Por
André Campos
Durante os
anos de chumbo, após o golpe de 1964, a Fundação Nacional do Índio (Funai)
manteve silenciosamente em Minas Gerais dois centros para a detenção de índios
considerados “infratores”. Para lá foram levados mais de cem indivíduos de
dezenas de etnias, oriundos de ao menos 11 estados das cinco regiões do país. O
Reformatório Krenak, em Resplendor (MG), e a Fazenda Guarani, em Carmésia (MG),
eram geridos e vigiados por policiais militares. Sobre eles recaem diversas
denúncias de violações de direitos humanos.
Os “campos
de concentração” étnicos em Minas Gerais representaram uma radicalização de
práticas repressivas que já existiam na época do antigo Serviço de Proteção aos
Índios (SPI) – órgão federal, criado em 1910, substituído pela Funai em 1967.
Em diversas aldeias, os servidores do SPI, muitos deles de origem militar,
implantaram castigos cruéis e cadeias desumanas para prender índios.
Os anos
desde o fim da ditadura pouco contribuíram para tirar da obscuridade a
existência dos presídios indígenas. Um silêncio que incomoda novas lideranças
como Douglas Krenak, 30 anos, ex-coordenador do Conselho dos Povos Indígenas de
Minas Gerais (Copimg). “Em 2009, recebi um convite para participar das
comemorações, em Belo Horizonte (MG), dos 30 anos da Anistia no Brasil. Havia
toda uma discussão sobre a indenização dos que sofreram com a ditadura, mas a
questão indígena não foi nem sequer lembrada”, reclama.
Douglas é
mais um entre os que têm histórias familiares de violência física e cultural
sofridas nesse período. “Meu avô foi preso no reformatório Krenak”, conta.
“Chegou a ser arrastado com o cavalo de um militar, amarrado pelos pés”.
Para a
pedagoga Geralda Soares, ex-integrante do Conselho Indigenista Missionário em
Minas Gerais (Cimi/MG), é fundamental reparar a dívida com os indígenas vítimas
de violências no período – que, acredita ela, não difere daquela reconhecida
como direito de outros grupos que sofreram nos porões da ditadura. “Muitos
desses índios, na minha concepção, são presos políticos. Na verdade, eles
estavam em uma luta justa, lutando pela terra”, defende. Não existe, no Brasil,
nenhum indivíduo ou comunidade indígena indenizado pelos crimes cometidos pelo
Estado nessas áreas de confinamento.
“Se cabe
para os outros, porque não cabe para os índios?”, questiona Maria Hilda
Baqueiro Paraíso, professora associada da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Ela lembra que há relatos de pessoas desaparecidas após ingressarem em tais
locais, cujos familiares vivem até hoje sem qualquer tipo de resposta do Estado
ou política de reparação.
A Comissão
Nacional da Verdade (CNV), instalada pelo governo federal em maio de 2012,
definiu os crimes contra camponeses e indígenas como um dos seus 13 eixos de
trabalho. O balanço de um ano de atividades da CNV, divulgado recentemente,
informa que a existência de prisões destinadas a índios é um dos seus objetos
de pesquisa. A Agência Pública entrou em contato para saber mais detalhes sobre
as apurações que estão sendo realizadas, mas a Comissão não se pronunciou.
Espancamentos e trabalhos forçados no “centro de
reeducação” Krenak
Em 1965, o
combalido Serviço de Proteção aos Índios (SPI), afundado em denúncias de
inoperância e corrupção, começou a negociar um convênio com o governo de Minas
Gerais, através do qual o Executivo estadual assumiria a incumbência de
garantir a ordem e a assistência às aldeias locais. O acordo foi ratificado
posteriormente pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em 1967. Assim nasceu
Reformatório Agrícola Indígena Krenak, um “centro de recuperação” de índios
mantido pela ditadura militar no município de Resplendor (MG).
Sem
alarde, o reformatório – por vezes também chamado de Centro de Reeducação
Indígena Krenak – começou a funcionar em 1969 em uma área rural dentro do Posto
Indígena Guido Marlière. As atividades locais eram comandadas por oficiais da
Polícia Militar mineira, que, após o estabelecimento do convênio, assumiram
postos-chave na administração local da Funai.
Nos anos
seguintes, foram enviados para lá mais de cem índios, pertencentes a dezenas de
comunidades. Um mosaico de etnias que incluía desde habitantes do extremo norte
do país, como os índios ashaninka e urubu-kaapor, a povos típicos do sul e do
sudeste, como os guaranis e os kaingangs.
Até hoje,
muito pouco se divulgou sobre o que de fato acontecia no local. “O reformatório
não teve sua criação publicada em jornais ou veiculada em uma portaria”,
escreve o pesquisador José Gabriel Silveira Corrêa, autor de um dos poucos
estudos sobre a instituição. “Seu funcionamento e a própria ‘recuperação’ lá
executada passavam pela manutenção do sigilo”.
Em 1972, o
então senador pela Aliança Renovadora Nacional (Arena) – partido de sustentação
da ditadura – Osires Teixeira, se pronunciou sobre o tema na tribuna do Senado,
em uma poucas manifestações conhecidas de agentes do Estado sobre o
reformatório. Afirmou que os índios levados ao Krenak retornavam às suas
comunidades com uma nova profissão, mais conhecimentos e saúde e em melhores
condições de contribuir com o seu cacique. “O Brasil tem sido vítima de
ignóbeis explorações de sua política indigenista por órgão da imprensa no
exterior, quando, na verdade, todos sabemos que o Brasil foi o único país do
continente que, para a conquista de sua civilização, jamais dizimou tribos
indígenas”, afirmou Teixeira.
Relatos
atuais de ex-presos e familiares, no entanto, revelam uma realidade muito
diferente daquela descrita pelo senador da Arena.
Trabalho escravo
A sede do
reformatório possuía duas edificações. Numa delas ficava a administração, o
almoxarifado e o alojamento dos guardas. Já a outra era o reformatório
propriamente dito. Dispunha de cozinha e refeitório, além de duas celas individuais,
dois confinamentos coletivos e dois cubículos para detenção – estes últimos
destinados a encarcerar quem cometesse faltas graves no dia a dia correcional.
Pela
manhã, após o desjejum, os “confinados” – jargão utilizado para designar os
índios – eram levados para trabalhos rurais, que prosseguiam também depois do
almoço. No fim do dia, numa rotina tipicamente prisional, eram postos para
dormir após o banho e o jantar coletivo.
“Íamos até
um brejo, com água até o joelho, plantar arroz”, revela Diógenes Ferreira dos
Santos, índio pataxó levado ao Krenak em 1969. “Botavam a gente para arrancar
mato, no meio das cobras, e os guardas ficavam em roda vigiando, todos
armados”, complementa João Batista de Oliveira, conhecido como João Bugre, da
etnia krenak. A região onde foi instalado o reformatório era habitada pelos
índios krenaks, e muitos de seus representantes também foram presos.
A
reportagem da Agência Pública teve acesso a diversos documentos produzidos
pelos policiais que comandavam as atividades do reformatório – ofícios,
telegramas e fichas individuais que acompanhavam, mês a mês, o comportamento
dos presos. Uma dessas fichas, de um índio da etnia karajá, descrito como lerdo
e preguiçoso, deixa claro a obrigatoriedade dos trabalhos braçais. “É um
elemento fraco, parecendo até mesmo ser um retardado. Se pudesse, não faria
nenhum serviço.”
Outras
formas de tratamento degradante, como, por exemplo, escassez no fornecimento de
comida, calçados e vestimentas, também estão explicitadas nesses ofícios. “À
tarde eles chegam do serviço, tomam banho e vestem a mesma roupa molhada de
suor”, escreve o cabo da PM Antônio Vicente, então chefe do Posto Indígena
Guido Marlière, em telegrama de 1971, pedindo providências a seus superiores.
