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Segundo geógrafo, “atualmente, quando um presidente diz ‘o país está indo muito bem’, ele quer dizer que o capital está indo bem, mas as pessoas estão indo mal”
Por Camila Nobrega e Rogério
Daflon,
Do Canal Ibase
25/11/2013
Com a usual camisa vermelha, o
sorriso miúdo e uma calma que contrasta com sua densa teoria crítica, o
geógrafo britânico marxista David Harvey se preparava para uma palestra que
lotaria neste sábado (23/11) o Teatro Rival, no Centro do Rio de Janeiro. Considerado
um dos maiores pensadores da atualidade, ele recebeu o Canal Ibase uma hora
antes do início de sua fala e não deixou pergunta alguma sem resposta.
Harvey, que está no Brasil para
o lançamento do livro “Os limites do capital” em português, pela Boitempo,
desafia o coro dos contentes sem qualquer bravata. Age assim porque vê um mundo
com cada vez menos gente satisfeita com os rumos do capitalismo. Sem palavras
de ordem e dispensando clichês, o geógrafo diz que há uma atmosfera para se
criar um grande movimento anticapitalista. Ele vislumbra uma convergência entre
os protestos no Brasil, a revolta da Praça Tahrir (na Tunísia) e outras
manifestações internacionais: “Atualmente, quando um presidente diz ‘o país
está indo muito bem’, ele quer dizer que o capital está indo bem, mas as
pessoas estão indo mal.” Nesta entrevista, Harvey explica o porquê de tanta
insatisfação.
Canal Ibase: Com os Jogos
Olímpicos e a Copa do Mundo, nunca foi tão caro morar no Rio de Janeiro. E isso
está impactando a renda de todas as classes sociais na metrópole. Mas é claro
que as classes mais pobres são as mais prejudicadas. Qual serão, em sua opinião,
as consequências dessa segregação?
David Harvey: O interesse que o
capital tem na construção da cidade é semelhante à lógica de uma empresa que
visa ao lucro. Isso foi um aspecto importante no surgimento do capitalismo. E
continua a ser. Após Segunda Guerra, por exemplo, os Estados Unidos construíram
os subúrbios de uma maneira muito rentável. O que temos visto nos últimos 30
anos é a reocupação da maioria dos centros urbanos com megaprojetos. Muitos
desses projetos associam a urbanização ao espetáculo. E fazem um retorno à
descrição de Guy Debord sobre a sociedade do espetáculo. Faz todo sentido na diretriz da realização dos
megaeventos como as Olimpíadas e a Copa do Mundo. O capital precisa que o
estado assegure essa dinâmica. Assim, pode usar esses eventos como instrumentos
de investimentos e mais lucratividade. Invariavelmente, entre as consequências
dos megaeventos estão as remoções de pessoas de algumas áreas. Eles dependem
disso para serem realizados. E essa situação tem causado revolta. De um lado, o
capital vai muito bem, mas as pessoas vão mal. Há alguma geração de empregos,
em função dos megaprojetos e megaeventos, mas o que se vê é o desvio da verba
pública para apoiar essas empreitadas. Ao redor do mundo, tem havido muitos
protestos devido à retirada de pessoas de suas residências. As populações
percebem que o dinheiro dos impostos está indo para esses fins, em detrimento
da construção de escolas e hospitais. Este é um contexto que ilustra como o
capital gosta de construir as cidades, à diferença do que é a cidade em que as
pessoas podem viver bem. Há um abismo entre essas duas propostas. Essa é a
grande briga, porque enquanto o capitalismo quer desempoderar pessoas, a fim de
reproduzir a si próprio, elas querem verbas para outras coisas. O grande
problema é que a tendência é a dominação do capital sobre o poder político nas
cidades. O financiamento das campanhas políticas é um instrumento para que isso
aconteça. Trata-se de controle sobre a representação política. Essa lógica tem
ocorrido em vários lugares do mundo, não só na viabilização de megaeventos no
Brasil. Trata-se de um processo padrão. Remete à Coréia do Sul, em Seul
(Olimpíadas de 1988). E também à Grécia. Se pensarmos na Grécia hoje, um país
que sediou as Olimpíadas (Atenas, em 2004), vemos que esses eventos não
costumam trazer grandes benefícios econômicos. O país está numa profunda crise
econômica. Há grandes estádios construídos, mas, a longo prazo, essas
edificações gigantes não trazem vantagens para o país.
