A emergente participação em
rede não produzirá novas ideologias unitárias ou revoluções, mas poderá
destruir o velho jogo da governança representativa
Marcos Nunes Carreiro entrevista Massimo Di Felice
Muito se fala de como as redes
sociais vêm modificando o pensamento social e ampliando a capacidade de
reflexão, sobretudo dos jovens, em razão da participação fundamental da
internet nas manifestações e protestos que tomaram o Brasil nos últimos meses.
As manifestações já viraram pauta nas escolas e com certeza serão conhecidas
das próximas gerações. Mas, afinal, qual é o papel político-social das redes
sociais e da internet?
Há quem diga que o momento
atual do Brasil é de orgasmo democrático, ao ver milhares de pessoas saindo às
ruas em razão da situação político-econômica do país. E é realmente instigante
acompanhar a efervescência da sociedade, até para quem não tem ânimo de
participar. Todavia, há discordância quanto ao termo “orgasmo democrático”. O
professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Goiás (UFG),
Magno Medeiros, por exemplo, diz que orgasmo é um fenômeno fugaz e de
satisfação imediata, ao contrário do que vive o Brasil atualmente.
Para ele, o que ocorre, na
verdade, é a erupção de uma dor crônica, sedimentada há várias décadas em torno
da insatisfação em relação aos direitos de cidadania. “Direitos básicos, como
ter um transporte urbano decente, como ter o direito de ser bem tratado na rede
pública de saúde, como ter uma educação de qualidade e de acesso democrático a
todos. O Brasil experimentou, nos últimos anos, avanços consideráveis no campo
da redução das desigualdades sociais e da minimização dos bolsões de pobreza,
mas os setores sociais pobres e miseráveis, que emergiram para a classe C,
querem mais do que apenas consumir bens básicos como geladeira, fogão,
computador, celular, etc. Eles querem ser tratados com dignidade”, diz.
Ideologia social
O autor da expressão que titula
a matéria é o italiano Massimo Di Felice, doutor em Ciências da Comunicação
pela Universidade de São Paulo (USP) e PHD em sociologia pela Universidade
Paris Descartes V, Sorbonne. Di Felice é professor da Escola de Comunicação e
Artes da USP, onde fundou o Centro de Pesquisa Atopos e coordena as pesquisas
“Redes digitais e sustentabilidade” e “Net-ativismo: ações colaborativas em
redes digitais”.
O termo “orgasmo democrático”
surgiu quando o professor foi questionado sobre como, antes, o que reunia
milhares de pessoas eram ideologias políticas, e hoje já não é assim. Seria
então possível afirmar que vivemos a época de um processo de criação
democrática de ideologia social? Segundo Di Felice, a razão política ocidental
moderna europeia, positivista e portadora de uma concepção unitária da
história, criou as democracias nacionais representativas, que se articulavam
pelo agenciamento da conflitualidade através dos partidos políticos e dos
sindicatos. E a estrutura comunicativa dessas instituições, correspondente aos
fluxos comunicativos da mídia analógica – imprensa, TV e jornais –, é centralizada
e vertical, além de maniqueísta, isto é, divide e organiza o mundo em mocinhos
e vilões, direita e esquerda, revolucionários e reacionários etc.
Contudo, as redes digitais
criaram outros tipos de fluxo comunicativo, descentralizados, que permitem o
acesso às informações e a participação de todos na construção de significados.
“A razão política moderna é fálica e cristã, busca dominar o mundo, rotula
pensamentos enquanto os simplifica, necessita de inimigos e promete a salvação.
Já a lógica virtual é plural, se alimenta do presente e não possui ideologia,
além de viver o presente ato impulsivo”, analisa.
Ele diz ser normal que a
sociedade queira identificar e julgar os movimentos, rotulando-os por exemplo
de “fascistas”, pois, segundo ele, a razão ordenadora odeia o novo e o que não
compreende. “Porém, julgar os diversos não-movimentos que nasceram pelas redes
(espontâneos e não unitários) é como julgar a emoção e a conectividade
orgiástica (‘orghia’ em grego significa “sentir com”). A democracia do Brasil
está passando de sua dimensão pública televisiva, eleitoral e representativa,
para a dimensão digital-conectiva. O país está experimentando um orgasmo
democrático. A lógica é, como diria Michel Maffesoli, dionisíaca e não
ideológica.”
