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Sofia Manzano[1]
Milton Pinheiro[2]
A crise global do
capitalismo, que atinge de forma contundente, sobretudo a Europa, coloca aos
trabalhadores a necessidade de pensar as táticas de luta e a conformação
institucional as quais suas organizações foram submetidas. Aqueles países em
que se propalavam a alternativa de melhorar as condições de vida da população,
e dos trabalhadores, em especial, pela via da conquista de direitos sociais,
econômicos e políticos, estão caminhando aceleradamente para uma situação em
que o próprio direito conquistado através de duras batalhas, com lutas
históricas por gerações de trabalhadores, volta-se, agora, contra esses mesmos
trabalhadores e suas lutas.
Além da Escandinávia, a
França talvez tenha sido o país em que os trabalhadores lograram alcançar um
conjunto bastante significativo de direitos, como a jornada de trabalho de 35
horas semanais, estabilidade no emprego, a representação sindical no local de
trabalho, direitos sociais e trabalhistas bastante amplos que garantiram a
ascensão das condições de vida dos trabalhadores e a redução das incertezas
quanto ao futuro. Esses direitos não foram dados, nem fizeram parte de uma
“evolução natural” do desenvolvimento capitalista europeu. Foram duramente
conquistados por meio de lutas históricas que remetem à Comuna de Paris.
A França construiu, assim, a
partir da luta da classe operária, sistemas de saúde pública; educação pública
em todos os níveis; assistência social - com aluguel social para baratear as
moradias, transporte público e subsidiado, rendas compensatórias (como subsídio
moradia para aqueles que residirem distante de seu trabalho); um sistema de
relações de trabalho e previdência social que permitiram aos trabalhadores
franceses, no último meio século, alcançar condições de vida estável, digna e
com razoável conforto. Quando o país percebeu a tendência de redução
populacional, devido ao baixo nível de natalidade, criou programas de incentivo
à maternidade com renda para as mães que tivessem mais filhos.
Todos esses direitos
positivados, levaram as organizações dos trabalhadores, seus sindicatos, a CGT,
e os partidos de esquerda, principalmente o PCF, a acreditarem que a tarefa da
classe operária não era mais colocar em xeque o sistema capitalista, senão,
lutar por reformas paulatinas que proporcionassem garantias legais a essas
conquistas. Dessa forma, pensavam transformar os Direitos (do homem e dos
trabalhadores) em direitos previstos em lei. Ou seja, Direitos enquanto horizonte
ético-político, como o Direito à vida digna, à saúde, à educação, etc., em
direitos como forma de regulação social - leis positivadas que estabelecem
normas de conduta. Acreditaram ainda que, assim que estivessem assegurados pela
lei, esses Direitos estariam garantidos para todo o sempre, o que tornou as
estruturas organizativas dos trabalhadores em meras instituições incorporadas à
ordem do capital e à estrutura do Estado (de direito). Sendo assim, o horizonte
em aberto da possibilidade socialista, se transformou no reformismo da
“democracia progressiva” como forma de avanço social.
Ocorre que no Estado moderno,
a estrutura jurídica, seja ela de qual área for, está submetida, em última
instância, às mudanças nas dinâmicas do processo de produção e de acumulação de
capital. Assim, direitos sociais conquistados com muita luta durante anos em
que vigeram um determinado padrão produtivo e de acumulação de capital, são
sumariamente eliminados por reformas de cunho liberal quando muda tal padrão
produtivo e o processo de acumulação de capital entra em crise. Esse é o
processo que se verifica em curso em toda a Europa. Se durante os quarenta anos
seguintes ao pós-segunda guerra mundial os trabalhadores alcançaram melhorar
suas condições de vida, frente à exploração do capital, estão agora sendo
jogados novamente nas valas da situação do capitalismo concorrencial-liberal,
similar ao que passaram os trabalhadores do século XIX. Aqueles direitos
trabalhistas, sociais e econômicos que acreditaram terem conquistados para todo
o sempre, vão sendo eliminados por processos sumários com uma rapidez que
espanta até os mais combativos. No entanto, isso nos permite perceber, que as
lutas políticas e sociais para garantir direitos no marco legal da
institucionalidade burguesa é um jogo da cena política que precisamos romper,
através da luta dos movimentos sociais não fragmentários, do operador político
e das organizações dos trabalhadores que não estão agregadas a ordem do
capital.
Para piorar a situação, os
operadores políticos construídos pelos trabalhadores, seus sindicatos, suas
centrais sindicais e seus partidos, tendo se transformados em meros
instrumentos do aparato institucionalizado do funcionamento burocrático do
capitalismo, não se apresentam mais como reais operadores dos interesses da classe.
