Juliana
Sayuri entrevista Perry Anderson
Publicado
em 04/11/2013
Mais uma vez, a voz das ruas.
Ecos talvez das jornadas de junho, manifestações vibrantes voltaram a ocupar
São Paulo. Dessa vez, na estrada federal: com multidões furiosas, caminhões
incendiados e barricadas nos arredores da Rodovia Fernão Dias, zona norte, onde
o estudante Douglas Martins Rodrigues, de 17 anos, morreu com um tiro disparado
por um policial militar no domingo passado.
“As
manifestações de junho marcaram o despertar político de uma nova geração. Mas
outro levante popular, ainda maior, não pode ser descartado neste momento.” O
alerta é do historiador britânico Perry Anderson, professor da Universidade da
Califórnia, ex-editor da New Left Review, ensaísta e autor de Espectro: da
direita à esquerda no mundo das ideias (Boitempo), entre outros.
Aos 75
anos, Perry Anderson vive entre Londres e Los Angeles, mas dedica um inspirado
olhar à América Latina e ao Brasil. Cá esteve para participar do Fronteiras do
Pensamento em outubro, em Porto Alegre. No primeiro encontro, a impressão: um
gênio difícil, dir-se-ia. Um dos mais importantes teóricos marxistas
contemporâneos, o intelectual não é fã de entrevistas, escolhe suas palavras
meticulosamente, voz firme, óculos quadrados e anotações datilografadas a
tiracolo.
O
historiador também passou por Campinas e São Paulo, onde nos reencontramos para
um café filosófico nos Jardins. “Não gosto de dar entrevistas, particularmente.
Todo mundo dá entrevistas atualmente, é muito fácil. É a síndrome de Andy
Warhol: todos serão famosos por 15 minutos. Por isso, penso que só se deve
falar quando realmente tiver algo a dizer”, justifica. Nesta entrevista
exclusiva ao Aliás, Perry Anderson comenta os rumos do Brasil e do mundo em
tempos de explosivos protestos populares.
Domingo
passado, um jovem foi morto por um PM na Vila Medeiros, zona norte de São
Paulo, provocando protestos violentos que travaram a Fernão Dias. Dilma
Rousseff criticou a violência contra jovens negros da periferia, ‘a
manifestação mais forte da desigualdade no Brasil’, nas palavras da presidente.
Como o sr. analisa o poder (ou a fragilidade) das manifestações nas ruas desde
as jornadas de junho no País?
Três
grandes conquistas vieram com os protestos de junho. Primeiro, as manifestações
marcaram o despertar político de uma nova geração – principalmente, mas não
exclusivamente, dos jovens, dos trabalhadores oprimidos. Segundo, ao forçar
espetacularmente governantes a recuar no aumento das tarifas de transporte
público em grandes cidades, eles fizeram surgir uma compreensão do
empoderamento social (de dimensão potencialmente nacional) para setores até
então passivos da população. Por último, e não menos importante, levantaram a
questão da distribuição escandalosamente distorcida das despesas públicas no
Brasil. O mérito para tudo isso vai para os movimentos de esquerda que
alavancaram os protestos – o MPL principalmente –, cujo eco popular foi tão
expressivo que mesmo forças de direita aderiram às manifestações, pautadas por
seus próprios propósitos. Assim, a fragilidade dos protestos está nessa enorme
disparidade: por um lado, o pequeno núcleo organizado que inspirou as revoltas
de junho; por outro, a escala das multidões que tomaram parte nessas
manifestações, sem liderança política ou infraestrutura duradoura. O futuro
dependerá de até que ponto essa lacuna poderá ser fechada.
No
artigo Lula’s Brazil, publicado na London Review of Books, o sr. destaca a
especial ênfase do ex-presidente aos mais pobres. Além da inclusão com
programas como o Bolsa Família, o Brasil viu uma forte onda de consumo com a
ascensão de uma ‘nova classe média’. A questão toda é sobre poder aquisitivo? É
possível proporcionar inclusão e justiça social de outras maneiras?
Certamente
é possível – e milhões de brasileiros mostraram neste inverno que eles entendem
totalmente como: através da criação de serviços públicos decentes e equitativos
para os cidadãos comuns, sobretudo transporte urbano aceitável, assistência
médica, habitação social e educação fundamental. A grande conquista do governo
Lula foi a criação de empregos e a elevação do poder aquisitivo dos pobres.
