antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, em sua casa, em São Paulo |
Por RICARDO MENDONÇA
A
antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, uma das mais influentes estudiosas da
questão indígena no país, acusa a gestão Dilma Rousseff de promover um
desenvolvimentismo de "caráter selvagem", sem "barreiras que
atendam a imperativos de justiça, direitos humanos e conservação". Para
ela, Dilma "parece estar cada vez mais refém do PMDB e do agronegócio, que
se aliou aos evangélicos".
Após citar "uma ofensiva
sem precedentes no Congresso contra os índios", ela chama a atenção para
um projeto de lei -- alçado ao status de urgência "com o beneplácito do
líder do governo"-- que permitiria o uso de terras indígenas para diversas
finalidades, da construção de hidrelétricas à reforma agrária. "Se passar,
será a destruição dos direitos territoriais indígenas", diz. Outro alerta
é para a proposta que tenta tirar do Executivo a responsabilidade exclusiva
pelas demarcações, passando atribuições ao Congresso. Isso, diz, fará com que a
demarcação "deixe de ser uma atividade de caráter eminentemente técnico e
passe a ser exclusivamente político".
Folha - O que distingue o
governo Dilma dos anteriores na questão indígena?
Manuela Carneiro da Cunha - Já
disse em outra ocasião que neste governo a mão direita e a mão esquerda parecem
se ignorar. A esquerda promove uma maior justiça social; a direita promove um
chamado desenvolvimento sem qualquer limite.
O problema não é o
desenvolvimentismo em si, mas seu caráter selvagem: a ausência de barreiras que
atendam a imperativos de justiça, de direitos humanos, de conservação. Custos humanos
e ambientais não estão sendo considerados.
Assiste-se agora a uma ofensiva
sem precedentes no Congresso contra os índios. São vários projetos que destroem
garantias que a Constituição de 1988 assegurou. E a União, que é a tutora,
portanto a protetora dos direitos indígenas, não se ergue contra isso.
A própria AGU (Advocacia-Geral
da União), que se pautava por uma tradição de defesa dos direitos indígenas, se
aliou à bancada ruralista quando editou a infeliz portaria 303 (norma que
estende para todas as demarcações as 19 condicionantes criadas pelo Supremo
Tribunal Federal no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, de Roraima).
Como interpretar as recentes
ações do governo?
Adotando uma interpretação
caridosa, eu diria que o governo cede a pressões dos ruralistas, e rifa os
direitos indígenas em troca de apoio.
Assim, na última quarta deu-se
uma manobra escandalosa na Câmara: aprovou-se colocar em votação por acordo de
líderes, e com o beneplácito do líder do governo, o regime de urgência para o
Projeto de Lei Complementar 227/2012, que regulamentaria o parágrafo 6 do
artigo 231 da Constituição, aquele que trata das terras indígenas.
O que significa?
Esse parágrafo abre uma exceção
nos direitos de posse e usufruto exclusivo dos índios quando se tratar de
relevante interesse da União.
O projeto, de autoria do
vice-presidente da Confederação Nacional da Agricultura, pretende definir o que
seria relevante interesse público da União. É assombrosa essa definição:
praticamente tudo nela cabe. Permitiria que em terras indígenas passassem
estradas, oleodutos, linhas de transmissão, hidrelétricas, ferrovias.
Permitiria que se concedessem
áreas a terceiros em faixas de fronteira, que se mantivessem posseiros,
agrupamentos urbanos, assentamentos de reforma agrária e até novos
assentamentos. Permitiria que se mantivessem todas as terras sob domínio
privado quando da promulgação da Constituição de 1988.
Permitiria tudo?
Esta cláusula seria o
equivalente da anistia que os ruralistas conseguiram no Código Florestal. Mas
dessa vez não se trataria de escapar de multas e de ter de recompor paisagens
degradadas. Seria legalizar e perpetuar o esbulho. Se uma lei como essa passar,
será a destruição dos direitos territoriais indígenas.
As condicionantes do STF e a
portaria da AGU que a senhora citou foram muito criticadas por indígenas e
antropólogos. Quais são os problemas?
Várias dessas condicionantes
surgiram como uma forma de permitir um consenso entre os ministros do STF em
relação ao caso Raposa Serra do Sol. Quando a Advocacia-Geral da União quis
estender a outros casos essas condicionantes, que ainda dependem de uma análise
mais aprofundada do próprio Supremo, e que foram estabelecidas para aquele caso
concreto, ela tentou consolidar abusivamente uma interpretação desfavorável aos
índios.
Cite um exemplo!
Um exemplo é a alegada
proibição de ampliação de terras indígenas. Essa condicionante se referia ao
caso da Raposa, cuja demarcação havia sido validada pelo tribunal: não caberia
ampliação de uma área recém demarcada. Quando se aplica essa mesma condição às
terras guaranis, demarcadas em outro contexto, décadas atrás, fica evidente o
absurdo. Nesse sentido, a portaria 303 é muito grave, pois denota uma intenção
evidente de prejudicar os direitos indígenas em favor de interesses econômicos,
contrariando toda a história da própria AGU, que sempre se destacou na defesa
desses direitos.