Segundo Di Felice, do ponto de
vista sociopolítico, as arquiteturas informativas digitais e as redes sociais
estão trazendo, no mundo inteiro, alterações qualitativas que podem ser
classificadas em dez pontos: 1. A possibilidade técnica do acesso de todos a
todas as informações; 2. O debate coletivo em rede sobre a questões de
interesse público; 3. O fim do monopólio do controle e do agenciamento das
informações por parte dos monopólios econômicos e políticos das empresas de
comunicação; 4. O fim dos pontos de vista centrais e das ideologias políticas
modernas (seja de esquerda ou direita) que tinham a pretensão de controlar e
agenciar a conflitualidade social; 5. O fim dos partidos políticos e da cultura
representativa de massa que ordenavam e controlavam a participação dos
cidadãos, limitando-a ao voto a cada quatro anos.
A partir do sexto ponto, o
professor classifica aquilo que trata da evolução sistêmica: 6. O advento de
uma lógica social conectiva que se expressa na capacidade que as redes sociais
digitais têm de reunir, em tempo real, uma grande quantidade de setores
diversos e heterogêneos da população em torno de temáticas de interesse comum;
7. A passagem de um tipo de imaginário político baseado na representação
identitária e dialética (esquerda-direita; progressistas-reacionários, etc.)
para uma lógica experiencial, conectiva e tecno-colaborativa, que se articula
não mais através das ideologias, mas através da experiência entre indivíduos,
informações e territórios; 8. O advento de um novo tipo de gestão pública e de
democracia; 9. A transformação da relação entre político e cidadão e do papel
dos eleitos, que passam a ser considerados não mais como representantes do
poder absoluto, mas porta-vozes e meros executores da vontade popular que os
vigia a cada decisão; 10. A passagem de um imaginário político, baseado em uma
esfera pública na qual a participação dos cidadãos era apenas opinativa, para
formas de deliberação coletiva e práticas de decisão colaborativas que se
articulam autonomamente nas redes. Acompanhe a entrevista:
Massimo Di Felice |
Os protestos são organizados nas redes, mas nota-se que há
líderes surgindo nas ruas. Como o senhor vê isso?
Os movimentos nascem nas redes,
atuam em ruas, mas não em ruas comuns. Eles atuam em “ruas conectadas” e
reproduzindo em tempo real, nas redes, os acontecimentos das manifestações.
Através da computação móvel, debatem e buscam soluções continuamente,
expressando uma original forma de relação tecno-humana e inaugurando o advento
de uma dimensão meta-geográfica e atópica (do greco a-topos: lugar
indescritível, lugar estranho, fora do comum).
Embora o sociólogo espanhol Manuel Castells defenda que os movimentos
sociais contemporâneos nascem nas redes e que somente depois, nas ruas, ganham
maior visibilidade, não me parece ser esta a sua descrição mais apropriada. Ao
contrário: o que está acontecendo em todas as ruas, em diversos países do
mundo, é o advento de uma dimensão imersiva e informativa do conflito, que se
exprime numa espacialidade plural, conectiva e informativa. Os manifestantes
habitam espaços estendidos, decidem suas estratégias e seus movimentos nas ruas
através da interação contínua nas “social networks” e da troca instantânea de
informações. Não somente se deslocam conectados, mas a manifestação é tal e
acontece de fato somente se é postada na rede, tornando-se novamente digital,
isto é, informação. Não é mais possível pensar em espaços físicos versus
espaços informativos. Os conflitos são informativos. Jogos de trocas entre
corpos e circuitos informativos, experimentações do surgimento de uma carne
informatizada, que experimenta as suas múltiplas dimensões: a informativa
digital e a sangrenta material, golpeada e machucada. Ambas são reais e nenhuma
é separada da outra, mas cada uma ganha a sua “veracidade” no seu agenciamento
com a outra.
Todos esses dias de junho, em
São Paulo, e em muitas outras capitais,
jogamos games coletivos – todos
fomos conectados a circuitos de informações, espaços e curtos-circuitos que
alteravam nossos movimentos segundo as imagens e as interações dos demais
membros do jogo. Todos experimentamos a nossa plural e interativa condição
habitativa. O sangue dos manifestantes, golpeados pelos policiais, não caía
apenas no chão das ruas, mas se derramava em espacialidades informativas. A
polícia, através da computação móvel e das conexões instantâneas, tornou-se
mídia, cúmplice de um ato informativo, e os manifestantes experimentaram o
prazer de transformar seus corpos em informação. Transformar a polícia em mídia
foi uma das grandes contribuições destes movimentos, que não possuem líderes
nem direção única. Todas as tentativas oportunistas de direcionar e organizar
os conjuntos de movimentos serão desmascaradas. Estamos falando da sociedade
civil conectada e não deste ou daquele movimento social. Os atores destes
movimentos, portanto, não são apenas os humanos, menos ainda alguns líderes.
Não estamos falando de movimentos tradicionais que aconteciam nos espaços
urbanos e industriais. Estamos, de fato, já em outro mundo.
