A Comissão da Verdade, para sair de sua condição atual de "meia-verdade" deverá investigar os assassinados perpetrados pelo Estado também hoje, punindo a Polícia Militar e governantes envolvidos nesses crimes (são ações criminosas que ceifam vidas, inclusive de quem nenhum envolvimento direto tem nas ações). (Almoço das Horas).
POR WEDENCLEY ALVES
27/06/2013
Chacina na Maré relembra mortos
esquecidos pelas Comissões da Verdade. É hora de saber quem realmente merece
ser ouvido
Por Wedencley Alves
Desde segunda-feira, a polícia
vem demonstrando sua costumeira violência no complexo da Maré. Resultado: sete
mortos (até agora, às 11h do dia 25/06). Mas sempre foi assim. Há algum tempo
está pronta para ser escrita a genealogia da “violência urbana estimulada” no
Brasil.
Desde seu alvorecer, a ditadura
(militar e civil, é bom que se frise) e seus aliados foram complacentes e até
fomentaram os grupos de extermínio, cujo modelo é a Scuderie Lecqoc, famosa e
aplaudida até os anos 70. Seguiram-se outros “esquadrões da morte” e “polícias
mineiras”, para controle dos que incomodavam o desenvolvimento conservador e
concentrador do regime de exceção.
Vejam nas figuras abaixo: a
caveira “oficial” do Bope e a “extra-oficial” da Rota fazem parte de uma longa
memória discursiva brasileira.
Os perseguidos políticos não
foram as maiores vítimas (quantitativamente). Aliás, promovendo expulsão do
campo e concentração urbana, o regime literalmente encurralou pessoas nas
favelas e periferias, sob a ponta do fuzil. Não vejo comissões da verdade para
este fato: a origem da nossa cultura urbana de violência extrema.
O mesmo aconteceu nos anos 80,
quando a Rota em São Paulo fez a fama. Nos anos 90, o ex-governador do Rio,
Marcelo Alencar, por exemplo, condecorou o morticínio, na chamada “Gratificação
Faroeste”. Ao menos 200 mortos. Em entrevista com um coronel da PM, ouvi dele:
“Colegas meus escolhem uns pretos, atiram, registram como resistência e ganham
medalhas”.
Esse coronel estava enojado e
resolvera denunciar na imprensa alternativa, justamente porque ninguém queria
publicar na imprensa tradicional. Mídia e PM aliadas. Mas também bons
jornalistas – como Caco Barcellos, que denunciara 3 mil mortos em SP, sem
passagem pela polícia, e Carlos Nobre, com sua denúncia sobre mortes no Rio. E
bons policiais – como os coronéis Ivan Bastos e Carlos Magno Nazareth
Cerqueira, este assassinado, por não compactuar – furaram o bloqueio e
trouxeram luzes para o que estava acontecendo.
Ainda nos anos 90, tivemos a
demonstração lúgubre da insensatez do Carandiru – ação que até hoje muitos
defendem. Mas o pior estaria por vir em 2006. Em maio, depois da balbúrdia do
PCC, vingativa, a polícia de SP sai às ruas para caçar bodes expiatórios: 400
mortos, em quatro dias, sem qualquer ligação com o crime, muitos deles menores
de idade.
No Brasil, historicamente não é
a guerra a continuidade da política por outros meios, mas a opressão, o racismo
e o preconceito de classe e região, a continuidade da escravidão por outras
formas. Os chicotes de ontem são os fuzis de hoje. Bem piores, como se pode
ver.
Tudo com o beneplácito de quem
hoje se diz espantado. Como se os 60 mil mortos em uma década tivessem ocorrido
em outro país.
Em parte, o aprofundamento da
violência, que se acentuou nos anos 90, se deu graças ao que já foi teorizado
pela criminologia crítica como o mais grave efeito social do neoliberalismo: o
surgimento do Estado centauro, liberal apenas para quem pode, o governo penal
da miséria. Este é um debate que surge em países desenvolvidos. Ora, não
precisamos ser neoliberais para sermos tão trogloditas. Somos vanguarda.
Antecipamos a tendência.
A força política da classe
média (vide grande mobilização recente contra as balas de borracha) nunca foi
usada contra o extenso currículo da política de eliminação sumária de vidas que
importunam. Podemos dizer: seguramos as armas, para os policiais apertarem os
gatilhos. Nenhum governo, principalmente os estaduais, responsáveis diretos
pela violência, se sustentaria, se tais mortes causassem alguma comoção.
Um amplo debate está para ser
estimulado em nível nacional, embora o responsável direto por estas políticas
de violência sejam os estados. Não nos deixemos enganar. Os grupos de estudo
não bastam. As ações pontuais do Ministério da Justiça são interessantes, mas
não bastam. O aprofundamento e o estímulo à pesquisa na área, que aumentou em
muito, também não bastam.
Por outro lado, é a primeira
vez em décadas e décadas (talvez desde Getúlio), que a população mais pobre e
miserável tem alguém que olhe por ela (no seio de uma politica de Estado). Isso
faz dez anos. Daí a necessidade de distinguir as vozes que se dizem indignadas.
Os mesmos que ontem se enojavam
em pagar melhor empregadas domésticas, que acham que programas sociais são
desperdício de dinheiro, que acreditam que mais diversidade nas universidades é
“perda de qualidade”, estão assanhados em capitalizar as balas de borracha. E,
quiçá, as balas de fuzil.
Só há um percurso que devemos
respeitar: quem chorou pelos mortos de antes, quem se importunou com o
preconceito, quem defende a continuidade dos programas sociais, e quem nunca
desdenhou de pessoas, qualquer que seja a origem, a cor da pele, e o nível de
renda.
Todo o resto deve ser ignorado:
indignados de última hora, hipócritas em busca de luzes, oportunistas cujos
interesses são basicamente capitalizar a desgraça, para, ao final, mantê-la
como está ou ainda, quem sabe, devolvê-la aos níveis anteriores.
Esta é a hora de saber quem
você realmente pode ouvir. E quem merece, no máximo, um sorriso irônico.
Leia também: Só o PCC ameaça São Paulo?
Fonte: Outras
Palavras
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