IVO TONET*
1.
O pano de fundo
Para compreender o que está
acontecendo, atualmente, no Brasil, é preciso voltar um pouco na história.
Certamente, é uma situação
muito complexa, mas procuraremos sinalizar, aqui, os elementos que nos parecem
mais marcantes para entender o processo atual.
Em primeiro lugar, a vitória
esmagadora do capital sobre o trabalho.
A eclosão da crise do capital,
que começou por volta de 1970, encontrou um chão fértil para permitir que este
enfrentasse esta crise com uma brutal intensificação da exploração da classe
trabalhadora. A intensificação da exploração se deu, de modo prioritário,
através da reestruturação produtiva, isto é, da reorganização da produção de
modo a permitir a retomada dos lucros do capital. Privatização de empresas
estatais, privatização de serviços públicos, aumento do desemprego e do
subemprego, precarização do trabalho, intensificação da exploração dos que
ainda permaneciam empregados, supressão de direitos duramente conquistados,
corte dos gastos públicos e com isso, agravamento dos problemas sociais de toda
ordem: saúde, educação, transporte, alimentação, moradia, saneamento,
segurança, urbanização, cultura e lazer, devastação da natureza. Tudo deveria
ser organizado no sentido de garantir os lucros dos capitalistas nem que, para
isso, fosse preciso destruir a humanidade.
Ao mesmo tempo, o Estado foi
reorganizado sempre no sentido de favorecer o capital e garantir o controle e a
submissão da classe trabalhadora. Nunca, como neste momento, foi e está sendo,
tão verdadeira a afirmação de Marx e Engels, no Manifesto Comunista, de que o
Estado é “o comitê executivo dos negócios da burguesia”. Umas poucas grandes
corporações ditam, utilizando o Estado, as regras de todas as políticas
econômicas mundiais.
Em segundo lugar, a perda do
horizonte revolucionário. O desmoronamento dos países ditos socialistas pareceu
confirmar, empiricamente, a ideia de que o socialismo é impossível. O que se
apresentou como socialismo em vez de ser uma sociedade superior ao capitalismo
se manifestou, na verdade, como um precário igualitarismo e, ao mesmo tempo,
como supressão das liberdades democráticas e cidadãs, como brutal ditadura,
como um sistema repressivo, como um Estado todo-poderoso e como um menosprezo
pela individualidade. Desde então, o horizonte mais presente é, no máximo,
aquele do aperfeiçoamento da atual ordem social.
Mesmo para aqueles que ainda
pretendiam construir um mundo melhor, a alternativa, tanto pela via socialdemocrata
como pela via revolucionária resumia-se a atribuir ao Estado a tarefa de
dirigir o processo de transformação social. Para isso, seria necessário
conquistar o Estado e colocar todos os partidos, sindicatos e movimentos
sociais sob a direção desse Estado, supostamente posto, agora, a serviço dos
interesses das classes subalternas.
Tudo isso contribuiu para
orientar a classe trabalhadora e todos os movimentos sociais no sentido de lutar
não contra o capital e contra Estado, mas com o capital e com o Estado no o
objetivo de conquistar melhorias pontuais sem nunca colocar em questão a ordem
social capitalista.
As ideias de revolução, de
socialismo, de superação de toda exploração e dominação do homem pelo homem, de
construção de uma sociedade realmente igualitária foram substituídas pelas
ideias de reforma, democracia, cidadania, universalização de direitos,
melhorias gradativas.
A pressuposição era de que, não
sendo o socialismo algo possível, a única alternativa razoável seria o
aperfeiçoamento da atual ordem social capitalista.
A enorme maioria dos partidos
que se pretendia representante dos interesses da classe trabalhadora foi
assumindo esta perspectiva reformista, mesmo quando conservava o nome de
comunista ou socialista, contribuindo, poderosamente, para a deseducação da
classe trabalhadora e das lutas sociais.
Deste modo, os inúmeros
movimentos sociais que surgiram foram vistos ora como substitutos do verdadeiro
sujeito revolucionário ora como simples momentos de reivindicação de melhorias
pontuais.
Este conjunto de circunstâncias
gerou uma ideologia profundamente conservadora e individualista. Disseminou-se
a ideia de que esta forma de sociabilidade seria a última (fim da história) e a
melhor possível, apesar dos seus defeitos; que ela seria indefinidamente
aperfeiçoável; que o sucesso ou insucesso dependeria apenas do esforço
individual; um sentimento de impotência diante da solidez do sistema; uma perda
de compreensão do processo histórico; um espírito de superficialidade, que leva
a ver a história como a repetição indefinida do momento atual; uma fragmentação
do conhecimento, que impede a compreensão da realidade como uma totalidade
articulada.
