Livro põe o dedo na ferida de
uma velha “doxa” do mundo intelectual: aquela que coloca em lados opostos do
ringue “marxistas” e “antropólogos”
Por Hugo Albuquerque
19 de dezembro de 2013
Marx Selvagem, vetusta tese de
doutorado de Jean Tible, finalmente deveio livro. Seu lançamento, no Teatro
Oficina da trupe do antropofágico Zé Celso Martinez Corrêa, foi uma feliz
escolha para uma obra desse naipe – e tornou-se, no fim das contas, um
verdadeiro acontecimento (vide vídeo no final da matéria) em Novembro último. Tible lançou um olhar sobre um Marx
menor – em contraste com um Marx grandioso, civilizado e arrogante – que se
revela, não por acaso, na virada dada pelo filósofo alemão na compreensão do
colonialismo e das chamadas sociedades sem classes: isto é, quando Marx se
livra, ou tenta se livrar, do paradigma
ilumino-modernista, algo que no plano conceitual se dá na forma de seu
afastamento definitivo da filosofia da consciência hegeliana rumo a uma
ontologia do sensível, no qual a temática da subjetividade torna-se horizonte
visível.
A opção do autor pela
problemática do pensamento marxiano face aos selvagens é uma curiosa, e
pertinente, forma de abordar essa transição de Marx, justamente pelo
significado disso no plano das lutas. A escolha de Tible, quando este poderia
simplesmente optar por discutir os desdobramentos ontológicos desse processo, é
reveladora do seu ímpeto político e iconoclasta. Em algo, ele ecoa o espírito
de obras como a Anomalia Selvagem de Toni Negri, isto é, fazer justiça com as
próprias mãos contra a apropriação majoritária e civilizatória de um grande
pensador – no caso de Negri, Spinoza, enquanto aqui, Marx. É, pois, uma
proposta original e audaciosa, que merece ser lida — e, obviamente, deglutida
da melhor forma.
Convém, a título de explicação,
expor a maneira como essas “sociedades”, esses selvagens todos, se articulariam
no interior do pensamento marxiano, o que implica em questões importantes e
delicadas no que toca à obra do filósofo alemão: (I) no plano dos conceitos, a
afirmação de que o grau de abertura de Marx para a subjetividade, e
consequentemente para as temáticas da filosofia contemporânea, é mesmo maior do
que poderiam suportar, por exemplo, marxistas ortodoxos, modernistas e/ou
iluministas — como algum bolshevik genérico, Hobsbawn e/ou Elster; (II) no
plano das lutas, trata-se de uma rearticulação da maneira como se toma o
colonialismo, o capitalismo e formas de resistência, o que oporia Marx à
sujeição incondicional ao processo civilizatório — sujeição tal que não poucos
marxistas se apegam e se apegaram, basta lembrar da União Soviética ou mesmo de
um (ex?)trotskysta como Hitchens defendendo a Guerra do Iraque. Conceitos e
lutas, nem preciso dizer, estão intimamente ligados na práxismarxista.
Logo, é evidente que Marx
Selvagem põe o dedo na ferida de uma velha doxa do mundo intelectual: aquela
que coloca em lados opostos do ringue “marxistas” e “antropólogos” — em uma
arenga interminável e sem solução. O motivo da querela é justamente a segunda
razão acima apontada: Marx, segundo os “antropólogos”, seria aliado da
civilização e seu aparente radicalismo significaria, apenas e tão somente, uma
variação possível dentro do paradigma organizativo judaico-cristão do ocidente
— mais ou menos aquilo que Pierre Clastres trouxe à baila em seu Sociedade
contra o Estado. E que para alguns “marxistas” é isso mesmo: a história é linha
reta determinada pelo o desenvolvimento dos meios de produção, o que exige um
compromisso profundo com a “civilização” e seu avanço — mesmo com certos,
digamos, “sacrifícios” em nome do bem maior, sendo o comunismo, ele mesmo,
apenas o estágio superior da civilização.
Pois bem, o livro de Tible é
bom porque se livra dessas falácias, insere-se na alegremente na polêmica —
ainda que por ser um tese de doutorado, antes de um livro, carregue um estilo às
vezes demasiado acadêmico, mais pesado do que uma obra com essa temática
demanda. A obra em questão está articulada em três capítulos: o primeiro, sobre
a relação de Marx e o colonialismo e a América Indígena, o segundo, a respeito
da práxis antiestatal de Marx — aproximando-o do Clastres que lhe criticou tão
duramente — e, por fim, o melhor e mais relevante capítulo: cosmologias, no
qual Tible delinea o ponto de conexão entre Marx e o pensamento ameríndio —
aqui, na forma da antropologia reversa de Davi Copenawa –, o que é precisamente
a relação entre a noção marxiana de fetiche da mercadoria e o de feitiço: os
brancos civilizados, pois, não estão menos isentos de serem enfeitiçados, ao
contrário, vivem imersos na atração fatal que nutrem por seus objetos técnicos,
na medida em que lhe atribuem feições humanas – no mesmo movimento em que
desumanizam a si mesmos e aos outros, sendo que só a partir daí tais objetos
devêm mercadoria.Sim, Marx, ao contrário de Engels, emergiu gradualmente do
fetiche civilizatório e modernista. E é em torno disso que giro o primeiro
capítulo do livro. E isso não é generosidade demasiada, uma apropriação
arbitrária ou wishful thinking do autor de Marx Selvagem para com Marx: Tible
demonstra isso com obstinação ao expor o giro marxiano em relação à questão
colonial; o velho Marx possuía uma posição inicial sobre o imperialismo,
segundo a qual o processo de colonização era visto como uma chance de povos
como os indianos entrarem na História para, depois, chutarem os colonizadores britânicos,
unindo-se aos trabalhadores do mundo num processo que desembocaria na
revolução; isso muda, no entanto, quando Marx assume uma posição absolutamente
hostil ao colonialismo, o qual passa a ser enxergado como mero meio de
retroalimentação da máquina capitalista mundial: seria um dispositivo marcado
pela dialética centro (progresso) e periferia (atraso), na qual os civilizados
explorariam os selvagens e bárbaros, que lhes eram contemporâneos. A partir
daí, a própria luta de classes tornaria-se uma modalidade da exploração geral,
a qual em escala global era dada pelo processo de parasitagem do
colonialismo.Grande parte desse giro marxiano se dá em razão da leitura
marxiana do antropólogo americano Lewis Henry Morgan: e a novidade que Morgan
trouxe à antropologia foi de não apenas deixar de lado o discurso
colonial-racista dos seus pares, mas também — e sobretudo — de afirmar que as
as coletividades humanas selvagens não eram necessariamente piores. Ao
contrário. Isto é, ainda há uma certa linearidade em Morgan — como há em Marx
–, mas o que certamente lhe fascinou em Marx foi que os selvagens não estão
postos em uma condição hierarquicamente inferior aos civilizados, consistindo
em formas diferentes de coexistência — ambas sincrônicas, diga-se de passagem.
Tible, aliás, é particularmente competente em demonstrar isso.
As coisas esquentam mesmo no
segundo capítulo, quando Tible faz uma leitura do anti-estatalismo na obra de
Marx e de Pierre Clastres, ousando estabelecer um ponto de conexão entre ambos
— o que, a um primeiro olhar, seria tarefa impossível. Pois bem, a hipótese que
o autor traça é conectar a sociedade sem Estado de Marx a a sociedade contra o
Estado de Clastres, encontrando um comum em meio à (aparente?) dissonância.
Sim, ambos, Marx e Clastres, são pensadores anti-Estado. A partir daí, ele
traça o anti-estatalismo na obra dos dois para, logo mais, promover o encontro
entre eles. A transição revolucionária de Marx, o que há entre o Estado burguês
e o comunismo, como o esconjuramento atual do Estado em Clastres?
E Tible faz bem isso ao nos
lembrar que Marx não é Lassalle, para quem a ideia de um Estado popular e
proletário já aparecia com O caminho: isto é, para Marx, o Estado não é
solução, mas resultado funesto da sociedade de classes, o que pode ser definido
na seguinte fórmula. A sociedade de classes é causa efetiva do Estado, pois
este é o local por excelência, no qual a classe dominante reprime/media as
tensões causadas pela resistência da(s) classe(s) dominadas. De tal forma, ao
assumir a posição da classe trabalhadora como a classe revolucionária, ele
acreditava que esta ao assumir o poder seria capaz de promover a
universalização da qual os burgueses jamais seriam, ou foram, capazes: esta
universalização levaria a uma sociedade sem classes, ao fim do capitalismo, e
consequente esvaecimento gradual do Estado. Essa talvez seja a maior diferença
entre Marx e Engels, uma vez que o segundo via o Estado como causa, ao menos
relativa, uma vez que ele era instrumento de repressão nas mãos da classe
dominante: no engelianismo, uma vez a revolução sobreviesse e a reação a esta
cessasse, o Estado perderia utilidade.