Esses foram ganhos dentro das relações do mercado. Mas sem avanços
correspondentes nas esferas da vida em que as relações de mercadoria não
deveriam ter lugar, o risco é realmente gerar uma sociedade de consumo em que,
como nos Estados Unidos, aumentar a prosperidade não é, na verdade, empecilho
para aumentar, ainda mais rapidamente, a desigualdade. No Brasil, que ainda
continua perto do recorde mundial de má distribuição de renda, só uma reforma
radical da estrutura tributária, da administração pública e do sistema político
pode frear esse perigo. É necessário um Estado que esteja verdadeiramente sob o
controle de seus cidadãos, que seja capaz de oferecer serviços honestos, justos
e construtivos para eles.
Mas esse Estado é possível?
Estrategicamente,
a chave para a reforma precisa ser uma transformação do sistema político, cuja
involução para uma ordem decadente e ensimesmada, afastada da vida popular do
país, é agora amplamente reconhecida. Os beneficiários desse sistema –
principalmente no Congresso, mas também nos poderes das cidades e dos Estados –
não vão aceitar, por vontade própria, nenhuma mudança séria nessa ordem. Só a
pressão popular pode forçá-los a fazê-lo. A convocação para uma Assembleia
Constituinte é absolutamente correta, mas não pode ser instituída por um apelo
presidencial que dependa da aprovação de uma classe política para a qual uma
reforma pareceria uma tentativa de suicídio. Em Brasília, o Congresso apenas se
renderia à fúria das massas nas ruas e nas praças. Isso é aceitável? As
manifestações de junho vieram como um choque para a ordem estabelecida. Outro
levante popular, talvez ainda maior, não pode ser descartado neste momento.
Mas, para render frutos, uma alternativa construtiva para o atual impasse deve
se firmar na imaginação popular. Disso ainda há pouco sinal.
Se fosse escrever um novo
artigo, talvez Dilma’s Brazil, como seria? Dilma difere muito de Lula?
Em
estilo, naturalmente difere de Lula. Nesse quesito, o dom do ex-presidente é
inimitável. Em substância, há poucas diferenças. O que mudou não é nem a
natureza nem as ambições da administração, mas as condições em que os dois
operam. O crescimento no governo Lula foi impulsionado pelos altos preços de
commodities na primeira década do século, que deram ao Brasil um considerável
aumento do lucro das exportações. Esse momento passou – e o crescimento caiu. O
novo governo tentou contrariar a conjuntura menos favorável ao reduzir as taxas
de juros e introduzir modestas medidas protecionistas para estimular a
economia. Mas o investimento – baixo há décadas no Brasil, segundo os padrões
internacionais – falhou e os preços dos serviços começaram a subir. Isso
estreitou o espaço econômico para manobra do governo justamente no momento em
que as demandas sociais começaram a explodir, especialmente entre setores
jovens da população. Encurralado entre essas duas pressões, o projeto do PT,
como moldado no governo Lula, periga se esgotar. É necessário um novo modelo.
Se o projeto encontrará um segundo fôlego ainda é uma questão aberta.
Após
décadas de neoliberalismo, vimos a ascensão de ‘novos’ governos na América
Latina, ao mesmo tempo – Chávez na Venezuela, Kirchner na Argentina, Lula no
Brasil. Nomes da esquerda também foram eleitos na Bolívia, Equador e Uruguai.
Olhando para trás, as expectativas sobre esses ‘novos’ governos eram muito
altas?
Não
tenho certeza se concordo com esse retrato. Minha impressão é que a euforia
exagerada sobre o grau de uma ruptura com o neoliberalismo no novo século não
era tão comum – mesmo porque ficou claro para todos que as experiências
sul-americanas que você mencionou estavam se movendo no contrafluxo, quer
dizer, contra a tendência do mundo, pois América do Norte, Ásia e Europa
estavam ainda alinhados ao neoliberalismo. Na América Latina, é justamente o
movimento contrário – não a mais privatização, nem a maior desregulamentação,
lidando ainda com uma desigualdade acentuada, mas com medidas de proteção
nacional, preocupação com os pobres, defesa da esfera pública – que moldou o
horizonte político do continente que, apesar de todas suas irregularidades,
tornou-se um farol de esperança para os povos de outros lugares.
Na época, vimos o nascimento
do Fórum Social Mundial, após os fortes protestos de Seattle. Nos últimos
tempos, vimos o Occupy Wall Street, os indignados espanhóis e outros movimentos
contra o capitalismo. A mensagem é similar: outro mundo é possível. Por que
esses movimentos explodem, expõem as contradições do sistema capitalista e
depois desaparecem?
