você nem me cumprimentou”,
disse, dirigindo-se a Lia, que reagiu com certa perplexidade. Lia é parecida
com as irmãs do guerrilheiro, mas a semelhança mais notável é com Sandra, com a
qual foi confundida em outras ocasiões.
Em 2010, Lia decidiu tirar a
limpo sua história. Um primeiro teste, de comparação dos detalhes faciais com
as tias tornaria desnecessário prosseguir a investigação, mas ela aceitou fazer
um teste de DNA. O laudo apontou 90% de coincidências entre seu código genético
e os de seis de seus tios. Os outros 10% poderiam ser eliminados se os restos
mortais de Raul fossem encontrados.
“Não temos dúvida de que a Lia
é filha de nosso irmão”, afirma Maria Eliana. Para confirmar oficialmente a
paternidade, ela solicitou que a Comissão de Mortos e Desaparecidos da
Secretaria Especial de Direitos Humanos (CMD-SEDH) faça o mesmo teste através
do banco de sangue de familiares de desaparecidos.
O pedido, encaminhado numa
petição de 24 páginas assinada pelo ex-presidente da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), Cezar Britto e pela advogada Camila Gomes de Lima, ao qual o IG
teve acesso com exclusividade, pode desvendar o último segredo da história de
Lia.
Filha da guerrilha
“Gostaria de saber quem é minha
mãe”, diz ela. “Me falaram que era estrangeira, que se incorporou à guerrilha e
que fazia também observações sobre o movimento de pássaros”, afirma. A petição
requer três informações: a função e legislação que rege o banco de sangue
criado pela SEDH; o resultado dos exames de amostras de sangue deixados por Lia
e seus prováveis tios; e, o mais importante, que os mesmos códigos de DNA sejam
cruzados com os de familiares de 12 guerrilheiras desaparecidas que conviveram
com Antônio Teodoro de Castro durante o período em que ele esteve no conflito,
entre 1972 e final de 1974.
Existem muitas lendas sobre o
“bebê branco” sequestrado pelos militares. A primeira, a de que seria filha de
Raul com uma moça da região, conhecida por Regina; a segunda, a de que seria
resultado do romance do guerrilheiro com a tal estrangeira; e, por último, que
seria filho de Raul com uma das militantes do PCdoB que morreram no Araguaia.
“É plausível que a Lia seja
filha de Theó (com o guerrilheiro era chamado em família) com uma das
guerrilheiras. Se não for, pelo menos descartaremos uma das hipóteses”, diz
Eliana. “Nos relatos nada é exatamente preciso. Por isso é razoável que se faça
o confronto com as guerrilheiras”, afirma a advogada Camila. Ela reclama da
morosidade da CMD-SEDH que, segundo afirma, tem adotado uma postura dúbia sobre
casos do gênero. As amostras de sangue estão com o órgão há mais de um ano.
A jornalista Myrian Alves, que
há duas décadas pesquisa a guerrilha, diz que diante da inconsistência das duas
primeiras hipóteses, é mais provável que Lia seja filha de Raul com outra
militante do PCdoB.
Porta da esperança
Maria Eliana conta que o
coordenador CMD, Giles Gomes, justificou a inércia do governo argumentando que
o caso é delicado por envolver a privacidade de familiares e sugeriu a
alternativa de quem não quer incômodo: que as amostras sejam colhidas depois de
uma negociação com parentes das guerrilheiras. A sugestão foi aceita.
“Nunca deixei de buscar os meus
pais verdadeiros. O que me contaram é que fui arrancada dos braços de minha mãe
na prisão. Agora que sei quem é meu pai, um homem de caráter e idealista, vou
ajudar a encontrá-lo. Quero dar a ele um enterro digno
O requerimento dos advogados é
uma primeira tentativa de convencer o governo federal a cumprir sua obrigação,
prevista na Constituição e nos tratados internacionais. O documento foi
protocolado no dia 1º de abril, mas mesmo que a lei determine resposta em até
cinco dias, até hoje a CMD não respondeu.
Caso a demora persista, a
família de Raul pretende recorrer à mesma Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH), da Oranização de Estdos Americanos (OEA), que já condenou o
estado brasileiro por graves violações no caso da Guerrilha do Araguaia. Ela seguiria
o precedente adotado num caso semelhante pela família Maria Mascarena Gelman,
no Uruguai, que recorreu a CIDH e obrigou o governo de seu país a identificar
seus pais.
Lia viveu por 30 anos o
mistério de sua origem, mas só decidiu mergulhar mesmo na busca depois que seus
pais adotivos morreram. Ela guardou segredo sobre os contatos com os prováveis
tios por mais de um ano e só aceitou fazer o teste de DNA depois que Sandoval
faleceu, em 2010, aos 89 anos. Antes, quando tinha 16, um dos seis irmãos da
família adotiva, Paulo, chegou a sugerir que procurasse o apresentador Silvio
Santos e levasse sua história para o quadro Porta da Esperança, do SBT.
