11/12/2013
Do The Guardian
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu, no redecastorphoto
Se tivesse realmente vencido,
Mandela não seria apresentado como herói universal
Nas últimas duas décadas da
vida, Nelson Mandela foi festejado como modelo de como libertar um país do jugo
colonial sem sucumbir à tentação do poder ditatorial a sem postura
anticapitalista. Em resumo, Mandela não foi Robert Mugabe, e a África do Sul
permaneceu democracia multipartidária com imprensa livre e vibrante economia
bem integrada no mercado global e imune a horríveis experimentos socialistas.
Agora, com a morte dele, sua estatura de sábio santificado parece confirmada
para toda a eternidade: há filmes sobre ele (com Morgan Freeman no papel de
Mandela; o mesmo Freeman, aliás, que, noutro filme, encarnou Deus em pessoa).
Rock stars e líderes religiosos, esportistas e políticos, de Bill Clinton a
Fidel Castro, todos dedicados a beatificar Mandela.
Mas será essa a história
completa? Dois fatos são sistematicamente apagados nessa visão celebratória. Na
África do Sul, a maioria pobre continua a viver praticamente como vivia nos
tempos do apartheid, e a ‘conquista’ de direitos civis e políticos é
contrabalançada por violência, insegurança e crime crescentes. A única mudança
é que onde havia só a velha classe governante branca há agora também a nova
elite negra. Em segundo lugar, as pessoas já quase nem lembram que o velho
Congresso Nacional Africano não prometera só o fim do apartheid; também
prometeu mais justiça social e, até, um tipo de socialismo. Esse CNA muito mais
radical do passado está sendo gradualmente varrido da lembrança. Não surpreende
que a fúria outra vez esteja crescendo entre os sul-africanos pretos e pobres.
A África do Sul, quanto a isso,
é só a mesma versão repetida da esquerda contemporânea. Um líder ou partido é
eleito com entusiasmo universal prometendo “um novo mundo” – mas então, mais
cedo ou mais tarde, tropeçam no dilema chave: quem se atreve a tocar nos
mecanismos capitalistas? Ou prevalecerá a decisão de “jogar o jogo”? Se alguém
perturba esse mecanismo, é rapidamente “punido” com perturbações de mercado,
caos econômico e o resto todo. Por isso parece tão simples criticar Mandela por
ter abandonado a perspectiva socialista depois do fim do apartheid. Mas ele
chegou realmente a ter alguma escolha? Andar na direção do socialismo seria
possibilidade real?
(...) Marx disse (...) em sua
fórmula bem conhecida que, no universo da mercadoria, “as relações entre
pessoas assumem o disfarce de relações entre coisas”.
Na economia de mercado,
acontece de relações entre pessoas aparecerem sob disfarces que os dois lados
reconhecem como liberdade e igualdade: a dominação já não é diretamente
exercida e deixa de ser visível como tal. (...) É preciso ter em mente que a
grande lição do socialismo de estado foi, sim, que a abolição direta da
propriedade privada e a regulação das trocas pelo mercado, se não vierem
acompanhadas de formas concretas de regulação social do processo de produção,
acabam sempre, necessariamente, por ressuscitar relações diretas de servidão e
dominação.
Se apenas se extingue o mercado
(inclusive a exploração do mercado), sem substituí-lo por uma forma própria de
organização comunista da produção e das trocas, a dominação volta como uma
vingança, e com a exploração direta pelo mercado.
A regra geral é que, quando
começa uma revolta contra regime opressor semidemocrático, como aconteceu no
Oriente Médio em 2011, é fácil mobilizar grandes multidões com slogansque só se
podem descrever como “formadores de massa”: pela democracia, contra a
corrupção, por exemplo.
Mas adiante, quando nos vamos
aproximando das escolhas mais difíceis, quando nossa revolta é vitoriosa e
alcança o objetivo direto, logo nos damos conta de que o que realmente nos
atormentava (a falta de liberdade pessoal, a humilhação, a corrupção das autoridades,
a falta de perspectiva de, algum dia, chegar a ter uma vida decente)
rapidamente troca de roupa e reaparece sob um novo disfarce.
A ideologia governante mobiliza
aqui todo o seu arsenal para nos impedir de chegar àquela conclusão radical.
Põem-se logo a dizer que a liberdade democrática implica responsabilidades; que
a liberdade democrática tem seu preço; que ainda não estamos plenamente
amadurecidos, se esperamos demais da democracia.
Assim, rapidamente, passam a
nos culpar, nós mesmos, pelo nosso fracasso: numa sociedade livre – é o que nos
dizem – todos somos capitalistas que investimos na nossa própria vida; e temos
de alocar mais dinheiro para a educação do que para nossas festas e noitadas e
lazer. Que se não fizermos assim, nossa democracia não terá sucesso.
Num plano diretamente mais
político, a política externa dos EUA elaborou detalhada estratégia para
controle de danos: basta converter o levante popular em restrições
capitalistas-parlamentares palatáveis. Isso, precisamente, foi feito com
sucesso na África do Sul, depois do fim do regime de apartheid; foi feito nas
Filipinas depois da queda de Marcos; foi feito na Indonésia depois da queda de
Suharto e foi feito também em outros lugares
Nessa precisa conjuntura, as
políticas radicais de emancipação enfrentam o seu maior desafio: como fazer
avançar as coisas depois de acabado o primeiro estágio de entusiasmo, como dar
o passo seguinte sem sucumbir à catástrofe da tentação “totalitária”, em
resumo: como avançar além de Mandela, sem se converter num Mugabe.
Se quisermos permanecer fiéis
ao legado de Mandela, temos de deixar de lado as lágrimas de crocodilo das
celebrações e nos focar em todas as promessas não cumpridas infladas sob sua
liderança e por causa dela. Assim se verá facilmente que, apesar de sua
indiscutível grandeza política e moral, Mandela, no fim da vida, era também um
velho triste, bem consciente de que seu triunfo político e sua consagração como
herói universal não passavam de máscara para esconder derrota muito amarga. A glória
universal de Mandela é também prova de que ele não perturbou a ordem global do
poder.
Nota dos tradutores
No Brasil, o que a CIA,
amancebada com as empresas-imprensa locais, fez/fizeram foi converter os
pré-levantes populares de 1954... Em restrições-parlamentares IMPALATÁVEIS
[:-)], processo que se conhece como “a redemocratização de Sarney” e que a
tucanaria da privataria saudou, eufórica, e na qual mamou durante quase 50
anos. Até que, em 2001, começou a perder eleições presidenciais (NTs).
[1] Ver também sobre vários
aspectos da crítica à papai-noel-ização de Mandela:
(a) We Are Witnessing the “Santa Claus-ification” of Nelson Mandela [Estamos assistindo à papai-noel-ização de Nelson Mandela], 7/12/2013, Cornel West, Breibart TV.
(b) “Converteram Mandela numa
espécie de princesa Diana” (em 7/12/2013, Jonathan Cook, Information Clearing
House).
(c) “O sequestro do legado de
Mandela” [The hijacking of Mandela's legacy], 8/12/2013, Pepe Escobar, Russia
Today
(d) “Manifesto sobre o Camarada
Mandela”, Partido Comunista da África do Sul, 6/12/2013, Workers World,
redecastorphoto (traduzido).
(e) “Libertem Mandela (das
grades da mentira)”, 20/7/2005, Tony Karon, em Moon of Alabama, (traduzido em
redecastorphoto).
Fonte: Jornal GGN
Nenhum comentário:
Postar um comentário