Fora das redes, ainda há
muita gente sem entender o que as manifestações significam, ou como elas
surgiram. No ambiente virtual, há maior entendimento sobre o tema?
As
manifestações do Brasil são expressões de uma transformação qualitativa que
desde o advento da internet altera a forma de participação e o significado da
ação social. O Centro de Pesquisa Atopos, da Universidade de São Paulo, está
finalizando uma pesquisa internacional sobre o tema, com o apoio da Fapesp
(Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
A
pesquisa analisou as principais formas de net- ativismo em quatro países
(Brasil, França, Itália e Portugal). Os resultados são interessantes e mostram
claramente alguns elementos comuns que, mesmo em contextos diferentes, se
reproduzem e aparecem como caraterísticas parecidas. Isso sublinha, mais uma
vez, a importância das redes de conectividade e as caraterísticas
tecno-informativas dessas expressões de conflitualidade que surgem na origem,
na organização e nas formas de atuação destes movimentos. Em síntese, as
principais caraterísticas comuns a todos eles são as seguintes: 1. O
net-ativismo se coloca fora da tradição política moderna, pois expressa um novo
tipo de conflitualidade que não tem como objetivo a disputa pelo poder. Todos
os movimentos que marcam as diversas formas de conflitualidade contemporânea
(os Zapatistas, os Indignados, Occupy Wall Street, Anonymous, M15 etc.) não têm
como objetivo tornar-se partidos políticos e concorrer nas eleições. São todos
explicitamente apartidários e contra a classe política. Reúnem-se todos contra
a corrupção, os abusos e a incapacidade dessas mesmas classes políticas e de
seus representantes; 2. São movimentos e ações que não estão organizados de
forma tradicional, isto é, não são homogêneos, compostos por pessoas que se
reconhecem na mesma ideologia ou em torno do mesmo projeto político. Ao
contrário: são formas de protesto compostas por diversos atores e nos quais,
como numa arquitetura reticular, as contraposições não são dialéticas e não
inviabilizam a ação; 3. Possuem uma forma organizativa informal e, sobretudo,
sem líderes e sem hierarquias; 4. O anonimato é um valor, não somente porque
permite a defesa perante ações repressivas, mas porque é a forma através da
qual é defendida a não-identidade, coletiva ou individual, de seus membros e
das ações. Na tradição das ações net-ativistas, a ausência de identidade e a
não visibilidade é o meio através do qual a conflitualidade não se
institucionaliza, tornando-se, assim, irreconhecível, não identificável e capaz
de conservar a sua própria eficácia conflitiva; 5. São movimentos ou ações
temporários e, portanto, não duradouros, cujas finalidades e ambições máximas
são o próprio desaparecimento.
Estes
e outros elementos que encontramos em todas as ações net-ativistas são parte,
já, de uma tradição que possui textos e reflexões que vão desde o cyberpunk até
as contribuições de Hakim Bey, a guerrilha midiática de Luther Blisset, até a
conflitualidade informativa zapatista. Os Anonymous e os Indignados e as diversas
formas de conflitualidade digital contemporâneas são, na sua especificidade, a
continuação disso. Não há uniformidade, nem pertença de nenhum tipo, mas
inspiração.
A questão informativa é a
grande façanha da tecnologia?
Na
teoria da opinião pública, estamos assistindo a uma grande passagem do líder de
opinião para o empreendedor cognitivo. O líder de opinião ganhava seu poder de
persuasão através do poder midiático que lhe permitia, de forma privilegiada,
através da TV ou das páginas de um jornal, alcançar grande parte da população
de um país. Esta figura, geralmente um comentarista, um cientista político, um
profissional da comunicação, um político ou uma personalidade pública, é hoje
substituído no interior das novas dinâmicas dos fluxos informativos por outro
tipo de informante e de mediador. Este é aquele que, por ter vivenciado ou por
ter sido o próprio protagonista de um acontecimento, distribui, através das
mídias digitais, diretamente, sem mediações, o acontecimento.
É o
caso dos manifestantes que postaram tudo o que aconteceu nas ruas durante as
manifestações. Nenhum comentarista ou líder de opinião conseguiu competir e
disputar com eles outra versão dos acontecimentos. Eles, os manifestantes,
fizeram a cobertura do evento com seus celulares, suas câmeras baratas, a
partir do próprio lugar dos acontecimentos, ao vivo. A maioria das informações
que circulavam foi produzida por eles. Isso foi possível porque existe uma
tecnologia que permite que isso seja possível. Isto é, também um fato político
que quebra em pedaços décadas de estudos sociológicos sobre a relação entre
mídia e política, entre mídia e poder. A grande transformação que as redes
digitais produzem é a interatividade. As pessoas conectadas buscam suas
informações, as ordenam, obtêm mais fontes e elementos para avaliá-las. Digamos
que, tendencialmente, a população é mais consciente, pois tem acesso direto a
uma quantidade infinita de informações sobre qualquer tipo de assunto,
tornando-se eles mesmos editores e criadores de conteúdo. Da mesma maneira,
pelos mesmos dinamismos informativos, eles se tornam políticos, administradores
e transformadores de suas cidades ou de suas localidades.