O governo quer envolver a
Embrapa, entre outros órgãos, nos processos de demarcação. Para alguns, há uma
tentativa de enfraquecer a Funai. Qual a opinião da senhora?
A presidenta parece estar cada
vez mais refém do PMDB e do agronegócio, que se aliou aos evangélicos. Esse
bloco se opõe ferozmente à demarcação e à desintrusão (retirada de invasores)
das áreas indígenas.
Marta Azevedo (presidente da
Funai que deixou o cargo em junho) anunciou desde sua posse que daria
prioridade à situação nas regiões onde se concentram os interesses dos fazendeiros.
Foi um feito no ano passado conseguir a desintrusão, após 20 anos, da área
Xavante Marãiwatsede. Com isso, cutucou-se a onça com vara curta.
Há vários modos da mão direita
do governo enfraquecer a causa dos índios. Uma é retirando atribuições da Funai.
Outra é deixando-a sem dinheiro. E outra ainda é colocando como presidente
alguém a serviço de outras agendas.
Corre o boato de que o senador
Romero Jucá (PMDB-RR), que firmou sua carreira política como presidente da
Funai e cuja atuação foi muito criticada, gostaria de colocar no posto uma
pessoa sua.
Ganha força no Congresso a
ideia de tirar do Executivo a responsabilidade exclusiva pelas demarcações. Que
tal?
Se a PEC 215 (Proposta de
Emenda à Constituição) for aprovada, acabarão os processos de demarcação de
terras indígenas, pois os direitos dessas minorias serão submetidos aos jogos
de poder de todos os grupos de interesse representados no Congresso Nacional,
sobretudo à poderosa bancada ruralista.
Seria colocar a raposa para
cuidar do galinheiro. A demarcação deixa de ser uma atividade de caráter
eminentemente técnico, como é hoje, e passa ser exclusivamente política.
Mas o Projeto de Lei
Complementar 227/2012 (que define bens de interesse da União para fins de
demarcação) é muito mais grave. É um rolo compressor esmagando a Constituição
Federal.
Em que medida o Poder
Judiciário é corresponsável pela demora nas demarcações e pelos conflitos?
Estima-se que que pelo menos
90% das terras em processo de demarcação estão judicializadas. As demoras são às
vezes absurdas. No sul da Bahia, o caso Pataxó levou quase 100 anos para ser
julgado pelo STF. No Mato Grosso do Sul existem casos que estão há mais de 30
anos em processos judiciais.
Há uma tendência crescente e
preocupante do Judiciário de paralisar processos de demarcação administrativa
logo em seu início, com base na simples apresentação de títulos de propriedade
dos fazendeiros. Teses que há alguns anos atrás não vingavam, por não serem
condizentes com a Constituição, começam a ganhar espaço no Judiciário.
Isso tem atrasado muitos
processos demarcatórios, em todas as regiões do país, e contribuído para
aumentar o grau de conflito em muitos casos. É o que vem ocorrendo no Mato
Grosso do Sul.
Justiça que tarda não é
justiça. No caso dos guaranis e caiovás do Mato Grosso do Sul, há gerações
inteiras que nunca puderam viver sua cultura. A organização social tradicional
não tinha como ser mantida, costumes e rituais ligados à cultura do milho não
puderam ser realizados. Isso não seria etnocídio?
Há relação entre a morte de um
terena no Mato Grosso do Sul por forças policiais numa reintegração de posse de
uma área já declarada indígena e os protestos de mundurucus em Belo Monte, no
Pará?
Nos dois casos, a Polícia
Federal atuou contra os índios, e isso é inédito. Mas a relação é mais
profunda.
No Mato Grosso do Sul
consumou-se um esbulho de terras que vitimou em particular os terenas e os
caiovás. Estes, aliás, em situação muito pior do que a dos terenas. Esse mesmo
processo, que já estava em vigor no chamado arco do desmatamento, no norte de
Mato Grosso e sudeste do Pará, está agora atingindo o sudoeste do Pará e do
Amazonas, ou seja, o Tapajós, onde vivem os mundurucus.
Em suma: os mundurucus podem
bem ser os caiovás e terenas de amanhã. E os caiovás têm uma média de 0,5
hectare por família (índice considerado abaixo do mínimo necessário para a
própria subsistência).
O governo anunciou que vai
indenizar fazendeiros em Sidrolândia (MS) que estão em área já declarada de
terenas. Antes, as autoridades diziam que não havia respaldo legal para esse
tipo de solução. O que mudou?
Não se trata de comprar terras,
mas de indenizar os detentores de títulos de propriedade que, décadas atrás,
foram irregularmente emitidos pela União.
Os títulos eram irregulares na
medida em que incidiam sobre terras indígenas. Portanto, não se aplica a todas
as áreas onde exista conflito com particulares, mas só naquelas onde a União
está na origem do conflito, repassando terras indígenas a terceiros.
Para isso não é necessário mudar
uma vírgula da legislação vigente. Depende apenas da consolidação de um
entendimento jurídico pela AGU e de vontade política de desembolsar os
recursos.
