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Olgária Matos*
19 de agosto de 2012
Retrato Calado de Luiz Roberto
Salinas Fortes (1937 -1987) é o cenário de uma tragédia pessoal e histórica,
nos anos da ditadura militar no Brasil, e das feridas de difícil cicatrização.
Inscrevendo-se na linhagem da grande modernidade literária, o narrador lúcido é
como o de Chekhov e Pirandello, implicado em dois registros simultâneos, o dos
acontecimentos externos e os vividos em uma consciência dilacerada; tradição
também da "análise de si", das Confissões de Santo Agostinho a
Rousseau, de Montaigne ao Cardeal de Retz. Cenário do tempo e não realismo
objetivista, pois é a história de um trauma. Recusando o tom patético do
"testemunho", um discreto ceticismo traduz o absurdo em ironia,
conferindo ao relato o sentido de uma conversão laica.
Professor de filosofia antiga
em 1974, a sala de aula é uma ágora e a sala de tortura seu avesso - as
atrocidades desestruturando os fundamentos da filosofia e a estabilidade de
seus princípios. Ao deixar a USP, Salinas foi constrangido por agentes a
levá-los a seu apartamento. Na ruptura da continuidade temporal, a perda da
inocência: "Já o coração cavalga diferente e a angústia me esfria o ventre
quando subimos até o 20º andar do edifício Copan. Deixo a pasta, visto o
paletó, o gesto mais lento que de hábito, arrumo inutilmente as coisas em cima
da escrivaninha, percorro com os olhos as estantes, como à espera de um
socorro, como à espera daquele numeroso e inerte exército aliado".
Sócrates, o filósofo platônico,
ensinava Salinas naquele dia, único entre todos apto a governar para além da
lei e da razão de Estado, pela autoridade da sabedoria, porque "é
preferível sofrer uma injustiça do que cometê-la". Mestre de si na
situação extrema, Salinas não cedeu. Quando cassados os professores do
Departamento de Filosofia ou refugiados no exílio, Salinas, em reunião dos
poucos que lá permaneceram, foi contrário à demissão coletiva e nos convenceu
de que se devia resistir. Porque toda ação parece necessária no instante, mas é
aleatória no tempo, Salinas se interroga sobre a militância política nos anos
dos encarceramentos que sofreu: "Que perspectiva nos oferecia, que não a
suicida, a ação violenta contra o regime? Não estaríamos antes obrigados a
resistir sobrevivendo, do que morrer lançando a força contra a força neste
combate desigual e, desta forma, reforçando ainda mais o inimigo?"
Salinas não se esquivou da dor
e da vergonha que sentiu. Envergonhou-se pelos torturadores. Por isso suas
lembranças recusaram para si o lugar da vítima tanto como o do herói, duas
maneiras de se estar acima do exame filosófico. Como vítima, o dano isenta de
se pôr em questão; como herói, o reconhecimento de sua superioridade e valor
também prescindiria de ponderações para si mesmo e para a comunidade política:
"Que crimes cometi, afinal? O grande pecado não teria consistido
justamente na falta de firmeza em me ter convertido integralmente à causa
(revolucionária), em não ter acreditado o suficiente na excelência do combate,
segundo vai nos revelando pouco a pouco a crônica do período, convertendo-me em
dócil mas eficaz instrumento cego a serviço da grande causa?" Porque não
há resposta simples à questão, esse autorretrato se constrói para além da
lógica das dívidas e sanções: "Há algo que se rompe, pois não é
impunemente que se passa pela experiência da prisão, assim como não se passa
impune pela experiência de prender e torturar. Contaminação recíproca. Perda de
'inocência' de um lado e outro lado e profunda crise ideológica de ambos os lados,
cujas repercussões até hoje persistem".
Não há aqui desejo de
reparação, pois não se trata de anular um mal em troca de uma pena, um trauma é
sem consolo e de impossível retribuição: "A dor que continua doendo até
hoje e que vai acabar por me matar se irrealiza, embora a dor que vai me matar
continue doendo, bem presente no meu corpo, ferida aberta latejando na
memória". O crime imprescritível, impunível e igualmente imperdoável não
se esquece com a Justiça, porque ela não resolve o paradoxo de dever recomeçar
o tempo. Tarefa do Estado, reparar o crime irreparável, pela ritualização da
lei.
Quanto ao passado que persiste
em não passar, só há a solidão de si: "Por que escrevo tudo isso? (...) A
única coisa que sou capaz de dizer neste momento é que se as escrevo - as
memórias - é para dar a mim mesmo, conceder-me em benefício próprio uma
'Anistia Ampla Geral e Irrestrita'". Valem aqui as considerações de La
Boétie sobre a amizade: se pela lembrança nos humanizamos, pelo esquecimento
nos divinizamos, porque ele é uma forma de perdão.
Retrato Calado é uma maiêutica
moderna. Ele compreende o que o torturador esquece, que o vencedor é somente o
vencedor do momento. Julgando-se invencível, um dos torturadores diz
"depois, quando tiver a virada vocês comunistas se vingam e aí vocês vão
fazer pior que a gente. É ou não é? É, mas aqui neste País não vai ter virada
nenhuma!"
A violência de "maquiavéis
baratos" foi sua ultima ratio. Embora inibisse a palavra, não calou o
pensamento.
*Olgária matos é professora titular da USP, da
UNIFESP, autora de discretas esperanças: reflexões filosóficas sobre o mundo
contemporâneo (Nova Alexandria), contemporaneidades (Lazuli).
Fonte: O
Estado de S.Paulo
Um comentário:
Apesar se sabermos que a história é feita por pessoas iguais a nós, a distância temporal e espacial ajuda a encobrir de neblina, aos nossos olhos, a vitalidade desses personagens...Quanta carne, suor, sangue,lágimas, dúvidas, medos, ousadia, covardia etc estão por trás das páginas frias dos livros!
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