Em resumo: as consequências
mais importantes de tudo isso foram: a perda do horizonte revolucionário e sua
substituição por um horizonte reformista; a descrença na possibilidade de mudar
o mundo na sua totalidade e o apego a reformas pontuais; a sensação de
impotência diante dos problemas sociais; a ideia de que todas as lutas deveriam
confluir para o Estado, ou para tomá-lo e, supostamente, colocá-lo a serviço
das classes populares ou para arrancar dele melhorias pontuais; o acento na
ação individual e eleitoral em substituição à luta coletiva.
Com tudo isto, no momento de
sua crise mais séria (a partir de 1970), o capital vê seu caminho inteiramente
livre para enfrentar o agravamento dos seus problemas com a intensificação da
exploração da classe trabalhadora de uma maneira incrivelmente brutal. Isto
porque o seu adversário histórico – o proletariado – a classe que poderia
liderar a oposição mais consequente ao
capital se encontrava ideológica e politicamente desnorteado e desorganizado
quando não atrelado ao próprio Estado por obra e graça de partidos, centrais
sindicais e sindicatos que se diziam defensores dos interesses da classe
trabalhadora. Desamparadas de seu líder natural, as demais lutas sociais,
justas e importantes, não conseguem ultrapassar os limites de reivindicações
pontuais no interior do capitalismo, confluindo sempre para o Estado. Não há nenhum
questionamento mais profundo do capital e do Estado. E já que socialismo é
confundido com falta de liberdades democrático-cidadãs, com ditadura, com
partido único e todo-poderoso, com supressão de toda propriedade, inclusive a
individual, com menosprezo do indivíduo, então sobra apenas a busca do
aperfeiçoamento da democracia e da cidadania
2.
A situação atual no Brasil
No Brasil, a chegada do PT ao
poder se deu em meio ao enfrentamento da crise do capital através da
reestruturação produtiva e da retomada da ideologia liberal. A aparente
oposição deste partido aos interesses do capital gerou uma enorme expectativa
de mudanças substanciais. Apesar das alianças problemáticas, o crédito
concedido pelas classes subalternas foi enorme.
Além do mais, o PT carregava
consigo a confiança da maioria da classe trabalhadora, da maioria dos outros
partidos ditos de esquerda (PCdoB, PDT, PSB) e da maioria dos sindicatos e
Centrais Sindicais.
Uma situação internacional
favorável aos países periféricos – já que o foco principal dela estava nos
países centrais – permitiu ao governo enfrentar a crise mundial de modo a
suavizar os seus efeitos. Contudo, as linhas mestras da política econômica não
destoavam do conjunto das políticas mundiais. Todas elas estavam direcionadas
no sentido de garantir os interesses do capital descarregando o peso do
enfrentamento da crise sobre os ombros da classe trabalhadora e das demais
classes populares.
Foi-se gerando, então, a ideia
de que esse seria o caminho para a superação dos problemas sociais no Brasil:
um pacto entre o capital (representado por parte da burguesia) e o trabalho
(representado pela maioria da classe trabalhadora), no qual ambos sairiam
ganhando e possibilitaria ao Brasil elevar-se à posição de membro dos países mais
desenvolvidos!
No entanto, aos poucos, o
caminho ia ficando claro: nenhuma mudança estrutural, apenas a busca de um
caminho para a inserção do Brasil na economia mundial do capital em crise
profunda. Para isso, continuidade das privatizações (via concessões, parcerias
público-privadas, isenções fiscais, mercantilização de tudo, corte dos gastos
públicos, privatização de serviços públicos, favorecimento dos interesses
privados (bancos, empreiteiras, agronegócio, montadoras…)). Ao lado disso, a
montagem de políticas sociais compensatórias (bolsas de diversos tipos), que
permitiriam minimizar os aspectos mais gravosos dos problemas sociais.
O orçamento nacional (tomando
como exemplo o de 2012 e assinalando apenas alguns elementos) mostra claramente
onde estão as prioridades para a destinação dos recursos públicos: 43,98% para
pagamento da dívida pública; 22,47% para previdência social; 10,21% para
transferência para Estados e Municípios; 4,17% para saúde; 3,34% para educação,
2,42% para trabalho; 3,15% para assistência social; 0,39% para segurança
pública; 0,70% para transporte; 0,01% para habitação; 0,06% para urbanismo;
0,02% pra desportos e lazer 0,04% para energia; 0,05% para cultura.