Canal Ibase: Mas, e quanto à
Barcelona, que aqui no Brasil é um dos exemplos mais disseminados como uma
cidade que aproveitou muito bem um megaevento?
Harvey: Bem, eu acho que
Barcelona era uma excelente cidade antes das Olimpíadas (de 1992). Eu nem gosto
de voltar muito lá. Costumo dizer que o ápice da cidade foi antes das
Olimpíadas. Depois disso, foi ladeira abaixo.
Canal Ibase: Na África do Sul,
muitas pessoas foram expulsas de suas casas devido às obras relacionadas à Copa
do Mundo…
Harvey: Exatamente. O problema
das remoções tem sido recorrente. Há muita luta em torno disso. Isso é típico.
Se há pessoas pobres vivendo em terras muito valorizadas, há uma tentativa de
tirá-las de lá. Uma forma de levar isso a cabo é o aumento do custo de vida. Os
megaprojetos também são uma excelente desculpa.
Canal Ibase: Qual é sua
reflexão sobre o papel dos grandes veículos de comunicação na lógica de acumulação
do capital nas intervenções urbanas?
Harvey: Claramente, o controle
da mídia é uma ameaça para a democracia popular. A questão é como se faz uma
cobertura e o que é coberto. Os jornalistas que querem cobrir os acontecimentos
de uma forma mais real têm vivido tempos difíceis. É uma luta pela liberdade de
expressão. O caminho passa pela mídia alternativa, e a tecnologia, com a
internet, abre possibilidades. O problema é que a mídia alternativa pode ser
absorvida e disciplinada pelo mercado. É uma disputa que está sendo
travada. Mas é importante lembrar que
vivemos sob monopólios dos meios de comunicação no mundo. A desinformação pode
ser espalhada tão facilmente como a informação. E há monopólio inclusive nas
mídias sociais. Ainda há muitas perguntas a serem respondidas sobre o papel das
mídias sociais e sua diferença em relação às mídias convencionais.
Canal Ibase: As obras de
urbanização nas favelas do Rio têm como característica a falta de diálogo com
as populações e a descontinuidade dessas intervenções. Ocorreu com um projeto
chamado Favela Bairro e agora se repete com um Programa de Aceleração do
Crescimento. Nota-se o desinteresse do poder público de oferecer os mesmos
serviços da cidade sem que haja gentrificação, embora as grandes construtoras estejam
sempre presentes nessas obras. Para não legitimar a permanência dos moradores
de favelas, as obras são interrompidas sempre. Qual a avaliação do senhor sobre
isso?
Harvey: Se há populações de
baixa renda em terras de alto valor, uma das estratégias é dar títulos de
propriedade aos moradores dessas áreas, sob o argumento da regularização
fundiária e da garantia da moradia. Não sei como isso ocorre no Brasil, mas um
dos projetos em favelas, periferias e outras áreas pobres tem sido essa
concessão de títulos de propriedades. Porque propriedade o capital pode
comprar. Assim começa um processo de reocupação dessas áreas e sua consequente
gentrificação. Por outro lado, uma forma de manter os preços baixos em
determinadas comunidades é ter projetos incompletos. Então, o estado oferece
intervenções, mas não as termina. E, desse jeito, os moradores vendem a terra a
um preço baixo e saem do local. Quando a oferta chega, a infraestrutura ainda
não está lá. Essa estratégica é típica nos Estados Unidos, onde se compram
propriedades e as levam à decadência forçadamente. Desse jeito, desvalorizam um
bairro inteiro e, num período de dez anos, é possível reocupá-lo comprando
propriedades no entorno. Como o estado está envolvido nisso? Depende de lugar
para lugar. Às vezes, o estado é apenas incompetente e não sabe o que está
fazendo. Nesse caso, o estado pode começar uma obra e simplesmente parar no
meio. Não necessariamente é uma estratégia deliberada. Mas em alguns casos é. E
responde aos interesses privados. Nesses casos, há de fato uma estratégia
quando uma empresa quer atuar em determinado lugar. E se decide começar uma
obra já sabendo que não vai terminá-la. Ao não se terminarem projetos de
infraestrutura, abre-se caminho para a chegada das empresas privadas.
Canal Ibase: No Brasil, o
estado tem feito alianças com transnacionais, que têm usado e abusado do
territórios brasileiro, nas zonas urbanas e rurais. Um dos setores onde isso é
mais grave é a mineração. Como a sociedade civil pode reagir a isso?
