Um espectro que ronda o Brasil?
Luciana Ballestrin
Neste ano ocorreram pelo menos
três episódios públicos envolvendo denúncias de "doutrinação
marxista" no ambiente universitário brasileiro.
Neste ano ocorreram pelo menos
três episódios públicos envolvendo denúncias de “doutrinação marxista” no
ambiente universitário brasileiro: a recusa de um estudante em realizar um
trabalho sobre Karl Marx, a pedido de seu professor (SC); a ação popular movida
por um advogado contra um projeto de extensão de difusão do marxismo (MG), que
acarretou em sua suspensão pela Justiça Federal do Maranhão e a acusação de um
filósofo sobre a contaminação do marxismo nas Ciências Humanas e Sociais (SP).
As três notícias tiveram cobertura em veículos midiáticos, cujas posições
ideológicas são historicamente conhecidas do público.
O espraiamento nacional de uma
suposição sobre o avanço do comunismo e do marxismo no Brasil, às vésperas do
cinquentenário do Golpe civil-militar, convida a todos os cidadãos e cidadãs
para a seguinte reflexão: o que estes discursos e ideias representam no Brasil
após 25 anos da promulgação da Constituição de 1988? Gostaríamos de sugerir que
isso reflete uma paranoia, compartilhada por pessoas e grupos capazes de formar
guetos de opinião e que a despeito do alcance restrito, ganham destaque
desproporcional na mídia hegemônica.
O conceito de paranoia, em
termos psiquiátricos, possui sua própria história, como todos os conceitos mais
ou menos compartilhados pelo campo científico. A despeito das controvérsias
particulares inerentes a este campo - no caso, o da psicanálise - é possível
sustentar com baixo custo de prejuízo que a ideia de paranoia envolve
basicamente um delírio persecutório baseado em uma desconfiança descolada da
realidade, razão ou empiria.
Defensivas ou preventivas, as
consequências políticas da proliferação do discurso paranoico anticomunista e
antimarxista ferem, paradoxalmente, dois princípios liberais básicos: liberdade
de expressão e tolerância. Ao mesmo tempo, reedita a paranoia clássica
alimentada pela Guerra Fria, cuja conjuntura internacional fora cúmplice do
segundo período ditatorial brasileiro.
Foi justamente neste contexto
que ocorreu a institucionalização das Ciências Sociais no Brasil, amplamente
apoiada pela estadunidense e liberal Fundação Ford.
Neste período, várias
brasileiras e brasileiros pagaram com a dor, o exílio e a vida, o preço pela
defesa de suas ideias comunistas e marxistas, bem como quaisquer outros que
contrariassem à lógica da Ditatura Civil-Militar. Hoje, qual é o preço a pagar
por essa retórica da intransigência? Como responder a uma paranoia revestida de
intelectualidade, a um despautério anacrônico e a um disparate sem fundamento?
Seria um tanto contraproducente
esboçar nessas linhas argumentos e razões que tentem comprovar que o Brasil não
é governado por comunistas e que a universidade brasileira não está intoxicada
pelo marxismo. Inútil, de igual forma, pensar na originalidade histórica dos
escritos marxianos e na importância das várias correntes do marxismo - do
vulgar e ortodoxo para o crítico e arejado - para os campos das Ciências
Sociais Aplicadas ou não. Da mesma maneira estéril, argumentar que o
eurocentrismo, o colonialismo e o progresso moderno não são completamente
afastados do marxismo e que justamente por isso, ele encontra resistência nos
movimentos decoloniais latino-americanos.
Produtivo, talvez, seja
observar o nascimento de um novo tipo de direita no Brasil.
Mesmo os velhos e os
contemporâneos clássicos do liberalismo político moderado são capazes de
aceitar a tolerância, a diferença, a liberdade de expressão, a existência do
Estado e o respeito ao outro. Não estamos falando, portanto, da adversária
histórica direita liberal. Ela é nova justamente porque ultrapassa a própria
moral e a própria ética do liberalismo e acontece neste exato momento
histórico. Ela é nova justamente porque também se apropria dos discursos da
esquerda e da democracia para combater a própria esquerda e a própria
democracia.
Se, cada vez mais, a esquerda
não tem se restringindo à alternativa marxista, criando um repertório de
resistência, emancipação e libertação próprias, a direita não tem se
restringido à alternativa liberal, criando um repertório de ignorância,
esquecimento e ódio próprios. Certamente, o espectro que ronda a primeira já
não é mais o do comunismo. Mas, o espectro que ronda a segunda ainda desagua no
seu totalitarismo oposto, o fascismo. Ou será que estamos, simplesmente,
paranoicos?
(*) Professora Adjunta de
Ciência Política, Coordenadora do Curso de Relações Internacionais - Centro de
Integração do Mercosul Programa de Pós-Graduação em Ciência Política -
Instituto de Filosofia, Sociologia e Política, da Universidade Federal de
Pelotas.
Fonte: Fórum
Educação
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