Na esfera política deu-se uma
completa transformação do PT em um partido típico burguês: sistema de alianças
com partidos e grupos sociais conservadores e mesmo reacionários, corrupção,
apadrinhamentos, utilização dos bens públicos para fins privados, carreirismo,
manipulação das massas com fins eleitoreiros, criminalização das lutas sociais,
favorecimento dos grandes grupos empresariais. O PT, que se tinha apresentado
como campeão da “ética na política” acabou chafurdando no mesmo lamaçal em que
sempre se espojaram todos os partidos políticos. Todos eles utilizando a população
apenas como massa de manobra em momentos eleitorais, para depois esquecê-la e
buscar apenas a satisfação dos interesses da burocracia partidária e dos seus
financiadores.
As consequências disto foram o
agravamento dos problemas sociais com o consequente aumento da insatisfação
social; o descrédito nas instituições políticas; a despolitização, a alienação
e o apassivamento da maioria da população; a confusão ideológica e política; a
percepção da enorme desigualdade social, pois enquanto alguns poucos (bancos,
empreiteiras, montadoras, agronegócio, etc.) enriqueciam, a maioria da
população via aumentar muito pouco a sua participação na riqueza gerada. Tudo
isto, ainda, agravado, nos últimos meses, pelo aumento da inflação, pela
deterioração nos serviços públicos e por gastos bilionários com a construção e
reforma de estádios de futebol.
Como resultado de tudo isto, a
violência se tornou cada vez mais presente na vida social, atingindo, embora de
modo muito diferente, todas as classes sociais. Os ricos veem ameaçado o seu
patrimônio e os pobres se sentem abandonados pelo Estado, quando não, muitas
vezes, eles próprios vítimas da violência do Estado.
Por sua vez, a juventude vê
estreitar-se cada vez mais o seu horizonte. Além de sofrer com a deterioração
dos serviços públicos, também se vê engrossando cada vez mais um enorme
exército de reserva, que dificilmente será absorvido pelo mercado de trabalho.
Ainda mais: a corrosão do nível
de vida da classe média aumentou também as suas preocupações e a sua
insatisfação. Insatisfação esta que, por um lado se dirige contra a relação
entre o alto pagamento de impostos e o que é recebido em troca como serviço público,
de péssima qualidade e, por outro lado, contra o que ela vê como favorecimento
das classes populares em detrimento de si mesma, interpretando isto como uma
política governamental assistencialista que privilegia os que não trabalham.
3.
Desdobramentos
Embora pipocassem, aqui e ali,
lutas setoriais, nada parecia indicar uma iminente explosão. Mas, a caldeira
estava aumentando a sua fervura. A questão do aumento do transporte foi apenas
a gota d´água que fez explodir a insatisfação que estava latente.
Surgem, então, as mais variadas
reivindicações.
Como resultado de todo o
processo acima descrito, não é de admirar que, neste momento, haja uma enorme
confusão ideológica e política.
Também não é de admirar que não
haja clareza quanto aos objetivos a médio e longo prazo.
Do mesmo modo, não é de admirar
que os reacionários e conservadores procurem direcionar esse movimento para
seus fins. O surgimento de movimentos fascistas, integralistas, nazistas não é
algo estranho a estas situações. Isto já foi visto em outros momentos
históricos.
Por sua vez, a rejeição aos
partidos é compreensível, embora não justificável, porque a maioria,
despolitizada, vê toda atividade partidária pela lente de um sistema político
totalmente degenerado. A ampla maioria dos participantes destas manifestações
não é nem de esquerda, nem de direita nem de centro. Simplesmente está reagindo
motivada por uma insatisfação que, provavelmente, no fundo, tem a ver com a
frustração relativa às suas perspectivas de vida. A falta de um maior
esclarecimento acerca das causas mais profundas dos problemas sociais pode
facilmente tornar essas massas presa de grupos reacionários e/ou de indivíduos
“salvadores”.
As classes dominantes, por sua
vez, diante do agravamento dos problemas, procurarão, por todos os modos,
defender os seus interesses: intensificando a repressão, aumentando as
políticas de austeridade, isto é, de exploração do trabalho e a criminalização
das lutas sociais.
Mas, em tudo isso, há ainda um
elemento profundamente preocupante. A classe operária está praticamente ausente
dessas manifestações, pelo menos como classe consciente e organizada. Algumas
pesquisas parecem indicar que, entre os manifestantes, encontram-se muitos,
especialmente mais jovens, trabalhadores precarizados e desempregados. O fato é
que o grosso da classe trabalhadora ainda não entrou em cena. E por essa
ausência, como vimos acima, a esquerda (partidos e sindicatos) tem uma enorme
responsabilidade.
