O problema não reside no fato de sermos apresentados como a
oportunidade do momento. E sim nos custos implícitos do conjunto dessas
operações de privatização travestidas retoricamente de “mera concessão”. A
sociedade brasileira vai arcar com o ônus de mais um ciclo de acumulação
privada às expensas do dinheiro público.
Paulo Kliass*
O enredo é vendido, para os
incautos e desavisados, como a busca da chave encantada, que serviria de
ingresso pleno para o paraíso. Afinal - já pensou que maravilha? - o Brasil
estaria sendo muito bem aceito lá fora, sempre atuando como plataforma cordial
de ganhos assaz interessantes para o capital financeiro. Mas, na verdade, tudo
isso se assemelha muito mais a um grande pesadelo, tendo em vista as consequências
atuais e futuras, bem perversas, que virão para a maioria de nosso povo.
Refiro-me a essas viagens dos representantes do governo da Presidenta Dilma
pelos 5 continentes, na tentativa desesperada de vender as vantagens de nossas
terras como a grande alternativa de investimento sólido e seguro para o capital
internacional.
Tudo se passa como se
estivéssemos no interior de uma roda do tempo, voltando às últimas décadas do
século XIX. A economia brasileira se apresenta completamente dependente da exportação
de produtos primários - em especial, a produção de café. Os poucos e
localizados surtos de tentativa de industrialização terminam sendo abafados
pelos interesses do setor agrário exportador. O movimento abolicionista
enfrenta a dura oposição e os fortes obstáculos do “establishment”, pois o fim
da escravidão e a introdução do trabalho assalariado significariam a explosão
dos custos de produção e inviabilizariam a economia nacional. (sic)
Naqueles tempos, o ingresso na
era da economia urbano-industrial também estava a exigir um investimento maciço
em infra-estrutura. Como a capacidade de poupança nacional era bastante
reduzida, em função da inexistência de remuneração para aqueles que exerciam o
trabalho produtivo, a estratégia envolveu a atração de investidores e empresas
estrangeiras. Estando o pólo dinâmico do capitalismo internacional localizado
na Inglaterra, para cá vieram as corporações como “Light and company”, “Bond
and company”, e todas as “railways” que tivemos o direito de acolher. O foco
era a geração e a transmissão de energia elétrica, além da organização e
exploração econômica dos transportes urbanos (bondes) e interurbanos (trens).
As semelhanças com o Brasil do século XIX
Corta para 2013. A dependência
de nosso modelo de política econômica frente à exportação de produtos primários
(agricultura e extrativismo mineral) permanece a mesma. O processo de
desindustrialização de nossa economia é um fato objetivo e o governo pouco ou
quase nada faz para reverter essa tendência destruidora do patrimônio nacional,
dos empregos e da renda interna. A prioridade cega e irracional concedida aos
interesses do agronegócio e a política da valorização cambial sufocam a
indústria que tenta produzir em nosso território. A inundação dos manufaturados
importados é justificada como resultado inevitável das chamadas “leis de
mercado”, uma suposta fatalidade à qual deveríamos nos acostumar e adaptar. O
governo se encarrega de reduzir o “custo Brasil”, ao promover a desoneração
irresponsável da folha de pagamentos e generalizar as isenções de tributos para
o capital.
Os problemas de nossa
infra-estrutura são bem conhecidos há muito tempo. As décadas de ajuste
econômico conservador e neoliberal, o processo de privatização e a prevalência
da lógica do financismo não podem mais ser utilizadas como desculpa para a
inatividade ao longo dos últimos 10 anos. Se no final dos anos 1800 não
tínhamos quase nada em termos de transpores e energia, hoje em dia temos muito
por construir no conjunto do parque de infra-estrutura. Porém, a exemplo do
passado, mais uma vez incorporamos a lógica do neo-colonialismo e saímos por
aí, passando o pires pelo mundo afora.
O “road show” e as concessões ao capital internacional
O chamado “road show”
protagonizado por estrelas do primeiro time de Dilma é a manifestação mais
simbólica da incorporação da lógica da dependência e da submissão. A página do
Ministério da Fazenda na internet apresenta a versão em inglês da
apresesentação do Ministro Mantega e da publicação impressa a ser distribuída
aos interessados. Os títulos
sugestivos são, respectivamente, “The Brazilian Economy and Investment
Opportunities” e “Infrastructure in Brazil: projects, financing instruments,
opportunities”. O problema não reside no fato de sermos
apresentados como a oportunidade do momento. E sim nos custos implícitos do
conjunto dessas operações de privatização travestidas retoricamente de “mera
concessão”. Afinal, tendo em vista as condições que oferecemos para lograr tal
objetivo a qualquer preço, a sociedade brasileira vai arcar com o ônus de mais
um ciclo de acumulação privada às expensas do dinheiro público.