O senhor é europeu, mas vive
há muitos anos na América Latina. Como difere o processo de expressão massiva
entre os dois continentes?
Absolutamente
não se distingue. Os movimentos possuem todos eles as mesmas características.
Em cada país temos situações específicas e atores diferentes, mas que atuam de
maneira análoga: através das redes digitais. Possuem a mesma específica forma
de organização coletiva: não institucionalizada e sem hierarquia. Expressam as
mesmas reivindicações: contra a corrupção dos partidos políticos, por maior
transparência e eficiência, melhor qualidade dos serviços públicos. Desconfiam
todos de seus representantes e querem decidir diretamente sobre os assuntos que
lhes interessam.
Quais as consequências dessa posição que as manifestações
assumem?
A
rede é o “Além do Homem” do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Não é fácil,
no seu interior, construir éticas coletivas, nem majoritárias, pois o seu
dinamismo é emergente e sua forma, temporária. A participação em rede não irá
produzir novas ideologias unitárias, menos ainda revoluções, pois sua razão não
é abstrata e universal, mas particular e conectiva, mutante e incoerente.
Apenas poderá destruir o velho jogo vampiresco da governança representativa e
partidária, pois esta não é mais representativa e gera um sistema baseado na
corrupção, em que a corrupção não é exceção, mas regra e norma do jogo.
As
ideologias políticas que prometiam a igualdade e a salvação do mundo
fracassaram, não apenas em seu intento socioeconômico igualitário, mas naquele
mais importante: de produzir um novo imaginário social e cultural que nos
tornasse parte de uma sociedade mais justa, na qual pudéssemos nos tornar
melhores do que somos. A não-ética coletiva das redes não será um decálogo de
normas e uma visão de mundo organizada e proferida pela boca das vanguardas, ou
dos líderes iluminados, sempre prontos a surfar uma nova onda, mas será muito
mais humildemente particular. Não mudará o mundo, mas resolverá através da
conectividade problemas concretos e específicos, que têm a ver com a qualidade
do ar, o direito à informação, o preço do transporte público, a qualidade do
atendimento nos hospitais, a qualidade da educação. Isto é: tudo aquilo que
partido nenhum jamais conseguiu fazer.
Para
certa esquerda, está em marcha o acirramento de um fascismo nas manifestações,
cujo sintoma é a rejeição de partidos nas passeatas. Uma ala da direita, com o
apoio da imprensa, também contesta as manifestações como sendo “armação” da
esquerda.
É
visível para todos o oportunismo e o desespero de uma cultura política da
modernidade que se descobriu, de repente, obsoleta e fora da história. Nenhum
partido de esquerda consegue hoje representar os anseios e as utopias sequer de
uma parte significativa da população. Eles se encontram na singular e cômica
situação do menino escoteiro que, para cumprir sua boa ação, tenta convencer a
velhinha a atravessar a rua para poder ajudá-la. Só que a velhinha não quer
cruzar a rua, mas deseja ir em outra direção. A lógica dialética, eurocêntrica
e cristã, baseada na contraposição entre o bem e o mal, marca toda a cultura
política da esquerda – que hoje se configura como uma religião laica, não mais
racional nem propositiva, mas histérica.
O
advento dos movimentos e das manifestações expressou com clareza o
desaparecimento do papel de vanguarda, e a incapacidade histórica de análise e
de abertura à diversidade e ao livre debate dos partidos. Como na lógica da
salvação religiosa, o bom e o justo existem e justificam a sua função somente
enquanto existe o mal. A caça às bruxas é uma exigência, a última tentativa de
justificar sua função, e uma necessidade ainda de sua presença em defesa dos
mais “fracos” e “necessitados”. Não excluo que, em casos não representativos,
tenhamos tido a presença de grupos de alguns poucos e isolados indivíduos de
direita. Mas a reação e a caça às bruxas que foi gerada é de natureza histérica
e a-racional, a última tentativa de voltar no tempo e na história – um passado
ameaçador em que havia necessidade de uma ordem, de uma ideologia e de uma
vanguarda que representasse o confortador papel da figura paterna.
Fonte: Outras
Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário