Mauro
Iasi*
Publicado
em 11/12/2013
Vandré
Diante
da barbárie instalada e da descarada ação autoritária do Estado brasileiro
diante das manifestações, muitos têm utilizado a expressão “Estado de exceção”
indicando o risco da naturalização de práticas que desconsideram o ordenamento
jurídico estabelecido e os princípios de um suposto “Estado de direito” que
teria substituído a ditadura militar.
Compreendemos
a intenção daqueles que assim procedem no justificado intuito de defesa da
ordem constitucional, de princípios elementares na defesa dos direitos humanos
e de práticas, digamos, civilizadas. Há no entanto um risco que reside no fato
de supor que existe uma forma, considerada virtuosa, que consiste no respeito
formal das regras e procedimentos, sendo os “desvios”, apenas anomalias que se
controladas tudo funcionaria bem. Infelizmente a realidade da sociedade
brasileira parece provar que a exceção é a regra.
O
Estado de classe no Brasil que tem por fundamento a defesa da ordem da
propriedade privada e as condições que garantam a acumulação de capitais,
sempre agiu combinando diferentes formas de garantia da ordem, ora predominando
formas repressivas, ora na busca da formação de consensos. O que importa
ressaltar é que mesmo nos momentos nos quais a busca por formas de legitimação
e de hegemonia predominam, o aspecto repressivo nunca foi relegado.
Tal
aspecto fica evidente na transição da ditadura burguesa em sua forma militar
para uma ditadura burguesa na forma de uma democracia, ou de um denominado
“Estado de Direito”. É, sem sombra de dúvida, de grande relevância que aspectos
formais sejam garantidos, como a garantia do habeas corpus, não ser preso sem
uma acusação formal e dentro do rito de um devido processo legal, o direito de
ampla defesa, o cumprimento da pena em condições estabelecidas pela Lei de
Execuções Penais, entre outros.
A
ilusão, no entanto, é a suposição de que uma vez garantidos no ordenamento
jurídico e no quadro de uma ordem institucional que torne praticável, tais
direitos e práticas passem a ser efetivos. Os chamados “desvios” seriam
reminiscências de um Estado autoritário que vicejam nos interstícios de um
Estado de Direito, como práticas anômalas. Parece-nos que esta aproximação
desconsidera que tais práticas permanecem porque têm uma funcionalidade
específica na ordem da sociedade de classes a ser mantida; e que se fundamenta
em contradições que se reproduzem manifestando-se em desigualdades de fato que
a igualdade formal não consegue reverter. Como dizia Martín Fierro, genial
personagem gaúcho de José Hernández, “a justiça é como uma teia de aranha:
quando o bicho é pequeno o prende, quando é grande a rompe”.
Vamos a
alguns exemplos, todos ocorridos no quadro de um Estado Democrático de Direito.
O primeiro condenado por participar na manifestações de rua que eclodiram no
Brasil em 2013 é um morador de rua chamado Rafael Vieira, acusado pelo
Ministério Público e condenado pelo juiz Guilherme Shilling Pollo Duarte, por
estar de porte de dois frascos de desinfetante e água sanitária na rua no
momento de uma manifestação. Para o Ministério Publico tratava-se de “aparato
incendiário ou explosivo” e para o digníssimo juiz “a utilização do material
incendiário, no bojo de tamanha aglomeração de pessoas, é capaz de comprometer
e criar risco considerável à incolumidade dos demais participantes”.
Mesmo
considerando o risco que um material de limpeza poderia produzir na imundice da
ordem política reinante, não nos parece ser esta a lógica da condenação, toda
ela fundada, vejam só, no depoimento de um policial civil que alega que ele foi
preso porque estava com o material na mão, material que, segundo o laudo da
policia, o suspeito portava “artefatos semelhantes a um coquetel molotov”. Foi
suficiente para que o ministério público transformasse isso em porte de
material explosivo e enquadrasse o morador de rua no inciso III, artigo 16 do
Código do Desarmamento.
Duas
observações simples, que constam do próprio laudo da polícia: o recipiente não
continha panos ou trapos que poderiam servir como mechas e o recipiente era de
PLÁSTICO, o que impede a fragmentação e não serve como coquetel molotov! Rafael
Vieira tem 26 anos, é negro e vem de duas sentenças cumpridas no sistema
prisional.
Uma
mulher de 19 anos foi condenada em 2005 por roubar um pote de manteiga porque
seu filho estava com fome. Não participava de uma manifestação e a manteiga não
poderia explodir o palácio dos Bandeirantes. Passou 128 dias presa, apesar dos
recursos de seu advogado que pediu a liberdade provisória de sua cliente,
recursos que foram negados por quatro vezes. Depois de um recurso ao Superior
Tribunal de Justiça ela foi condenada a quatro anos em regime semi-aberto.
No dia
primeiro de dezembro de 2013, um dos protagonistas do filme Terra vermelha, que
trata da luta do povo Guarani-Kaiowá pela demarcação de suas terras, foi
assassinado. Seu nome era Ambrósio Vilhalva Kaiowá. Não se trata de um caso
isolado, desde 2003 foram assassinadas 500 índios no país e é evidente a
relação destas mortes com a luta pela demarcação de suas terras e a criminosa
inoperância do governo. Durante os governos de Lula e Dilma o numero de mortes
entre os indígenas cresceu em 168%.
Não é
apenas com o sangue indígena que se tinge a terra de vermelho. A luta pela
terra ceifou muitas vidas de camponeses e militantes, só nos primeiros quatro
meses de 2012 foram assassinados 12 lutadores e, segundo relatório sobre os
conflitos no campo no Brasil “os conflitos pela posse de terra saltaram de 853
em 2010 até 1.035 em 2011, com um crescimento de 21,32%, assim como o aumento
de 177,6% do número de camponeses ameaçados de morte (de 125 a 347)”.
Nos
últimos dez anos a PM do Rio de Janeiro matou cerca de dez mil pessoas, a
maioria jovens e negros. No conjunto destes dados chama nossa atenção os
chamados “autos de resistência”. Entre 2005 e 2007 foram 707 casos de autos de
resistência com autoria reconhecida, dos quais apenas 355 viraram inquéritos
policiais, 19 foram encaminhados à justiça, 16 foram arquivados e só um foi
levado a jure resultando em condenação.
Em
2012, só em São Paulo, foram 5,3 mil internações involuntárias para “tratar”
dependentes químicos. Este numero saltou de algo entorno de 700 internações
involuntárias em 2003 para esta marca de cinco mil em 2012 e práticas
semelhantes estão se disseminando nas principais capitais brasileiras, com
destaque para o Rio de Janeiro.
Ressalto
estes fatos pois para todos os casos descritos há aparatos legais e parâmetros
jurídicos e institucionais estabelecidos. São pobres, negros, índios,
camponeses sem terra, loucos, manifestantes vândalos, que incomodam a ordem do
mercado e do capital. As portas de seu barracos não precisam de mandatos
judiciais para serem derrubadas, seus corpus não tem direitos, podem ser presos
e mantidos incomunicáveis, seus corpos desaparecem (caiu o numero de mortes em
confronto com a polícia e cresceu o numero de desaparecidos), seus sofrimentos
psíquicos atrapalham a beleza dos jardins estéreis e assépticos, sua urina
cheira a mijo.
Para
estes restos… o cacete, o porrete da ordem, a cadeia, o manicômio, os porões,
sacos plásticos na cabeça, covas rasas, matagais, tapas na cara, valas comuns,
celas lotadas. Não como exceção, como regra, ração diária de barbárie,
exercício sistemático de arbitrariedade. Como dizia Brecht “No regime que
criaram a humanidade é exceção. Assim, quem se mostra humano paga caro essa
lição”.
Na abstração
do ordenamento jurídico reina uma ordem abstrata que se choca com a carne da
realidade. Na vida cotidiana das contradições os agentes do Estado e seus
aparatos operam no quadro de um pragmatismo de fazer inveja aos altos escalões
do governo. A Lei de Execuções Penais determina que cada preso tenha seis
metros quadrados, mas a política de garantia da ordem continua mandando gente
para a cadeia num volume exponencial, o que resulta em setenta centímetros
quadrados para cada preso. O que faz o agente penitenciário? Fecha a porta e
espera passar seu horário de trabalho.
No frio
da noite do deserto uma mulher sente as dores do parto. São pobres, vagam sem
terra guiados por uma estrela que perdeu seu rumo. O Estado resolveu combater
profecias assassinando crianças. Eles se abrigam numa manjedoura na qual os
pacientes esperam para ser atendidos em macas pelos corredores ou em um pedaço
de chão sujo. Seu pai operário desempregado, sua mãe carregando no corpo a
opressão de milênios sobre as mulheres desde a reintegração de posse lá no
paraíso. A criança crescerá para ser assassinada pelo Estado, não antes de
passar por um julgamento duvidoso e ser torturado pelos agentes da UPP romana
em Jerusalém.
Nos
momentos finais de agonia, entre dois ladrões, um bom e outro mau – diferença
desconsiderada na sentença proferida e na crucificação realizada –, o condenado
do meio olha para os céus e maldiz seu pai (não o marceneiro, o outro: o
Abstrato). São três os condenados que sofrem, cada um em sua cruz. Afastando o
olhar, vemos nos morros ao redor, centenas, milhares de cruzes sob um céu de
chumbo que se fecha sobre o mundo.
O
império que parecia eterno ruiu. O juiz continua até hoje lavando suas mãos
sujas de sangue. Naquele morro haviam três condenados pelo Estado, dois ladrões
e um revolucionário. Dizem que só um… apenas um… ressuscitou.
Feliz
natal e um ano cheiinho de lutas contra o Estado Burguês. É melhor preparar as
cadeias, porque não vamos parar de lutar.
“É
a volta do cipó de arueira
no
lombo de quem mandou dar”
Vandré
Mauro Luis Iasi é um dos colaboradores
do livro de intervenção Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que
tomaram as ruas do Brasil, organizado pela Boitempo. Com textos de David
Harvey, Slavoj Žižek, Mike Davis, Ruy Braga, Ermínia Maricato entre outros.
Confira, abaixo, o debate de lançamento do livro no Rio de Janeiro, com os
autores Carlos Vainer, Mauro Iasi, Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira:
Cidades
Rebeldes_Jornadas
Confira a cobertura das manifestações de junho no Blog da
Boitempo, com vídeos e textos de Mauro Iasi, Ruy Braga, Roberto Schwarz, Paulo
Arantes, Ricardo Musse, Giovanni Alves, Silvia Viana, Slavoj Žižek, Immanuel
Wallerstein, João Alexandre Peschanski, Carlos Eduardo Martins, Jorge Luiz
Souto Maior, Lincoln Secco, Dênis de Moraes, Marilena Chaui e Edson Teles,
entre outros!
*Mauro Iasi é professor adjunto da Escola
de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo
de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central
do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência
(Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Fonte: Blog
da Boitempo
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