Aliás,
desaparecem? Explicações sobre os padrões dessas repentinas e imponentes
explosões de protestos populares – que se iniciam e desaparecem rapidamente,
ainda sem provocar muitas mudanças – precisam incluir três fatores principais.
Obviamente, o primeiro é a ruptura da continuidade na cultura de esquerda com a
vitória do capitalismo ocidental na Guerra Fria. O segundo é o declínio, no
mundo inteiro, dos partidos como forma clássica de organização política,
agravando essa ruptura de continuidade. E, certamente, o terceiro é o advento
da internet, que permite uma comunicação e uma mobilização muito rápidas de
muitos indivíduos de outra forma dispersos. Entretanto, precisamente por
permitir esse sucesso tão rápido e relativamente tão fácil, nos momentos de
crise, a internet acaba desencorajando o trabalho mais lento e mais difícil de
criar movimentos políticos com estrutura e organização mais duradouras.
Como o sr. analisa a resposta
do Brasil ao escândalo de espionagem americana?
O
Brasil certamente se saiu melhor – e mais firmemente – que qualquer país
europeu. Ao cancelar a visita oficial a Washington e criticar a espionagem
americana no discurso nas Nações Unidas, Dilma Rousseff mostrou gestos de
dignidade que nenhum outro líder foi capaz de mostrar. Mas esses gestos
permanecem limitados. O grau contínuo de submissão do Brasil ao império
americano pode ser visto, por exemplo, no fracasso do país ao (não) oferecer
asilo a Edward Snowden, que revelou o esquema de espionagem e desde então está
sendo perseguido pela índole vingativa característica de Barack Obama, cujo
registro de punições domésticas ultrapassa o de George W. Bush. Podemos ter
certeza de que Snowden teria encontrado um refúgio mais feliz no Brasil
democrático que na Rússia autocrática. Não ter oferecido isso a Snowden é um
motivo para desonra nacional.
Ainda assim, o governo do PT
mostra mais independência na política internacional?
Certamente
mais que os governos de José Sarney ou de Fernando Henrique Cardoso. Mas se
formos justos, precisamos lembrar que nenhuma ação de Lula ou de Dilma, apesar
de muitas terem sido positivas, foi tão destemida quanto a de um oligarca da
República Velha, Artur Bernardes, que, em 1926, retirou o Brasil da Liga das
Nações porque eles se recusaram a dar a qualquer país não europeu um assento
permanente no conselho. Essa foi uma decisão de honra.
O sr. publicou um livro sobre
a Índia – The Indian Ideology. A experiência desse país seria relevante para o
Brasil?
Sim.
Acredito que um estudo comparativo entre essas duas democracias – grandes
países, mas ainda subdesenvolvidos em certa medida – seria de grande interesse.
Deveria haver mais intercâmbio intelectual e político entre Brasil e Índia.
Inclusive onde suas reformas sociais oferecem paralelos. É uma pena, pensei
muitas vezes, que nunca tenha havido (até onde sei) uma troca de experiências
entre seus respectivos programas para redução da pobreza: o Bolsa Família, no
Brasil, e a Lei Nacional de Garantia de Emprego Rural, na Índia. Um, referente
a uma transferência de dinheiro; outro, à disposição de trabalho. São os dois
programas mais importantes nessa linha no mundo.
O sr. é considerado um
especialista em história intelectual. Tem conselhos para estudantes nesse
campo?
Nunca
confunda julgamentos políticos e julgamentos intelectuais. A qualidade dos
pensadores sérios nunca é uma simples função de seus pontos de vista
ideológicos. Pensamentos – à direita, ao centro e à esquerda – devem ser
tratados com cuidado analítico e respeito crítico iguais.
E atualmente qual é o papel
dos intelectuais na sociedade?
Há uma
ideia generalizada de que para ser um intelectual é preciso ser crítico da
ordem estabelecida. Não é verdade. Desde o nascimento moderno do termo,
possivelmente mais intelectuais têm sustentado os sistemas dominantes em suas
sociedades. Assim, não há uma resposta única a sua questão. O papel dos intelectuais
de direita é defender e ilustrar a ordem estabelecida. O papel dos intelectuais
de centro é dar eufemismos e conformidade à ordem. O papel dos intelectuais da
esquerda é atacá-la radicalmente. E nós precisamos de mais intelectuais assim.
Fonte: Blog da
Boitempo. Publicado originalmente no suplemento Aliás do jornal O Estado de
S. Paulo, em 3 de novembro de 2013.
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