Ilustração: Daneil Kondo |
A
Universidade brasileira tornou-se menos elitista. Mas sua popularização reforça
um modelo de ensino baseado em instituições privadas, onde pesquisa e reflexão
não são benvindas
Por Andrea Harada Souza*
O ensino superior, público e
privado, no Brasil passou por grandes transformações nas últimas décadas. Essas
mudanças – travestidas de democratização, por favorecerem o acesso – visaram
atender a uma proposta de privatização e barateamento da educação.
O Ministério da Educação (MEC)
alardeia números, sobretudo para organismos internacionais – que obrigam o país
a se enquadrar em padrões estipulados por eles na competição do mercado de
consumo, trabalho e pesquisa –, que demonstram o crescimento do acesso ao
ensino superior, ainda que distantes daqueles objetivados pelo Plano Nacional
de Educação (PNE) (o acesso é de apenas 13,8% dos jovens, entre 18 e 24 anos).
Porém, esse suposto processo de inclusão tem facilitado, para além do
aceitável, um crescimento vertiginoso das instituições de ensino superior (IES)
privadas, com desdobramentos que passam pela precarização do trabalho docente e
pela formação duvidosa que essas empresas têm oferecido aos alunos por ela
formados.
A predominância de objetivos
economicistas em detrimento dos pedagógicos nas IES privadas permitiu um
fenômeno relativamente novo no Brasil: a formação de conglomerados
educacionais, grandes empresas, de capital aberto e com forte participação de
grupos estrangeiros em seu quadro de acionistas. A autorização para
funcionamento dessa espécie de oligopólio do setor educacional tem
intensificado a visão mercantil da educação superior no Brasil. Os exemplos
mais representativos desse modelo de organização empresarial na educação ficam
por conta dos grupos educacionais Kroton-Pitágoras, Estácio de Sá, SEB (Sistema
Educacional Brasileiro) e Anhanguera Educacional. Esta última, com a recente
aquisição da Uniban, passou a ser o maior grupo educacional do país, atendendo
aproximadamente 400 mil alunos em campi espalhados por diversos estados
brasileiros. Além disso, manteve sua projeção de crescimento de atingir 1
milhão de estudantes em cinco anos, segundo matéria do Valor Econômico de 17 de
novembro de 2011.
A alteração no padrão de
financiamento das IES privadas promoveu uma mudança significativa no modelo de
gestão: o papel que antes era predominantemente exercido por mantenedoras, de
caráter familiar ou religioso, hoje passou a ser de responsabilidade de bancos
ou fundos de investimentos que contratam executivos como seus representantes,
padronizam procedimentos de relações de trabalho nos departamentos de recursos
humanos e prestam contas ao fundo de ações. Decorre daí um perfil de gestão
alinhavado com a lógica empresarial, sob responsabilidade de executivos, e
muito distante dos objetivos educacionais que sempre foram sustentados por
professores e pesquisadores.
Abandono
do Estado
Tomado pela óptica do lucro, o
setor educacional privado tem se valido, oportunamente, do abandono do Estado
na oferta de vagas públicas para a formação superior. Dessa forma, as IES
privadas, cuja existência deveria ter um caráter complementar, acabaram
predominando e se consolidando em grupos que formulam e ditam as regras de seu
interesse para a (des)regulamentação do setor, regras essas beneficiadas pelas
chamadas políticas de parcerias público-privadas, as quais são alicerçadas
sobre o princípio da transferência de dinheiro público para a iniciativa
privada com a finalidade de que esta última cumpra o papel que o Estado se nega
a exercer. No caso do ensino superior, essas transferências se dão
predominantemente por meio do Programa Universidade para Todos (ProUni) e do
Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), além dos
programas de benefícios de isenção fiscal oferecidos pelo BNDES. Nesse ponto, o
discurso falacioso do Estado e o do setor privado convergem: trata-se de
iniciativas e proposições que manifestam concretamente a preocupação com a
formação do brasileiro e com o desenvolvimento do país!
De modo geral, a consolidação
da mercantilização da educação e a formação de oligopólios educacionais têm
ocorrido com base na incorporação de princípios e fundamentos do setor
empresarial, ou seja, na otimização dos recursos. Como afirma Marilena Chauí
(2001), “a Universidade está estruturada segundo o modelo organizacional da
grande empresa, isto é, tem o rendimento como fim, a burocracia como meio e as
leis do mercado como condição”. Essa fórmula – clássica do neoliberalismo –
consiste na diminuição das despesas para o consequente aumento dos lucros.
Assim, com vistas a assegurar um perfil rentável − à empresa, é claro −,
torna-se necessária a precarização das relações de trabalho: redução de
salários, perda de direitos, ameaças e cobranças pelo desempenho da instituição
nas avaliações externas promovidas pelo MEC são alguns traços da rotina de
professores das IES privadas.
Ao mesmo tempo, concorre para
intensificar os contornos dramáticos desse quadro a expansão da modalidade EaD
(educação a distância), que em 2010 fechou o ano com 973 mil alunos
matriculados, o que corresponde a 30% de todos os universitários em instituições
privadas. Nesse caso, a educação mediada pela tecnologia, que deveria servir
para aproximar os extremos sociais, acaba por aprofundá-los. Contudo, para os
empresários, o aliciamento desse recurso é tomado como mais uma vantagem
mercadológica capitalista, sobretudo por potencializar sua capacidade de lucro.
