De como o Estado
burguês, hoje no Brasil presidido pelo PT e capitaneado por uma mulher, não muda
seus mecanismos de repressão, dominação, exploração e expropriação dos
oprimidos. Um excompanheiro de luta armada da Presidente continua lutando e esperando que se cumpra as decisões judiciais tomadas pelo próprio Estado. Assim caminha o Brasil ainda hoje, com um Estado
lacaio do capital financeiro e governado por enganadores da classe
trabalhadora...
CARTA ABERTA (E
DESESPERADA!) À PRESIDENTE DILMA
Julgamento de Dilma Rousseff |
Presidente Dilma,
faz muito tempo – quase 43
anos! – que nos conhecemos naquele turbulento congresso da VAR-Palmares em
Teresópolis, de triste lembrança para mim e, presumo, também para si. Quantos
participantes logo não estariam mais conosco, sofrendo mortes que os usurpadores
do poder tudo faziam para tornar mais sofridas, pois a força era seu único
argumento e eles se viam obrigados a intimidar uma nação inteira!
Estávamos à beira do abismo e
não sabíamos. Animados pelas notícias que nos chegavam sobre o sequestro do embaixador
Charles Elbrick pela ALN, ainda nos dividíamos em discussões apaixonadas sobre
os rumos da nossa luta, como se bastasse discernirmos as melhores linhas de
ação para a vitória se tornar viável.
Hoje sabemos que tanto a
postura mais moderada dos que permaneceram na VAR (seu caso), quanto a mais
radicalizada dos refundadores da VPR (meu caso), conduziam ao mesmo martírio,
face à extrema inferioridade de nossas forças.
O poder de fogo acabou prevalecendo sobre a justeza da causa.
Então, visto retrospectivamente,
aquele congresso coincide com o início da agonia dos movimentos de resistência
que confrontaram o arbítrio no auge do terrorismo de estado em nosso país. A
partir de outubro de 1969 vimos as desgraças aumentarem dia a dia, as mortes e
prisões se tornando tão frequentes que até temíamos abrir um novo jornal.
Nós dois, presidente Dilma,
descemos ao inferno e dele conseguimos retornar, mas reconstruímo-nos de formas
diferentes, sob diferentes circunstâncias. Temos, contudo, em comum o sentimento
de débito em relação aos companheiros que tombaram, a percepção de que nos
cabe, como sobreviventes de uma epopeia que tragou algumas das pessoas mais
idealistas e generosas já produzidas por este país, honrarmos seu sacrifício.
Então, no momento mesmo de sua
vitória na eleição presidencial de 2010, eu já escrevia que "a dívida
social (...) está muito longe de ser zerada, como o foi o débito com o
FMI", daí os votos que de que aproveitasse bem "seu grande
momento", continuando a ser, no poder, "a aguerrida companheira que,
como Chaplin, queria chutar o traseiro dos ociosos; como Cristo, trouxe uma
espada para combater a injustiça; e como Marx, pretendia proporcionar a cada
trabalhador o necessário para a realização plena como ser humano".
Mais especificamente sobre o
fato de o Brasil ser presidido pela primeira vez por quem pegou em armas contra
uma ditadura, eu comentei:
"Talvez seja o que
estivesse faltando para a superação, de uma vez por todas, das dores e rancores
remanescentes de um dos períodos mais sombrios de nossa História.
E para nós, os que preparamos o
caminho da amizade, passarmos a ser vistos com mais bondade..."
Julgamento de Celso Lungaretti. |
A referência a uma poesia
famosa de Bertolt Brecht e ao tema musical da peça Arena conta Zumbi (dela
derivado) tinha um forte motivo: a mágoa que todos os antigos resistentes
carregamos, por muitos brasileiros e boa parte da grande imprensa desmerecerem a
luta quase suicida que travamos, contra um inimigo bestial e absolutamente sem
escrúpulos.
Arriscamos tudo: nossas vidas,
nossa integridade física, nossa sanidade mental e nossas carreiras. E vimos
nossos entes queridos covardemente retaliados, pois foram também submetidos a
torturas, a intimidações, a humilhações, à estigmatização e até a abusos
sexuais.
Como a Resistência Francesa,
não fomos nós que realmente derrotamos os totalitários. Mas, se os franceses,
orgulhosamente, reverenciam aqueles que salvaram a honra nacional, evitando que
o país ficasse identificado com os colaboracionistas de Vichy, há brasileiros
para quem nada significa termos sido os filhos seus (do Brasil) que não fugiram à luta.
Sem os poucos milhares de
combatentes que seguimos o exemplo de Tiradentes, a imagem que ficaria do dos
nossos anos de chumbo seria a dos deslumbrados com o milagre
econômico, preocupados exclusivamente em enriquecer enquanto as piores
atrocidades eram cometidas.