Desistiu ao perceber que Sandoval se sentira constrangido e inseguro.
Arrancada da mãe
“Meu pai adotivo me amou muito
e tinha medo de me perder. Também o amo e decidi então que enquanto vivesse não
tocaria no assunto. Mas nunca deixei de buscar os meus pais verdadeiros. O que
me contaram é que fui arrancada dos braços de minha mãe na prisão. Agora que
sei quem é meu pai, um homem de caráter e idealista, vou ajudar a encontrá-lo.
Quero dar a ele um enterro digno”, diz.
Lia é uma mulher simples, mas
sua visão de mundo é de uma objetividade e resignação raras para quem a vida
não para de provocar os sobressaltos. Durante as buscas pelo pai verdadeiro,
apaixonou-se pelo também microempresário Márcio Carneiro, dono de uma empresa
de capacitação de recursos humanos em Catalão. Do casamento, nasceu Cecília, a
neta do guerrilheiro que, por um daqueles golpes do destino, depois de uma luta
paralela travada pelo casal, faleceu de leucemia aos 14 meses de idade em 2011.
Ao seu tempo
“Minha história é forte, mas
tenho preparo espiritual. Fui criada dentro de um centro espírita e sei que
tudo vai acontecer no seu tempo” diz, resignada. “A Lia é um a dádiva”, afirma
Maria Eliana, emocionada com as descobertas.
A busca pela mãe, mais uma
luta, é um mosaico cujas peças já teriam sido juntadas ou descartadas se não
fosse a negligência do Estado brasileiro e do PCdoB. A família encaminhou à
SEDH uma lista de doze guerrilheiras que conviveram com Raul até este ser preso
e fuzilado em 1974.
“Não temos dúvida de que a Lia
é filha de nosso irmão.
O pedido prioriza os testes de
DNA com familiares de cinco guerrilheiras: Sueli Yomiko Kanayama; Lucia Maria
de Souza, conhecida por Sônia; Luiza Augusta Guarlippe, a Tuca; Dinalva
Conceição Teixeira, a Dina – guerrilheira mais famosa do Araguaia –; e Telma
Regina Cordeiro Correa, cujo apelido, Lia, por coincidência, foi um dos
prenomes de batismo da órfã que chegou ao Lar de Maria.
Como segunda opção, foram
incluídas na lista encaminhada a SEDH os nomes das guerrilheiras Maria Célia
Corrêa, Helenira Rezende de Souza Nazareth, Jana Moroni Barroso e Walkiria
Afonso da Costa, fuzilada em 25 de outubro de 1974, a última personagem da
guerrilha capturada viva e executada pelos militares.
Os casos Osvaldão e Dina
O esclarecimento do caso Lia
deve levar os familiares a pressionar pela busca de outras crianças
desaparecidas no Araguaia. Um deles é conhecido como o caso do “menino negro”,
de três anos de idade, cujos relatos apontam para a possibilidade de tratar-se
de mais um filho de Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, um militante de dois
metros de altura, militar, engenheiro, lutador de boxe e o mais caçado dos
guerrilheiros. Foi também o que mais laços – amorosos e de amizade – criou com
os camponeses da região. Chegou lá em 1966 como dono de garimpo e mariscador
(caçador que vende pele de animais) e, como Dina, faz parte das lendas do
Araguaia.
O suposto filho de Osvaldo,
segundo os moradores, teria sido retirado da mãe, Maria Castanheira, em
Araguarina, e nunca mais foi visto. Da mesma cidade teriam sido levadas outras
crianças, entre elas Lia. Abalada pela perseguição, Maria teria morrido “dos
nervos”, segundo relato de camponeses. “José Reis, um dos oficiais que
estiveram no comando da repressão no Araguaia me contou que o filho de Osvaldo
foi adotado por um militar que o levou para Fortaleza”, conta jornalista Myrian
Alves. O menino, segundo ela, chama-se Giovani e seu desaparecimento é
amplamente conhecido na região.
O outro caso envolve Dina. Ao
ser presa por Curió em julho de 1974, junto com Tuca, dizem os moradores, ela
estava grávida e, antes de ser executada, teria dado a luz a uma menina. Os
pesquisadores dizem que os casos dos bebês e crianças desaparecidas no Araguaia
fazem parte de uma história oral, sem documentos de comprovação. Os rastros
podem estar em orfanatos – como o de Belém –, destinos frequentes de órfãos de
oponentes executados pelas Forças Armadas ao longo dos conflitos ocorridos no
Brasil.
Fonte: Último
Segundo
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