Na outra ponta, os salários
praticados nas IES privadas são – via de regra – aviltantes, o que obriga
muitos profissionais a lecionar em várias instituições, seja para compor a
renda, seja para se prevenir das demissões, muitas vezes arbitrárias. Nesse
contexto, os professores se veem impedidos de desempenhar tarefas diretamente
ligadas à sua função (e ao ensino superior, ou seja, ensino, pesquisa e
extensão), absorvidos que estão por uma jornada de trabalho extenuante. No
entanto, paralelamente a isso, ocorre um processo silencioso de captura da
subjetividade dos docentes com objetivo de estabelecer uma competição interna,
cuja face mais alarmante é a perda da autonomia. Como toda competição tem exigências,
impõe-se que esses profissionais – para terem condição de competir – sejam
aguerridos, “pró-ativos”, competentes e indiferentes às questões coletivas, o
que os leva a um distanciamento de seus sindicatos e associações e permite,
muitas vezes, que sejam – deliberadamente – vistos como mão de obra manipulável
pelos patrões.
Precarização
e intimidação
Se de um lado temos a perda da
autonomia dos professores como uma ameaça à própria noção de função docente, de
outro notamos que, por parte dos empresários da educação, a oferta de uma
formação aligeirada tem exigido profissionais cada vez menos críticos e
progressivamente mais alienados da prática educativa. Não é raro o relato de
professores do ensino superior que têm seus conteúdos – planos e ementas de cursos
–, bem como suas avaliações, elaborados por um terceiro que nunca sequer esteve
em uma sala de aula. Essa tentativa, por parte dos patrões, de padronizar a
prática pedagógica para garantir um rendimento mínimo nas avaliações externas
evidencia de maneira cabal seu propósito de controle absoluto sobre a
mercadoria que vendem.
Dessa forma, a reação e a
resistência a essa prática de mercantilização da educação impõem grandes
desafios. No estado de São Paulo, que acompanhamos mais de perto, tem sido cada
vez mais difícil o enfrentamento com os patrões do ensino superior nas
campanhas salariais organizadas por nossa federação, a Fepesp (Federação dos
Profissionais de Educação do Estado de São Paulo), pois há um evidente conflito
nas pautas apresentadas para negociação. Do lado de lá, a ofensiva é para
subtrair direitos historicamente conquistados e que, vistos com a luneta do
capital, representam entraves normativos à expansão dos lucros. Em razão disso,
questões como plano de carreira, regulamentação da EaD e aumento real são
deliberadamente ignoradas pelos patrões, que, por sua vez, promovem
lobbiesjunto ao Poder Legislativo, a fim de que as regras do setor continuem a
beneficiá-los.
Entretanto, a predominância de
valores empresariais na organização das IES e a falta de regulamentação efetiva
por parte do MEC têm imposto uma permanente ameaça, ainda que velada, que é o
desemprego. Assim, os professores insatisfeitos com salários e condições de
trabalho incorporam a responsabilidade incutida pelo patrão, de que o mercado
funciona assim: os insatisfeitos que se mudem. A aceitação dessa ideia leva a
um comportamento defensivo, porque nos faz crer que nada pode ser feito e, por
isso mesmo, qualquer iniciativa coletiva deve ser vista como prejuízo ao
próprio trabalhador.
Há também que se ressaltar a
necessidade urgente de que o debate sobre a educação seja tomado como
fundamento para um crescimento qualitativo e efetivo do Brasil, sobretudo para
a população que ainda anseia conhecer na prática a longo prazo esse
crescimento. Para validarmos o princípio democrático do direito à educação,
sem, contudo, ignorar que o mercado do ensino privado não arrefecerá a curto
prazo, precisamos assegurar o investimento de 10% do PIB na educação pública –
que estimamos universal e de qualidade –, a fim de que ela seja o referencial
para o setor privado, e não o contrário.
Enquanto não houver uma mudança
radical nesse quadro, o próprio sentido de educação estará comprometido, posto
que seu fim mais elementar não é atingido: em vez de promover a emancipação
humana, produz lucro para o capital que só enxerga as camadas sociais C, D e E
quando estas se apresentam como potencial mercado consumidor.
A forte presença do controle
corporativo em um setor essencial como a educação provoca sérias fissuras na
malha social, na medida em que os desdobramentos da transferência tácita da
responsabilidade do Estado para a iniciativa privada têm autorizado o
funcionamento de fábricas de diplomas com certificação vazia, para uma
população que, embriagada pela democratização do acesso, ainda não se sabe
enganada.
*Professora de literatura,
presidente do Sinpro Guarulhos e membro da coordenação estadual da CSP-Conlutas
Referência
bibliográfica
CHAUÍ, Marilena. Escritos sobre
a universidade. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.INEP. “Sinopse da educação superior
no Brasil”, 2009. Disponível em: www.inep.gov.br.
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