Mas é nas polêmicas com Bakunin
que chegamos ao ponto que interessa. No que se refere ao combate
político-intelectual com o anarquista russo, Marx defende sempre uma transição
revolucionária para a sociedade de classes — e estatal — e sociedade sem
classes, por não acreditar na abolição estatal “por decreto” como defendida por
Bakunin; no entanto, Bakunin da sua parte responde a Marx — e não a nenhum
marxista, contemporâneo ou futuro – que a transição proposta culminaria na
prevalência do Estado de um modo tão ou mais autoritário — não é que Bakunin
discordasse da libertação dos trabalhadores, mas sim de que a hegemonia
proletária no Estado não seria capaz de gerar a liberação humana e que, ainda,
entendia que o Estado gerava, ou sustentava, a sociedade de classes, logo, a
sociedade sem Estado era condição prévia para a sociedade sem classes — e não o
contrário.
Tible, no entanto, poderia ter
feito um esforço mais conceitual do que descritivo no que diz respeito à
inversão Bakuniniana e suas implicações.
E poderia ter mergulhado com mais profundida na dicotomia
marx-bakuniniana sobre a sociedade de classes e o Estado. Isso fica claro quando
Tible prefere rebater a crítica de Bakunin ao estatismo colateral do plano de
transição revolucionário de Marx, vejamos nós, pela exposição da falta de um
plano de ação à proposta teórica de Bakunin, o que teria sido comprovado por
seus fracassos práticos — ou quando procurar explicar a certeza da antevisão
(cruel? auspiciosa?) do anarquista, sobre o que seria a experiência histórica
do “socialismo real”, pelo viés de sua eventual razão em relação “a um certo
marxismo já existente”, e não em relação a conceitos marxianos efetivos. A
crítica ao modo como a polêmica marx-bakuniniana foi pouco enfrentada consta do
próprio posfácio e, convenhamos, é justa.
Quando trata de Clastres, Tible
nos lembra que para o antropólogo francês, o Estado sempre existiu, mas nas
sociedades indígenas existentes, este
era esconjurado por uma série de práticas que esvaziam o desenvolvimento do
poder. Isto é, longe de Engels, que concebeu o Estado como evolução histórica
da divisão do trabalho em As Origens da Família, da Propriedade Privada e do
Trabalho, para Clastres o Estado estava posto desde sempre, mas práticas como o
nomadismo e a relação entre a tribo e seus guerreiros e chefes, ele restava
apenas latente. O que os povos estudados por Clastres nos apontavam era a possibilidade
de esconjurarmos o Estado aqui-agora. Isso seria possível, pois os povos de
Estado, já foram, algum dia sem Estado, não por falta de evolução, mas pelos
agenciamentos coletivos que produziam, o que estaria à nossa mão aqui-agora —
e, sim, você há de ter lido algo do gênero, não por acaso, em Deleuze-Guattari.
topo-posts-margem
Germany - Karl Marx 125th obit- Busts of Karl Marx
Mas Marx, em dado momento, já
antevia as sociedades sem Estado existentes hoje como um símbolo do passado
(europeu), mas, sobretudo, como flecha apontando para o comunismo do porvir.
Eis o que seria o casamento (possível) entre a sociedade sem Estado e a
sociedade contra o Estado, atadas por um fio vermelho. Mas Tible perdeu a
oportunidade para adensar algo que ele mesmo suscitou, quando lembrou o
comentário de Gustavo Barbosa sobre o contratualismo em Hobbes: faltou,
entretanto, definir o que seria, ontologicamente, “sociedade”, ou qual o motivo
de naturalizarmos o termo como a própria essência da coletividade humana; se o
próprio Marx via o contrato social como um mecanismo de expropriação, seria
possível haver sociedade sem contrato social? E poderia haver sociedade — A
Sociedade –, sem haver um Estado para fazer valer — à força, se necessário —
tal contrato? Como os selvagens, que em toda a literatura contratualista não
travaram contrato social algum, poderiam constituir uma forma de sociedade?
