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Sociólogo Michael Löwy discorre sobre os
pensamentos de Walter Benjamin, em especial, a sua visão do capitalismo como
religião
Marcelo Netto Rodrigues,
07/11/2013
Um dos
maiores pesquisadores da obra de Walter Benjamin, Michael Löwy, sociólogo
brasileiro radicado na França desde os anos de 1960, veio ao Brasil no mês
passado para participar de debates em torno do recém-lançado O capitalismo como
religião, livro por ele organizado.
Nele, além
do fragmento que dá título ao livro, Löwy reuniu 16 ensaios de Benjamin ainda
inéditos em português ou difíceis de consultar, que contêm, em graus variados,
uma crítica radical da civilização capitalista-industrial moderna.
O
capitalismo como religião “original”, redigido em 1921, mas que permaneceu
inédito até 1985, é considerado um dos textos mais intrigantes de Benjamin,
apesar de conter – ou justamente por isso – não mais do que três páginas.
Como, uma
vez, sintetizou Löwy em artigo de 2006: “Inspirado na obra de Max Weber
[1864-1920] – nominalmente citado –, sob uma afinidade eletiva com “A ética
protestante e o espírito do capitalismo” [1904-1905/1920], Benjamin [não
obstante] vai mais longe que o sociólogo: o capitalismo não tem somente origens
religiosas, ele mesmo é uma religião, um culto incessante, sem trégua nem
piedade, que conduz o planeta humano à “casa do desespero”. Esse fragmento
pertence, como alguns textos de Georg Lukács, Ernst Bloch ou Erich Fromm, à
categoria das ‘interpretações’ anticapitalistas de Weber”.
Brasil de Fato – Como atua o capitalismo como
religião na visão de Benjamin? Essa visão ainda é pertinente?
Michael Löwy – Benjamin tem algumas intuições fortes
neste ensaio, que não é um ensaio marxista, Nessa época, Benjamin era próximo
do anarquismo, do socialismo libertário, mas ele capta alguns aspectos
essenciais do capitalismo que são surpreendentemente atuais. Primeiro, ele
define o capitalismo como culto religioso, rituais, práticas de adoração. Ele
menciona que uma das divindades dessa religião capitalista é o dinheiro.
Enquanto as práticas capitalistas, a especulação na Bolsa, as negociatas
bancárias, tudo isso, são elementos desse ritual religioso em torno do
dinheiro. Ele diz que esse culto é sem trégua nem piedade. O capitalismo não
para, não tem feriado. De dia e de noite, acompanha as pessoas, do nascimento
ao túmulo. Enfim, o capitalismo ocupa o conjunto da vida das pessoas. E ele é
completamente impiedoso, não possui ética. Isso Max Weber já tinha dito. E
Benjamin retoma alguns temas de Weber. O capitalismo é sem ética. Por essência,
ele é estranho a qualquer argumento ético. Não por maldade, mas porque a lógica
do sistema não admite critérios éticos. Isso parece também muito atual. Além
disso, Benjamin também diz que no coração da religião capitalista há o conceito
de Schuld, que em alemão é ao mesmo tempo “dívida” e “culpa”. Benjamin diz que
é uma coincidência diabólica que culpa e dívida sejam a mesma palavra. O que a
gente vê hoje com a crise capitalista é exatamente isso, quer dizer, o
argumento dos governos, dos bancos, dos economistas, da imprensa, é que quem
está endividado é culpado. Se Grécia, Portugal e Espanha estão endividados é
culpa deles, porque são preguiçosos, não trabalham. Toda uma argumentação
pseudo-religiosa, moralista, que explica a dívida pela culpa. Essa conjunção
diabólica está no centro dessa situação atual na Europa. Isso é muito evidente.
Outra característica do capitalismo como religião, segundo Benjamin, é o
desespero. A religião capitalista levou a humanidade à casa do desespero. Isso
a gente vê hoje com a crise, com esse estado de espírito de desespero terrível
das pessoas, que se traduz até em suicídio, coisas bastante terríveis do ponto
de vista humano. Então, acho que [a leitura feita por Benjamin] é de uma
atualidade tremenda.
Em As
utopias de Michael Löwy: reflexões sobre um marxista insubordinado (2007), lá
no apêndice, o senhor traça comentários sobre trechos d’ O capitalismo como
religião, mas o fragmento em si não aparece na íntegra. Agora, o texto inteiro
de Benjamin é publicado, mas sem os seus comentários...
Aquele
texto que saiu em As utopias é uma conferência que dei naquela ocasião e
escolhi como tema esse texto de Benjamin. Então, como já havia sido publicado
não era o caso de retomá-lo. Naquela coletânea não aparece o texto do Benjamin
porque se trata de outra temática e eu queria que o texto [na íntegra]
figurasse nesta nova coletânea que estamos lançando.
Na orelha
do livro, a psicanalista Maria Rita Kehl ressalta que apesar da palavra
“melancolia” não estar contida no texto de Benjamin, seu sentido é iluminado
por ele.
A
“melancolia” aqui aparece sob a forma do desespero, o sentimento de que você
está condenado sem esperança: a desesperança. O capitalismo é uma jaula de
ferro, [conceito desenvolvido por Weber], na qual estamos fechados sem saída.
Isso é o desespero, isso é a melancolia. Agora, Benjamin não é um melancólico
resignado. Ele tem um ensaio sobre surrealismo, de 1929, em que ele diz que ser
comunista, ser revolucionário, exige pessimismo. Ser revolucionário é organizar
o pessimismo. Então o pessimismo, a melancolia e até o desespero de Benjamin
não são resignados, não são fatalistas como era Weber. São ativos, são
rebeldes, são revolucionários. É um pouco difícil entender isso: como você pode
ser um pessimista revolucionário. Então, Benjamin argumenta que há o pessimismo
porque se deixarmos as coisas correrem como até agora, a catástrofe é inevitável.
E até agora tem sido assim. Temos sido derrotados e a história é uma sucessão
de catástrofes. Mas, ao mesmo tempo, é um chamado para a ação. Se queremos
impedir a catástrofe, temos que agir. E a única esperança de impedir a
catástrofe é a revolução. A revolução, ele escreve em Rua de mão única, é você
cortar o fi o da meada antes que pegue fogo na dinamite.
Então é um
chamado à ação antes que seja tarde demais. A uma ação urgente. Então, todo
espírito dele é esse: precisamos agir antes que seja tarde demais. Então é um
pessimismo ativo, é uma melancolia ativa e é um desespero ativo, paradoxal, mas
é assim. Então, nesse fragmento, não chega a ser um ensaio, sobre o capitalismo
como religião você vê que ele está buscando uma saída. Não está resignado, está
buscando uma saída, mais além do desespero. Temos que encontrar a porta, a
janela para sair dessa casa do desespero. Então, ele vai discutindo várias
propostas de saída, dizendo: “Essa é uma ilusão”. Por exemplo, ele pega os
monges que se afastaram do capitalismo, mas isso não é uma saída. Há quem
propõe reformar o capitalismo e isso não é uma saída, é uma ilusão, não dá para
reformar o capitalismo. Então, ele vai afastando algumas soluções, outras ele
não diz se concorda ou não, mas provavelmente ele tem mais simpatia.
Por
exemplo, tem um anarquista chamado Erich Unger, que ele propõe que os povos
abandonem os países capitalistas para irem viver lá onde o capitalismo ainda
não chegou. Não sei se ele partilhava isso. Acho que ele é mais próximo a essa
época de um autor que ele cita no fragmento que é o Gustav Landauer, que era um
anarquista romântico que tinha um pouco a ideia de que as pessoas devem que
sair das cidades capitalistas para viver em colônias anarquistas. Seriam,
talvez, as ocupações e assentamentos do MST.
Como o
senhor vê os zapatistas nisso? Pergunto isso porque o John Holloway naquele
livro Como mudar o mundo sem tomar o
poder (2002) fala também da necessidade de um pessimismo, advogando que o “erro” de alguns marxistas
estaria justamente no contrário, em insistir num positivismo, sem trocadilhos,
como base para a ação dos trabalhadores
Muitas das
colocações do Holloway são interessantes, toda parte de crítica dele ao
capitalismo acho muito pertinente e esse pessimismo, digamos, revolucionário.
Agora, a colocação de mudar o mundo sem tomar o poder, eu acho problemática. Eu
acho que você não escapa da necessidade de criar novas formas de poder.