Em 1972,
outro comunicado informa que se esgotaram todos os alimentos locais. “Os índios
confinados estão se alimentando de pura mandioca e inhame. Considerando-se a
precariedade da alimentação, serão suspensos os trabalhos braçais.”
Crime e castigo
Homicídios,
roubos e o consumo de álcool nas áreas tribais – na época fortemente
repreendido pela Funai – são alguns dos motivos alegados para a transferência
de índios ao Krenak. Além disso, os documentos do órgão também citam brigas
internas, uso de drogas, prostituição, conflitos com os chefes de posto,
indivíduos penalizados pelo “vício de pederastia” e atos descritos, não raro de
forma bastante vaga, como vadiagem.
Segundo os
registros oficiais, alguns índios permaneceram por mais de três anos e havia
indivíduos sobre os quais desconhecia-se até o suposto delito. “Não sabemos a
causa real que motivou o seu encaminhamento, uma vez que não recebemos o
relatório de origem”, escreve o cabo Vicente, ao escritório central da
Ajudância Minas-Bahia da Funai, a respeito de um xavante, considerado de bom
comportamento, que lá estava há mais de cinco meses.
“Uma das
histórias contadas é a de dois índios urubu-kaápor que, no Krenak, apanharam
muito para que confessassem o crime que os levou até lá”, explica Geralda
Chaves Soares, que trabalhou do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em
Minas Gerais, e atua como pesquisadora da história indígena no estado. “O
problema é que eles nem sequer falavam português”.
Surras com
chicotes e o confinamento em solitária eram outros castigos aplicados, segundo
os relatos colhidos pela pesquisadora.
Se
comunicar em língua indígena, diz o ex-preso João Bugre, era terminantemente
proibido. “Você era repreendido, pois os guardas achavam que a gente estava
falando deles”, lembra. Situação ainda mais difícil para aqueles que não sabiam
português. “Tinha que aprender na marra. Ou falava, ou apanhava”.
Bugre foi
preso em 1970. O registro sobre o caso, descrito nos documentos da Funai,
afirma que ele transportou cachaça para dentro da aldeia e se embriagou com
outros índios. “João Bugre está insuportável pelas desobediências que vem
cometendo. Já faz juz a um confinamento e está detido em alojamento separado”,
relata o documento.
“Muitos,
como eu, não tinham feito nada. Tomei uma pinga. Será que uma pinga pode deixar
alguém preso quase um ano?”, questiona ele. Bugre afirma ter ficado preso no
reformatório por cerca de nove meses.
Além do
consumo de bebida, também sair da área do posto indígena era considera uma
falta grave. “Meu avô chegou a ser arrastado com o cavalo de um militar,
amarrado pelos pés, porque tinha saído da aldeia”, revela Douglas Krenak. “Eu,
uma vez, fiquei 17 dias preso porque atravessei o rio sem ordem, e fui jogar
uma sinuquinha na cidade”, rememora José Alfredo de Oliveira, também índio
Krenak.
São
exemplos do comportamento comumente classificado como “vadiagem” pelos
representantes do órgão indigenista na época. Até mesmo atividades tradicionais
de caça e pesca fora dos postos indígenas – não raro pequenos e impróprios para
prover a alimentação básica – podiam, segundo relatos, levar índios a
temporadas correcionais.
Via de
regra, os presos lá chegavam a pedido dos administradores regionais das áreas
indígenas. Mas, em alguns casos, por ordem direta de altos escalões em
Brasília. É o caso de um índio canela encaminhado à instituição em julho de
1969. “Além do tradicional comportamento inquieto da etnia – andarilhos contumazes
–, o referido é dado ao vício da embriaguez, quando se torna agressivo e por
vezes perigoso. Como representa um péssimo exemplo para a sua comunidade,
achamos por bem confiá-lo a um período de recuperação na Colônia de Krenak”,
atesta ofício emitido pelo diretor do Departamento de Assistência da Funai,
Lourival Lucena.