São questão que ambos, Marx e
Clastres, não enfrentaram a seu tempo, logo, Tible não teria obrigação, em
tese, de fazê-lo descritivamente em um trabalho acadêmico. Mas poderia ter adensado
a crítica nessa direção. Deleuze e Guattari, eles mesmo, acertaram ao falar, no
Anti-Édipo, no acerto de Marx ao tratar a história como a história dos cortes e
das contingências, mas apontavam que o pensador alemão errou ao fazer leitura
da história como luta de classes — quando isso pode se revelar apenas a
história desde o advento da burguesia –, o que causava a ilusão de ótica de ver
a burguesia, em algum momento, como realmente revolucionária — o que implica em
desconhecer os próprios descaminhos da revolução passada e, consequentemente,
das revoluções futuras. Por outro lado, no entanto, D&G esvaziaram isso ao,
em Mil Platôs, surgirem com a ideia da existência de um Estado, ou um fantasma
estatal, que percorreria a história do humana. A própria noção de socius, já no Anti-Édipo, é parte dessa
contradição em termos, uma vez que o pensamento social, ao contrário do que
parece, é eminentemente burguês.
Ainda que Marx e Clastres digam
“sociedade” como expressão de qualquer coletividade humana, o fato de não
esmiuçar o conteúdo específico do termo leva ao desconhecimento dos efeitos
dessa naturalização. Não, os índios não vivem em sociedade por que não
partilham um contrato, isto é, não vivem em regime negocial. O ócio, isto é,
trabalhar para viver e não viver para trabalhar é o que – acima de tudo –
distingue os índios de nós, pobres ricos ocidentais. Os selvagens não travam
sociedades entre si, tampouco vivem sob a égide de A Sociedade — portanto, do
Estado. A dificuldade de Marx e Clastres em articular contrato social,
sociedade e Estado, possuem um desdobramentos importantes. O que por trás da
naturalidade, no sentido de normalidade, da sociedade é algo que poderia ter
sido respondido. Entender a história para além dos termos em que seu deu a luta
na sociedade hegemonizada pela burguesia exige, também, uma genealogia profunda
do contratualismo.
O ponto forte do livro está
mesmo no terceiro — e último – capítulo. Copenawa e Marx, separados por dois
séculos — e um imenso oceano — de diferença, mas que veem na relação mágica — e
teológica — dos homens com seus objetos a chave para a crítica à economia
política e ao capitalismo. Assertiva perfeita de Tible. O liame da relação
entre homem e mercadoria é, precisamente, afetivo, dada pelos efeitos reais de um
discurso imaginário. É precisamente essa liame subjetivo que permitiu a virada
do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro e cognitivo. A mágica
devém absoluta, justamente porque os objetos técnicos já eram laterais antes,
até se tornarem quase que completamente obsoletos nos dias atuais: o que gera
valor são conceitos, abstrações, marcas.
E certíssima a crítica de Tible
a Viveiros de Castro, alguém cujo ponto feliz de sua antropologia está em
relacionar a metafísica deleuzo-guattariana — que é sim marxista — com uma
pesquisa etnográfica densa — e Viveiros concorda com o Marx da virada mais do
que gostaria, e poderia admitir, como Tible felizmente demonstra. O que Tible
não adensou, novamente, é que se Viveiros, via D&G, vê bem o erro marxiano
(dar uma demasiada universalidade à história burguesa), por outro lado,
novamente por meio dos dois, repetiram o erro de Marx ao dar, p.ex., uma
existência extra-histórica na História ao Estado (sempre houve Estado), o que
polui o pensamento de neblina na hora de destrinchar, e desmontar, dispositivos
específicos – os quais estão a serviço
da escravidão universal do regime do Capital.
Por fim, Marx Selvagem, que
desemboca em Oswald no final, é uma obra divertida. Passa por muitos autores,
questões e polêmicas caros ao pensamento-prática da esquerda atual. Mas
importante de tudo, é a leitura correta de Marx presente no livro, ao levantar
a bola para onde o pensador alemão mirava no século 19º, e não para o seu
retrovisor, isto é, a própria tradição majoritária alemã. O Marx maior,
felizmente, foi jogado na lata do lixo da História, primeiro com a queda do
Muro de Berlim, depois com a crise do colaboracionismo de esquerda ao
neoliberalismo, agora, mais do que nunca, é hora de pôr em prática um outro
Marx, o que, a nosso ver, é imprescindível. Hoje, mais do que nunca, é o
momento de bradar: Selvagens do Mundo, Uni-vos!
TIBLE, Jean. Marx Selvagem. São
Paulo: Editora Annablume, 2013, 242 páginas.
Fonte: O
Descurvo
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