Sei que não estou falando nada
de novo para si, presidente Dilma. Acredito, contudo, que não tenha chegado ao
seu conhecimento o fato de que a União há muito descumpre a Lei n.º
10.559/2002, cujos artigos art. 12, § 4º e 18 estabelecem a obrigatoriedade de
rápido pagamento das reparações retroativas às vítimas da ditadura militar.
§4º As requisições e decisões
proferidas pelo Ministro de Estado da Justiça nos processos de anistia política
serão obrigatoriamente cumpridas no prazo de sessenta dias, por todos os órgãos
da Administração Pública e quaisquer outras entidades a que estejam dirigidas,
ressalvada a disponibilidade orçamentária.
Art.18. Caberá ao Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão efetuar, com referência às anistias concedidas
a civis, mediante comunicação do Ministério da Justiça, no prazo de sessenta
dias a contar dessa comunicação, o pagamento das reparações econômicas, desde
que atendida a ressalva do § 4º do art. 12 desta Lei.
Fica claríssimo que, havendo
disponibilidade orçamentária, tais reparações deveriam ser pagas em 60 dias; e
que, inexistindo disponibilidade orçamentária no ano em curso, teriam de estar
contempladas no Orçamento seguinte.
Tardou demais o Estado
brasileiro em oferecer-nos o que, no momento da redemocratização, teria sido um
apoio para reconstruírmos nossas vidas extremamente prejudicadas e quase
destruídas nos porões da ditadura, bem como pelas perseguições e
estigmatizações subsequentes; agora, acaba sendo apenas uma tábua de salvação
para termos, pelo menos, velhices tranquilas.
A União, contudo, reescreveu
informalmente a Lei n.º 10.559/2002 ao decidir, em 2007, quitar o retroativo
em suaves prestações mensais, até 2014,
quando se propõe a zerar o que ainda haja restado do seu débito.
Alguns conseguiram fazer com
que a escrita da lei prevalecesse, mediante mandados de segurança. Por um
destino insólito, contudo, novamente estou sendo eu a vítima da morosidade, má
vontade e sabe-se lá mais o quê dos Poderes majestáticos e suas burocracias
arrogantes --exatamente como no caso da própria concessão da anistia, que no
meu caso acabou se tornando uma pequena epopeia.
Daquela vez foram 50 meses de
espera, agora já estão sendo 66. Porque, como cidadão consciente dos meus
direitos, não me conformei com o descumprimento da Lei n.º 10.559/2002 ao longo
de todo o ano de 2006 e também em 2007, quando finalmente recorri a um mandado
de segurança (nº 12.614 - DF - 2007/0022638-1) para receber o que me era
devido. Logo depois a União anunciou seu plano de pagamento parcelado.
Meu processo levou
inacreditáveis e exatos quatro anos para ter o mérito julgado. Houve até um
pedido de unificação de jurisprudência, pois três Câmaras do Superior Tribunal
de Justiça davam decisões conflitantes sobre casos idênticos.
Após a Corte Especial ter dirimido
as dúvidas e fixado o paradigma a ser seguido, meu mandado de segurança foi
reconhecido por 9x0.
A União interpôs um embargo de
declaração, exumando um argumento (o de que tal mandado não seria o instrumento
jurídico adequado) que o titular anterior da 1ª Câmara do STJ, Luiz Fux, já
desconstruíra em 2007!
Inacreditavelmente, o atual
acaba de modificar a decisão unânime do julgamento, fazendo tudo retornar à
estaca zero!
O prosseguimento da batalha
judicial me deixa em situação dramática, pois tenho muitos dependentes e muitas
dívidas, empréstimos contraídos e várias vezes remanejados, e a obrigação de
desocupar minha morada até o último dia do ano, pois não tive como aceitar o
aumento de aluguel pleiteado pelo locador.
Sou idoso, discriminado no meu
mercado de trabalho em função de idade e convicções políticas, e tenho uma
criança de quatro anos morando comigo. Do que eu recebo da União depende também
o sustento de uma mãe octogenária e a pensão de outra filha menor, que vive com
a mãe dela.
Considero iníquo e desumano que
eu e os meus dependentes estejamos em situação tão dramática quando o que nos
faz tanta falta já me foi concedido por lei e assinado pelo ministro da Justiça
em outubro/2005!
Então, presidente Dilma,
faço-lhe um duplo e desesperado apelo:
que reconsidere a questão do
pagamento do retroativo para todos os anistiados; e que determine a seus
assessores a busca de uma saída emergencial para a situação terrível a que fui
levado pelo trâmite kafkiano do meu processo e a criatividade dos defensores da
União para desencavarem filigranas que retardem o cumprimento da lei.
Tal criatividade deveria, isto
sim, servir para minorar o sofrimento
dos seres humanos; é a desumanidade que não precisa nem deve ser criativa.
Esperançosamente,
Celso Lungaretti
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