Conflitos de terra
O
depoimento do pataxó Diógenes Ferreira dos Santos sugere um outro motivo para a
prisão de indígenas no reformatório Krenak.
Em meados
da década de 1960, ele era apenas uma criança no dia em que, conforme conta,
viu dois policiais chegando à Reserva Indígena Caramuru – um vasto território
de Mata Atlântica, no sul da Bahia, tradicionalmente ocupado pelos pataxós.
Vieram acionados por um fazendeiro, que reclamava ser o dono daquele local.
“Tinha uma árvore ali em frente (onde Diógenes vivia com seus pais), e eles
cravejaram de bala. Depois mandaram tirar tudo o que tinha dentro da nossa
casa, e meteram fogo nela”, diz.
Sua família
migrou então para uma área próxima, onde viveram “de favor” por cinco anos,
instalando benfeitorias para um fazendeiro. Até o dia em que o pretenso
proprietário vendeu o local, deixando-os novamente desalojados.
“Já que
não tínhamos apoio de ninguém, decidimos voltar ao Caramuru”, conta Diógenes.
Expulsaram o novo ocupante local, mas 15 dias depois novamente apareceram
policiais, dessa vez incumbidos de levar, Diógenes e seu pai, até a cidade mais
próxima. “Disseram que o Capitão Pinheiro (Manoel dos Santos Pinheiro, chefe da
Ajudância Minas Bahia da Funai) estava nos esperando”, lembra. “Ficamos então
seis dias presos na delegacia de Pau Brasil (BA), até que veio a ordem de nos
levarem para o Krenak”.
Nessa
época, Diógenes era adolescente. Por ironia do destino, ainda viveu para ver a
Funai lhe dar razão em seu pleito. Em 1982, o órgão entrou com uma ação pedindo
a declaração de nulidade de todas as propriedades de não índios instaladas
dentro da Reserva Indígena Caramuru. Após anos de disputa judicial, o Supremo
Tribunal Federal (STF) decidiu, em maio de 2012, a favor dos índios.
Mesmo
assim, Diógenes ainda sofre com esse passado. “Eu não gosto nem de falar,
porque me dá ódio. É difícil estar preso por um erro. Trabalhando para
sobreviver, ir pra cadeia?”, questiona.
Desaparecidos
Algumas
mulheres krenaks, que chegaram a ser recrutadas pelos policiais da Funai para
trabalhar no reformatório, também são testemunhas das violências desse período.
“Quem fugia da cadeia sofria na mão deles”, afirma Maria Sônia Krenak, que foi
cozinheira no local.
Além dos
espancamentos, há relatos sobre perseguições acompanhadas de tiros, e de presos
que nunca mais foram vistos. “Saiu um bocado ali que não voltou mais”, revela.
Um dos
desaparecidos é Dedé Baenã, ex-habitante de terras no sul da Bahia, cujo sumiço
é confirmado pelo depoimento de índios e não-índios. Ofícios da Funai afirmam
que, em agosto de 1969, ele foi levado ao Krenak a pedido de um funcionário do
órgão. O documento o qualifica como um “índio problema”, violento quando
embriagado e dono de vasto histórico de agressões a “civilizados”.
Maria
Hilda Baqueiro Paraíso, professora associada da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), realiza pesquisas há décadas junto a comunidades indígenas da região. E
revela uma versão diferente para a prisão de Dedé Baenã. “Foi numa ocasião em
que o Capitão Pinheiro esteve na Bahia anunciando a suspensão da assistência
aos índios locais. Dedé se revoltou e fez um discurso contra a administração do
órgão. Saiu de lá já preso”, conta.
Após
ingressar no reformatório, ele nunca mais foi visto. “Diz-se que ele teria sido
executado por um militar que fazia a segurança dos índios presos na área
Krenak”, comenta um indígena que vive na região onde Dedé nasceu.
Fonte: Br.Notícias
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