Inclusive a experiência zapatista é essa. O que eles fizeram lá, onde têm
influência, foi tomar o poder. Criaram formas de poder por baixo, alternativas,
democráticas e o projeto deles pro México, eu acho que é esse: o de criar uma nova forma de poder como
alternativa ao poder estatal capitalista institucional que oprime o povo
mexicano há um século.
Agora,
Benjamin está buscando uma saída para isso, ele não tem uma, mas a simpatia
dele vai para o anarquismo, apesar de ele não ter uma proposta. Depois ele vai
descobrir o marxismo e ele vai, digamos, aderir à proposta marxista, mas
guardando um certo aspecto anarquista
que faz com que ele nunca vá aderir totalmente ao Partido Comunista. Mesmo ao
projeto soviético ele guarda uma distância crítica que tem a ver com essas
raízes libertárias do pensamento dele.
Falando
dessas raízes do Benjamim, na contracapa, a também especialista em Benjamin, a
professora Jeanne Marie Gagnebin cita que a intenção do livro é a de explorar
como Benjamin soube unir, nessa rejeição ao capitalismo “impulsos oriundos do
romantismo alemão, do messianismo judaico e do marxismo libertário”. Como é que
esses três impulsos entraram na vida do Benjamin?
O Benjamin
começa com reflexões teológicas messiânicas, mas já como inspiração
revolucionária. Tem um texto dele de 1915 sobre a vida dos estudantes em que
ele já diz que o progresso é uma mistificação, essa ideia de que a história é
um caminho muito mais denso, a alternativa são as imagens utópicas como o reino
messiânico e a revolução. E no mesmo texto ele menciona também os anarquistas.
Então, desde o começo ele tem essa ideia da utopia revolucionária messiânica
como alternativa à ideia burguesa de progresso. Bom, isso vai se desdobrando na
obra dele, com uma virada importante a partir de 1923 quando ele descobre o
marxismo.
Mas,
então, é um marxismo que incorpora a crítica romântica à civilização. E isso é
o tema que está nessa coletânea, que mostra como a crítica romântica à civilização
é um fio condutor da obra dele desde o começo e a partir de 1923, 1924, já
associada ao marxismo. E no começo também associada a temas messiânicos,
teológicos que depois vão sendo um pouco marginalizados, mas que voltam no fim,
nos últimos escritos, com força nessa síntese extraordinária que são as Teses
sobre o conceito de história (1940) que o marxismo se associa à teologia e à
crítica romântica.
Agora, a
ideia de uma aliança entre a teologia e o materialismo histórico é um dos
pontos mais difíceis de entender na Europa. Os leitores de Benjamin ou são
marxistas, então dizem que a teologia é uma metáfora, ou como [Gerhard]
Scholem, são teólogos, então dizem que o marxismo é uma questão de
terminologias, ou como [Jürgen] Habermas, dizem que é impossível se juntar
marxismo com teologia e que, portanto, isso não funciona. Então é difícil na
Europa entender isso. Agora, aqui na América Latina, há condições para se
entender Benjamin, porque aqui temos o fenômeno da Teologia da Libertação, que
foi justamente isso.
Embora
eles não tivessem lido Benjamin, embora a teologia seja mais cristã do que
judaica, aqui na América Latina há conjunção entre teologia e marxismo não é
uma hipótese filosófica meio arriscada, é um movimento de massas que mudou a
história da América Latina, com a Teologia da Libertação. Então, é aqui na
América Latina que se tem condições de se entender Walter Benjamin de uma
maneira mais profunda.
Em
contraposição à noção de progresso linear, o que seria o progresso para o
Benjamin, na acepção da palavra, não na mistificação?
A ideia
dominante de progresso, que é a burguesa, mas que foi assumida por boa parte da
esquerda, é a de que a história da humanidade é a história do progresso. O
capitalismo é um progresso em relação ao feudalismo e o socialismo vai coroar ,
digamos, vai retomar as conquistas capitalistas e vai levá-las até as últimas
consequências. E a história é isso: você simplesmente tem que nadar com a
corrente, que a história vai caminhando nessa direção.
