Osvaldo Coggiola
Depois da quarta jornada de
protestos, em que uma manifestação de 20 mil pessoas em São Paulo foi atacada
de modo selvagem pela PM (com um saldo de 150 detidos e 55 feridos), fomos
informados que “o comando do PT está insatisfeito com a atuação do prefeito
Fernando Haddad em relação aos protestos contra a tarifa. E, temendo a
nacionalização do problema, decidiu intervir para evitar que contamine a imagem
do partido em todo o país”. Tarde demais, Lula. A presidente Dilma Rousseff foi
vaiada (três vezes) na abertura da Copa das Confederações. A “contaminação”
chegou a Brasília. Mais significativo talvez, Joseph Blatter (presidente da
FIFA e mafioso internacional, segundo Diego Maradona, que alguma coisa aprendeu
a respeito em Nápoles) pediu respeito e foi vaiado mais ainda. O problema já
está “nacionalizado” (Rio de Janeiro, Goiânia, Natal e Porto Alegre tiveram
manifestações, além de São Paulo) e até “internacionalizado” (Blatter que o
diga), com piquetes solidários com os manifestantes brasileiros em várias capitais
do mundo (França, Alemanha, Portugal e Canadá). Os torcedores do Estádio Mané
Garrincha foram só os (circunstancialmente) últimos da lista. Até a juventude
do PT já declarou seu apoio aos protestos. E a viúva do Mané (Elza Soares)
cantou um novo samba: "R$0,20 eu não pago não". O Brasil se põe em pé
de luta, os jornais do mundo inteiro se fazem eco.
A PM “despreparada” (na
verdade, preparada demais para sua função precípua) desceu o sarrafo até em um
jornalista que carregava vinagre, declarado material para preparação de
explosivos por um comandante da corporação, numa linha de pensamento inaugurada
há dez anos, quando comandantes militares do superpreparado exército dos EUA no
Iraque exibiram tambores de inseticida como “armas de destruição em massa”,
aderindo, talvez de modo involuntário, à campanha ecológica mundial contra o
uso de agrotóxicos. Ninguém foi poupado, em São Paulo. Pessoas desmaiando,
gritaria, centenas de homens e mulheres presos e feridos gravemente, inclusive
idosos e crianças. “Segurança”. E já nos
informaram também que o principal saldo da Copa das Confederações, da Copa 2014
e da Olimpíada 2016, além das vitórias brasileiras, claro, será a
institucionalização dos “novos esquemas de segurança”...
O MP pediu 45 dias de trégua
para se chegar a um acordo (R$ 3,10?). Os administradores estatais do partido
de número 45 já anunciaram que, trégua ou não, não haverá cessar fogo da parte
da corporação militar/estatal dotada de armas calibre 45. Fernando Haddad,
exemplo perfeito do tecnocrata petista que cresceu à sombra de cargos
administrativos, obtidos a cavalo do esforço de milhares de militantes
populares na década de 1980 (e dos resistentes contra a ditadura nas décadas de
60 e 70), declarou, desde a inspiradora Paris, que aceitaria sentar para
discutir e negociar, mas sem abrir mão dos R$ 3,20. Doutor (e docente) em
Ciência Política pela USP, onde será que aprendeu o sentido das palavras
“discussão” e “negociação“? A longa licença para cargos comissionados parece
tê-lo feito esquecer noções básicas de vestibular.
Sentado ao seu lado estava o
governador do Estado, que meteu o bedelho nos assuntos metropolitanos e deu
carta branca para a PM estadual atuar, como se seu partido não tivesse perdido
as eleições municipais, e que demonstrou que leva bem a sério sua filiação à
Opus Dei, ao declarar os manifestantes “vândalos”, para honra retroativa do
nobre e pagão povo guerreiro das estepes europeias. Já o governador de Rio de
Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), qualificou as manifestações de ”políticas”, e
invocou sua condição de ex militante do Partido Comunista para justificar a
repressão. Ele sabe das coisas, vejam só. No Rio, todos os usuários do metrô
estão sendo submetidos a revistas policiais ex comunistas.
Desde as páginas da Folha de S.
Paulo (e de outros jornais brasileiros que compram sua coluna), jornal que,
como de hábito, tomou seu tempo para mudar o qualificativo de “vândalos” pelo
de “manifestantes”, Elio Gáspari também incursionou pelo campo
histórico/antropológico, qualificando os enfrentamentos nas ruas paulistanas de
“luta entre canibais e antropófagos”, ignorando que os primeiros são só uma
variante dos segundos. A luta entre a tribu caribenha que usava esse nome e os
colonizadores europeus concluiu na aniquilação total desse povo, em razão
declarada de 100x1 pelos evangelizadores espanhóis (100 canibais mortos para
cada espanhol idem), os quais, depois de realizado o massacre, cristiana e
civilizadamente, não os comeram.
No início da manifestação de
quinta-feira 13, frente ao Teatro Municipal, tudo estava pacífico, exceto pelas
revistas feitas pelos policiais prendendo qualquer um que estivesse com algo
que considerassem suspeito, inclusive vinagre. Muitos manifestantes distribuíam
flores entre as ativistas e à própria polícia. Mas havia muitos de “P2”,
policiais disfarçados, entre os manifestantes. A marcha seguiu organizada, sem
qualquer violência; quando os manifestantes já caminhavam havia cerca de 30
minutos, a palavra de ordem era: “sem violência”, ou seja, sem provocações. Quando
a manifestação chegou à Praça Roosevelt, a Tropa de Choque irrompeu pela parte
da frente do ato e outra parte por trás, encurralando os manifestantes. A
Polícia Militar (PM) começou a reprimir de forma violenta e generalizada. A
tropa de choque deu tiros e atirou contra a multidão: bala de borracha, gás de
pimenta e bombas de gás lacrimogêneo. A repressão generalizada durou cinco
horas, aterrorizando também os populares que passavam pela região.