O que o ministro Gilberto
Carvalho (Secretaria Geral) anunciou é a possibilidade de usar recursos do
Tesouro para compensar por títulos de boa fé que alguns fazendeiros possuem em
terras que estão judicializadas no Mato Grosso do Sul.
Os Estados também emitiram
títulos sobre terras indígenas, e muito. No Mato Grosso do Sul, a Assembleia
Legislativa aprovou por unanimidade a criação de um fundo para compensar em
dinheiro títulos de boa fé em terras indígenas. É uma solução semelhante à que
o governo federal está propondo. Mas o fundo do Mato Grosso do Sul não tem um
tostão. No caso da União, já há uma emenda parlamentar aprovada que destina R$
50 milhões para acordos.
O importante agora é priorizar
os casos mais dramáticos que envolvem os caiovás. E impedir o favorecimento de
grandes fazendeiros e a abertura de uma nova indústria de indenizações, que já
sangrou o Tesouro na década de 80.
Gilberto Carvalho também disse
que o Brasil está prestes a deixar a lista dos países acusados de desrespeitar
a Convenção 169 da OIT, documento que prevê consulta prévia aos indígenas antes
de decisões que possam afetar seus direitos, como a construção de
hidrelétricas. Há motivo para comemorar?
A Secretaria Geral da
Presidência vem fazendo um trabalho admirável dentro do governo, tentando
promover a regulamentação da consulta prévia aos povos indígenas, como
determina a Convenção 169. Mas falta combinar com o restante do governo, que
age em sentido contrário.
Veja o caso da implantação de
hidrelétricas goela abaixo dos povos indígenas no Tapajós: o governo diz que
quer consultá-los sobre o complexo de hidrelétricas, mas ao mesmo tempo já
marca data para o leilão e inclusive para a emissão da licença ambiental das
que ele considera principais. Que consulta é essa?
Uma verdadeira consulta se dá
nas comunidades -e não só com as lideranças ou organizações indígenas-, no
tempo delas e em língua que elas entendam e possam se expressar. E não pode ser
uma atividade pontual, e sim um processo que acompanhe todas as fases do
projeto.
Se está tudo decidido de
antemão, vai-se consultar os índios sobre o que? Se querem bolsa-pescado ou tanques
de piscicultura depois que os peixes do rio sumirem? A cor da parede da
barragem?
Houve um aumento significativo
da população indígena entre 1991 e 2000, conforme os Censos desses anos. Mas de
2000 a 2010, o crescimento foi proporcionalmente menor do que na população em
geral. Alguma hipótese para essa "volatilidade demográfica"?
Os demógrafos explicam esse
fenômeno. A categoria "indígena" surgiu no Censo de 1991. Até então a
maioria dos índios se declaravam pardos, e muitas vezes também negros ou brancos.
Em 1991 e em 2000, houve uma grande migração: muitos que se declaravam
anteriormente pardos passaram a se declarar indígenas.
Isso provavelmente incluía o
que (o antropólogo) Darcy Ribeiro chamou de "índios genéricos",
aqueles que, sendo descendentes de índios, não viviam em aldeias nem conheciam
os povos a que pertenciam seus pais ou avós. É o que explicaria 60 mil pessoas
que se declararam indígenas em São Paulo no Censo de 2000.
Já no Censo de 2010, é possível
que o fato de se perguntar também a etnia e a língua indígena que se falava
tenha inibido a auto-declaração desses descendentes de índios. Uma parte da
variação resultou, portanto, do próprio Censo.
Mas, desde 1991, observa-se um
crescimento demográfico maior da população indígena do que aquele da população
não indígena.
O crescimento entre 1991 e 2000
foi da ordem de 3,5% ao ano em média, e o ocorrido entre 2000 e 2010 foi também
dessa mesma ordem. Mas mantem-se um diferencial na mortalidade infantil: os
indígenas ainda possuem uma taxa de mortalidade infantil muito maior do que
aquela verificada entre os negros e brancos e amarelos.
A ideia, como princípio, de que
o índio tem direito à terra nunca foi muito questionada no Brasil, conforme a
senhora mesmo já disse. A Constituição não só consolidou esse entendimento como
estabeleceu prazo de cinco anos para todas as demarcações. Por que isso não foi
resolvido até hoje?
A legislação colonial e todas
as constituições do Brasil sempre reconheceram os direitos dos índios a suas
terras. Mas uma coisa é o princípio, outra sua aplicação. Na fábula clássica, o
lobo encontra justificações sucessivas para devorar o carneiro. É que, como diz
La Fontaine (escritor francês do século 17), "a razão do mais forte é
sempre a melhor".
Estamos assistindo a um remake
do Brasil passado, como se o século 20 nunca houvesse existido. Voltamos a ser
exportadores de commodities, voltamos a explorar riquezas sem consideração
pelos custos humanos e ambientais. E voltamos também ao expediente dos séculos
16 e 17: afirma-se o princípio, mas abrem-se exceções que o tornam inócuo.
É o que tenta fazer o Projeto
de Lei 227/2012: define o relevante interesse da União com tal latitude que as
garantias constitucionais dos índios se tornam letra morta.
Fonte: Folha
de S.Paulo
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