Então,
Benjamin rejeita essa mistificação, mostra que a história não é nada disso, a
história é a história dos dominantes, das classes dominantes, que uma vai
herdando da outra e é a história da opressão e da derrota das tentativas de
revolta dos oprimidos. Mas essas tentativas de revoltas são os únicos aspectos
progressistas da história, são essas revoluções, desde Spartacus, os escravos
que se revoltam, os camponeses que se revoltam no século 16 na Alemanha
com Thomas Münzer, a Comuna de Paris,
esses momentos de rebelião dos oprimidos são os únicos momentos de progresso.
Então,
existe o que Benjamin chama uma tradição dos oprimidos, que inclui Spartacus,
Münzer, Comuna de Paris, a revolução alemã de 1919 de Rosa Luxemburgo. Então,
progresso são esses momentos messiânicos, utópicos, revolucionários, que são a
interrupção da dominação, do progresso das classes dominantes e o verdadeiro
progresso será o dia em que se interromper o progresso da dominação. Esse será
o verdadeiro progresso revolucionário.
E qual era a visão dele de vanguarda? Como ele
via o processo da Revolução Russa?
Benjamin
não tem uma reflexão sobre a vanguarda. Ele não tem uma reflexão sobre
estratégia e tática. A temática política dele é uma reflexão filosófica sobre a
história, que é muito instigante, muito atual. Mas ele não é alguém que dá a
linha estratégica, tática, de partido. Aí temos que completar Benjamin com
outros. Com relação à experiência soviética ele passa por momentos diferentes.
No começo, ele ignora, o que é curioso porque de 1917 à 1923 é quando o
entusiasmo pela Revolução Russa atinge o máximo na Europa. E curiosamente
Benjamin está fora, ele não se deu conta. Ele descobre a revolução russa quando
se apaixona por uma revolucionária russa [da Letônia], Asja Lacis, e quando ele
lê História e consciência de classe, do Georg Lukács, em 1925.
Então é
uma descoberta tardia. Aí ele se entusiasma com a revolução russa, com o
comunismo e vai visitar a União Soviética, em 1927, mais por amor por Asja
Lacis do que por outra coisa, e aí ele começa já a perceber que há problemas.
Quando passa alguns meses na União Soviética e ele simpatiza com um pessoal
ligado a oposição de esquerda, que se dão conta de que algo está indo errado.
Nas notas que escreve durante esta estadia ele diz que parece que a revolução
se interrompeu, parece que a revolução parou. Enfi m, isso é um primeiro
momento crítico.
Ele
continua acompanhando as críticas da oposição de esquerda e em um certo momento
ele lê, acho que a História da Revolução Russa, de Trotsky (1930), e escreve,
acho que para o Scholem, nunca vi uma coisa tão impressionante, ele se
interessa pelos argumentos de Trotsky, mas ele não adere, tampouco adere ao
partido, mas há um período curto, entre 1933, quando os nazistas tomam o poder,
e 35, 36, quando começam os processos de Moscou em que ele parece aderir ao
marxismo soviético, escreve alguns artigos muito entusiastas sobre a
experiência soviética, mas é um período curto, dois, três anos.
Quando vêm
os processos de Moscou, ele fica perplexo. Ele não consegue explicar isso e, a
partir daí, Ele começa mais uma vez a se distanciar e, em 1938, ele já tem uma
visão claramente crítica, embora não exposta publicamente. Ele discute com
Brecht, quando os dois dizem: “Bom, mas o que é a União Soviética? É uma
monarquia operária? Não é possível, é um monstro, é como um peixe com chifre”.
Ele tem essa idéia de que a União Soviética virou um monstro inexplicável. Têm
umas notas que ele toma sobre Brecht em que ele fala da polícia, que ele a
compara com a Gestapo, são os mesmos métodos.
Mas, de
alguma maneira, ele ainda tem esperança na União Soviética como força
antifascista. Em 1938, a União Soviética, de Stalin, é uma ditadura autocrática
com todos os seus terrores, mas é a única esperança que temos de resistir ao
nazismo. Quando vem o pacto Molotov-Ribbentrop [o tratado de não-agressão
firmado às vésperas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), entre a Alemanha
nazista e a União Soviética], ele se dá conta que nem isso. Então, ele vê como
traição e aí nas Teses sobre o conceito de história já aparece a ideia de que o
stalinismo traiu a causa, não só a causa socialista, mas a antifascista.
Para acompanhar toda a entrevista, clicar Brasil de Fato
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