Vê-se que, mesmo onde esta
classe intervém de forma mais expressiva e organizada, como na Grécia, em
Portugal, na Espanha, ela não tem um projeto próprio claramente contrário ao
capital e ao Estado, projeto este que só poderia ser o resultado de um longo
processo de construção. A tônica das reivindicações é, de modo geral, por
reformas e por outro tipo de Estado, mais preocupado com as questões sociais.
De modo especial, aqui no
Brasil, o atrelamento da classe trabalhadora ao Estado dirigido pelo PT tem um
enorme impacto no sentido de enfraquecer e desnortear essas lutas que estão
surgindo espontaneamente. Impediu que se formasse a convicção de que a solução
dos problemas sociais passa pela superação radical do capitalismo e pela
construção de uma sociedade socialista. Infelizmente, a tônica da polarização,
por uma grande parte da esquerda, era colocada na contraposição entre PSDB (o
caminho do mal) e PT (o caminho do bem) e não entre capital e trabalho. Acresce
a isso o fato de que inclusive partidos e organizações sociais, que se
pretendem de esquerda e de oposição, imprimiram ao seu trabalho um forte viés
eleitoral. Embora existam, são raras e de expressão ainda bastante reduzida as
organizações partidárias e movimentos sociais, que não imprimiram às suas lutas
um viés eleitoral. Tudo isso contribui para iludir as massas fazendo-as
acreditar que a resolução dos problemas sociais se centra em questões éticas
(contra a corrupção, contra a malversação de recursos públicos),
administrativas (melhor gestão dos recursos públicos, menor impostos) e/ou
políticas (reforma política) passa pela conquista do Estado e por reformas
realizadas por ele.
4.
Nossas tarefas
Neste momento, agitação (poucas
ideias para muitas pessoas) e propaganda (muitas ideias para poucas pessoas)
são fundamentais para ajudar na politização, no esclarecimento e na definição
dos objetivos. A esquerda terá que se reinventar, deixando de lado sectarismos
e vanguardismos, para poder influenciar nos rumos das lutas atuais e futuras.
É importante mostrar às massas
a relação entre os diversos problemas setoriais, a natureza do capital e a
atual crise a que ele submete a humanidade.
É importante esclarecer que a
solução dos problemas não pode ser encontrada dentro do capitalismo; que a
resolução dos problemas, que são universais, só pode ser encontrada com a
superação radical do capitalismo e a construção de uma sociedade socialista.
Para isso, é importantíssimo
explicar o que é socialismo, desfazendo os equívocos em relação aos países
ditos socialistas e deixando clara a sua superioridade em relação ao
capitalismo.
É importante esclarecer que o
problema não é a corrupção (inerente ao capitalismo), nem a “bandalheira” dos
políticos (também inevitável), nem a falta de “vontade política” dos
governantes, muito menos este governo – cujo núcleo é o PT – (porque todo
governo cumpre a função essencial do Estado que é a defesa dos interesses das
classes dominantes), mas, que as causas mais profundas se situam na lógica do
capital, na exploração dos trabalhadores pelos capitalistas e na existência da
propriedade privada.
Como dizia Lenin, é preciso
“explicar, explicar e explicar”, sem reducionismos sem sectarismo, sem
acusações, mas procurando mostrar a conexão entre as diversas reivindicações e
as causas fundamentais dos problemas sociais.
Mas, a tarefa mais importante,
é, sem dúvida, contribuir para que a classe trabalhadora volte a assumir o seu
lugar como sujeito fundamental das transformações sociais. Ela, porém, só
poderá voltar a ocupar este lugar na medida em que se organizar ideológica e
politicamente contra o capital e, também, contra o Estado. Considerando o pano
de fundo acima descrito e as suas consequências, essa não será uma tarefa nada
fácil. No entanto, absolutamente necessária e decisiva. Os exemplos das lutas
da chamada “primavera árabe”, das grandes manifestações em vários países da
Europa e nos vários tipos de “Occupy” mostram, claramente, que a ausência da
classe trabalhadora como sujeito fundamental deste processo, com um projeto
revolucionário, impede o avanço das lutas no sentido da resolução radical dos
problemas sociais.
Maceió, 24 de junho de 2013
*Doutor em Educação pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e professor de Filosofia
da Universidade Federal de Alagoas.