São aparatos institucionais cooptados pela lógica da acumulação de capital em
crise que se rendem às suas chantagens e abrem mão dos direitos duramente
conquistados pela luta de mais de um século. A defesa de “direitos mínimos”
passa a ser a prioridade, portanto o programa de luta é rebaixado, a
solidariedade entre as gerações e categorias de trabalhadores é solapada, e a
competição própria do mercado é cada vez mais internalizada nos comportamentos
e na subjetividade da classe trabalhadora que não vê saída para sua situação, a
não ser torcer para que o seu maior antagonista, o próprio capital, saia da
crise.
Quando
o direito se transforma em apassivamento
Se por um lado, o fato de uma
conquista social, econômica ou política ser positivada em lei não garante sua
persistência no tempo, já que não há garantia de mudanças no arcabouço jurídico
institucional, a positivação mesma de formas de atuação política passam a ser
instrumentos que se voltam contra os interesses daqueles que presumivelmente
deveriam defender. Os trabalhadores do século XIX lutaram bravamente pelo
direito ao voto, conquistaram, e então presenciaram, talvez mesmo sem perceber,
o esvaziamento do espaço político institucional.
As democracias
representativas diluem a possibilidade de influência do voto popular nas
decisões parlamentares, aperfeiçoam suas regras e criminalizam quem as colocam
em xeque. Na União Européia a distância ampliou-se ainda mais: um trabalhador
francês está muito distante do parlamento europeu, e ainda mais dos conselhos diretores
da União Européia, do Banco Central Europeu, que são, atualmente, as
instituições que tomam as decisões que irão impactar diretamente sua vida. O
voto, então, é apenas um rito insignificante do processo político, porque a
conformação da ordem burguesa em uma política e dois partidos fechou as portas
para os novos atores.
Os trabalhadores lutaram e
conquistaram direitos trabalhistas, direito à greve, direito à terem seus
sindicatos, direitos de terem representação no local do trabalho; mas então,
mais uma vez, esses direitos se voltam contra suas lutas, já que delimitam,
impedem e criminalizam qualquer ação dos trabalhadores que não esteja
estritamente nos marcos legais. Assim, uma greve nos transporte deve manter determinada
quantidade de veículos em funcionamento, de modo que a greve passa a ser apenas
um ato simbólico, deixando de ser um instrumento político. Qualquer ação fora
dos parâmetros legais passa a ser crime e o aparato policial do Estado está
sempre pronto a agir em nome da ordem, ou seja, da ordem do capital.
Além disso, o próprio fato de
uma reivindicação se consolidar num direito previsto em lei, mas que, na maior
parte das vezes demanda orçamento e regulamentação pública específica, esvazia
a luta, desmobiliza e remete à esfera das instituições a mitigação dos
problemas causados pelo sistema econômico explorador. Essa institucionalização
desmobiliza os trabalhadores em luta, abate os ânimos, solapa a solidariedade e
aguça o comportamento da saída individual, esgarçando o tecido social e
alimentando a xenofobia. Caldo de cultura mexido pela política da barbárie em
curso, através das organizações neonazistas que encontram no arcabouço jurídico
da ordem capitalista um espaço importante para crescer, além evidentemente da
capitulação social-democrata, que com seus governos abrem a passagem do túnel
do tempo para o retorno das hordas da vingança, que se manifesta pelo fascismo.
A França da Revolução de 1789
que consolidou os direitos do homem e do extraordinário legado da Comuna de
Paris encontra-se hoje marcada pela indigência que campeia em suas ruas, praças
e monumentos. São idosos que não contam mais com a solidariedade geracional,
são imigrantes que construíram a França poderosa e estão jogados em favelas
depois de Gare du Nord, em Paris.
Mas essa é a França que pode
se tornar o laboratório para construção de uma nova sociabilidade, em que o futuro
da humanidade está em disputa. Esse país é carregado pelo simbolismo das maiores
lutas dos trabalhadores. Porém, se a direita espreita na noite suja, por outro
lado, novos atores sociais surgem para impactar a luta: sindicatos e operadores
políticos convencidos de que a revolução é um rito de passagem para impedir a
barbárie. Constroem, revitalizados, uma nova perspectiva de enfrentamento.
Agora, com as lutas em curso na Grécia, com as possibilidades que se abrem na
Espanha, Itália e leste europeu, a bandeira vermelha que sempre tremulou na
França moderna, encontrará seu rumo na nova vaga da luta de classes que se
inicia. Vem aí um tempo histórico, onde um novo espectro rondará a Europa.
[1]Economista,
professora universitária e diretora do ICP (sofiamanzano@hotmail.com).
[2]Professor
de Ciência Política da UNEB e autor/organizador, entre outros, dos livros: 140 anos da Comuna de Paris (2011) e A Reflexão Marxista Sobre os Impasses do
Mundo Atual (2012), ambos pela Editora Outras
Expressões (mtpinh@uol.com.br).
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