Nem os jornalistas
identificados se salvaram: sete repórteres da Folha de S. Paulo ficaram
feridos, incluindo uma jornalista que feriu um olho com o tiro de uma bala de
borracha. Os estudantes que saíam de uma faculdade eram revistados um a um.
Alguns poucos tentaram improvisar, como defesa, barricadas de sacos de lixo, as
quais se ateava fogo. A “violência” dos manifestantes não passou disso. No
mesmo dia 13, Rio de Janeiro também parou e teve manifestações contra o seu
próprio aumento da tarifa.
R$ 0,20? Uma nova “revolta do
vintém”? Que seja. Já foi (bem) dito que a revolta, agora, é por muito mais:
pela dignidade, pela juventude, pelo direito democrático a manifestar na rua
(existe outro lugar?). Mas é também por 0,20. Ou por mais. R$ 0,20 multiplicado
por milhões, diariamente, numa cidade de 19,2 milhões de habitantes. Nos
últimos 15 anos, o custo da passagem de ônibus triplicou. Quem recebe um
salário mínimo em São Paulo e utiliza um ônibus e um metrô para ir e retornar
do trabalho tem um gasto que equivale a quase 27% de sua renda, e passa mais
três horas por dia em meios superlotados, isto é, um mês por ano.
0,20 foi a gota d’água
(pesada). Afinal, foram uns 0,20% a mais de matéria sobre antimatéria os que
provocaram o big bang. R$3,20 equivalem a US$ 1,50. Passagens mais caras do que
no “Primeiro Mundo”. Em Roma, por exemplo, qualquer cidadão (ou turista) tem
direito a um passe mensal de 30 euros (R$ 80), para usar qualquer meio de
transporte público (ónibus, trem, metrô). Noventa viagens por mês (três por
dia) custam menos de R$ 0,90 cada. Os estudantes (de qualquer nível) tem
direito a um passe anual, em que essa quantia cai para menos da metade. Mas,
claro, são estudantes europeus; não são estudantes, trabalhadores ou jovens de
periferia brasileiros. Que têm, como se sabe, um poder aquisitivo muito maior.
A grande imprensa achou um
arcano a destrinchar: a identidade do Movimento Passe Livre (MPL), no qual é
contabilizada a presença de alguns partidos (de esquerda) conhecidos, e de
outras siglas menos conhecidas (ou simplesmente desconhecidas). Plinio de Arruda
Sampaio, único político midiático que teve a honra de estar presente na
manifestação do dia 13, apontou que “quem faz vandalismo é um grupo
anarquista”, uma associação duvidosa de dois adjetivos. Um jornalista do Metrô,
jornal que, como outros, é subversivamente distribuído de modo gratuito (se há
jornais gratuitos, porque não ónibus gratuitos também?), chegou a elencar a
presença da LER, “Liga da Estratificação (sic) Revolucionária”. Atualização
urgente, vai precisar cada vez mais.
O Movimento Passe Livre,
principal articulador dos protestos, teve sua origem em uma revolta popular
espontânea na cidade de Salvador, em 2003, a “Revolta do Buzu”. Estendeu-se
nacionalmente, protagonizou a “revolta da catraca” em Florianópolis, conheceu
fortes debates políticos internos. A força da mobilização juvenil assustou uma
parte dos governos das prefeituras, a ponto de várias cidades abaixarem as
tarifas (Campinas), ou obedeceram decisão judicial nesse sentido (Goiânia). O
movimento já tem dez anos de história. No Fórum Social Mundial de Porto Alegre,
em 2005, ”institucionalizou” sua organização em torno de ir e vir na cidade
como direito básico que deve ser assegurado pelo poder público, assim como a
educação e a saúde, reivindicando a mudança do modelo de transporte, sob a
forma de concessões a empresários privados, para um modelo público. O que
exigiria, como outras transformações igualmente necessárias (a remodelação da
cidade e do espaço), atacar o atual regime social (capitalista).
Logo de cara, exige discutir a
espantosa dívida de municípios e estados (R$ 177,5 bilhões, só a do estado de
São Paulo, ou mais de 150% de sua receita fiscal) e seus beneficiários (os
tubarões financeiros), o controle público dos lucros espantosos das empresas
adjudicatárias do transporte urbano, sem falar no orçamento das forças de
repressão, em primeiro lugar a PM. Mas não é nada disso que discutem as siglas
que todo mundo conhece. Os jovens que lutam pelo passe livre iniciaram uma
virada política no país. 35 grupos de vários Estados convocam a sociedade para
participar de marchas nesta semana. Além das capitais já mobilizadas, estão
previstas manifestações em Belém (PA), Viçosa (MG), Juiz de Fora (MG), Bauru
(SP) e Foz do Iguaçu (PR) no mesmo dia. No exterior, haverá protestos solidários
em Bruxelas (Bélgica), Chicago (EUA), Berlim (Alemanha), Dublin (Irlanda),
Cambridge (EUA), Nova York (EUA), Montreal (Canadá), Boston (EUA), San Diego
(EUA), Los Angeles (EUA). Já não era sem tempo. O inverno brasileiro está
acabando: já se sentem no ar os cheiros da primavera.
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