Harvey: O principal jeito de
reagir é por meio de protestos. Eu fico abismado que países como o Brasil ainda
abram mão de seus recursos naturais para multinacionais. E há outras formas de
exploração, como é o caso das plantações de soja. Empresas como a
norte-americana Monsanto (líder mundial de venda de sementes transgênicas e
agrotóxico) e outras líderes do agronegócio tomam conta de territórios. A terra
no Brasil vem sendo constantemente degradada por esse processo. E o ciclo é
maior. É preciso lembrar que o principal mercado do agronegócio brasileiro é a
China. De um lado, são os Estados Unidos vendendo a semente e o agrotóxico e,
de outro, a China comprando. Um problema que se agrava é o controle chinês de
terras na América Latina.
Canal Ibase: O geógrafo
brasileiro Milton Santos tem uma frase que diz: “A força da alienação vem dessa
fragilidade dos indivíduos que apenas conseguem enxergar o que os separa e não
o que os une”. O senhor tem falado sobre a divisão da esquerda no mundo, da
fragmentação dos movimentos sociais. Para a criação de um movimento
anticapitalista, quais são os elementos invisíveis que perpassam todos os
movimentos? O que liga a preservação do meio ambiente, a luta das mulheres por
autonomia e o direito à cidade, por exemplo?
Harvey: Eu conheço Milton
Santos, especialmente o dos anos 1970. Depois disso, ele se tornou muito
pró-franceses. E ele não gostava de norte-americanos (risos; Harvey leciona na
Universidade da Cidade de Nova York). Se eu tivesse a resposta para essa
pergunta, poderíamos ter começado a revolução. Mas não tenho uma boa
resposta. É importante ter alianças que
cruzem movimentos ambientalistas, o feminismo, assim como juntar organizações
que trabalham por questões como a da moradia ou questões étnicas. Mas às vezes
divergências tolas quebram essas alianças. Em minha opinião, precisamos definir
o que é anticapitalismo. Não há razão para ser anticapitalista, se você acha
que o capitalismo está fazendo um bom trabalho. Mas, se você não acha… Uma das
coisas que eu tenho discutido com amigos da esquerda é esse conceito de
anticapitalismo. Há opiniões que afirmam que o capitalismo fez um trabalho
melhor que o comunismo e o socialismo. No entanto, o que está acontecendo agora
é um processo violento. Se queremos mudar, temos muito trabalho a fazer. Não há
muita gente na mídia interessada no que nós fazemos. Não somos um grupo muito
poderoso, nem temos popularidade. É importante, entretanto, fazer esse grupo
crescer, explicando às pessoas por que é importante ser anticapitalista.
(Na palestra ministrada logo em
seguida à entrevista ao Canal Ibase, Harvey complementou esse raciocínio:
“Estamos em um mundo em que o neoliberalismo está ficando enraizado. Se a
pessoa vai mal, a culpa é dela, e não do sistema. Ah!, e só para lembrar: é
também você o responsável por pagar sua educação. Eu sempre estudei em
instituições públicas até o doutorado. Hoje em dia, isso não é possível nem na
Inglaterra nem nos Estados Unidos. O movimento anticapitalista poderia visar a
algumas vitórias, como tornar novamente públicos o transporte, a saúde e a
educação. O que estou tentando dizer é que, se você é pobre ou tem dificuldades
de acesso a serviços, você é um produto do sistema; a culpa não é sua. E só há
como mudar isso mudando o sistema. Em que sociedade você quer viver? Na
sociedade em que a educação é com base no valor de uso ou no valor de troca?”,
disse o geógrafo, fazendo a oposição por meio desses dois conceitos marxistas)
Canal Ibase: Movimentos sociais
já contabilizam 100 mil pessoas removidas de suas casas apenas no Rio de
Janeiro, para realização de obras em função dos megaeventos. Que forças do
capitalismo levam, mesmo após os protestos que ocorreram no país inteiro, à
manutenção desta alteração brutal no território?
Harvey: Como falamos
anteriormente, o capitalismo depende de uma dinâmica maior. Mas precisamos
redefinir coisas. Moradia não pode ser vista como commodity. A questão central
é descobrir se você quer uma cidade para as pessoas ou para o lucro. Para
construir uma cidade diferente, é preciso ser anticapitalista. Não há outra
forma.
Fonte: Brasil de
Fato
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