Essa rodada global, patrocinada
por nossos representantes, pontua os elementos positivos do desempenho
econômico brasileiro ao longo do período recente e o potencial de crescimento
futuro de nossa economia. Até aí, nada de novo. Os grandes investidores
internacionais conhecem muito bem as oportunidades abertas para quem se
interessa em vir para cá e aplicar os seus recursos. E esse cenário de ganhos
continua válido, mesmo depois da corajosa e necessária mudança de postura de
nossa Presidenta, que determinou a seus assessores a redução da taxa oficial de
juros, a SELIC. A diferença é que a maior parte dos interessados agora deveria
estar motivada tão somente pelos ganhos derivados da atividade produtiva ou na
área de serviços.
A apresentação menciona a
necessidade de um montante total de US$ 235 bilhões, a serem investidos ao
longo dos próximos anos em programas de concessão de infra-estrutura. A
distribuição desses valores de acordo com os projetos setoriais é a seguinte:
i) logística: US$ 121 bi; ii) petróleo e gás: US$ 74 bi; e iii) energia
elétrica: US$ 40 bi. Os principais projetos detalhados são:
a) Rodovias: 7.500 km.
b) Ferrovias: 10.000 km.
c) Portos: 159 unidades.
d) Trem de alta velocidade: 511
km.
e) Aeroportos: 2
internacionais.
f) Petróleo e gás: 3 rodadas de
leilão para exploração de reservas.
g) Energia elétrica: 33.000 MW
de geração e 23.200 km de linhas de transmissão.
As facilidades oferecidas ao investidor estrangeiro
Além disso, o documento procura
convencer o investidor estrangeiro a respeito das vantagens em aplicar seus
recursos por aqui. Para tanto são ressaltados justamente os aspectos mais
negativos e conservadores da política econômica do governo. Ou seja, aquelas
medidas que se destinam a beneficiar apenas os interesses do capital em
detrimento das necessidades da absoluta maioria da população. E dá-lhe
receituário típico das demandas dos colunistas de economia dos grandes meios de
comunicação, sempre a serviço dos interesses das associações de empresários e
do financismo.
Com todo o orgulho, o texto em
inglês reforça o compromisso do governo em reduzir as despesas e o déficit com
a previdência social, bem como busca assegurar a continuidade da política de
redução dos gastos correntes de forma geral. A apresentação exibe com toda a
satisfação o êxito da política de obtenção de superávit primário, de forma
sucessiva ao longo dos últimos anos. Por outro lado, tranqüiliza os gestores
dos fundos de investimento quanto à continuidade da definição da taxa de câmbio
baseada no pressuposto da liberdade cambial. Finalmente, o texto reforça a
tendência irreversível para com a desoneração tributária (em especial a da contribuição
previdenciária sobre a folha de pagamentos) e com a redução de impostos de uma
forma geral. Em poucas palavras, o recado é claro: podem vir que o retorno do
investimento está tranqüilo, pois o Estado vai cumprir com seu papel de
assegurar seus ganhos.
Não bastasse essa ladainha
toda, o governo ainda anuncia medidas que concretizam tais compromissos, com
mais pacotes de benesses. Depois do grande “lobby” exercido pelos
representantes do capital, Dilma recua e aceita elevar as taxas de retorno
previstas para os projetos de concessão. Ou seja, em total oposição ao discurso
a respeito da queda da taxa de juros, sua equipe anuncia que as taxas de lucro
dos projetos de concessão de infra-estrutura podem chegar a 15% ao ano. Uma
loucura, caso consideremos que a taxa real de juros para uma aplicação em
títulos da dívida pública fica em torno de 2% atualmente. O conglomerado
empreendedor estrangeiro participa de uma licitação patrocinada pelo próprio
Estado brasileiro, para gerir um bem ou serviço público, em uma operação quase
sem nenhum risco envolvido, com uma demanda garantida por uma eternidade e
ainda tem a autorização e o estímulo do governo para auferir esse tipo
escandaloso de retorno financeiro. Um absurdo!
Não bastasse tamanha
generosidade, sempre realizada com recursos públicos previstos no orçamento, o
governo decide por oferecer aos interessados e vitoriosos nas licitações a
engenharia financeira do BNDES. Leia-se: o banco “nacional” de desenvolvimento
vai participar com aporte de recursos, a custo praticamente nulo, para que os
agentes do imperialismo venham aqui dentro explorar atividades econômicas de
natureza pública! Imagine-se o que não vai ocorrer dentro de 30 ou 35 anos,
quando da renovação de tais contratos. O segredo desse tipo de empreendimento,
como qualquer outro, é determinado por uma conta muito simples: o resultado
líquido entre receitas e despesas. Aumentar receitas significa ampliar o número
de usuários e, principalmente, o valor das tarifas. Diminuir despesas significa
processos mais eficientes, mas também reduzir a qualidade dos serviços
oferecidos. Os resultados da privatização de telecomunicações e da energia
elétrica estão aí para quem quiser refletir sobre tarifa pública e qualidade do
serviço. E também sobre a incapacidade das agências reguladoras exercerem seu
verdadeiro papel.
Infraestrutura: interesse estratégico e soberania nacional
Por se tratar de áreas de
interesse estratégico para o País, com elevada sensibilidade econômica,
política, social, tecnológica, ambiental e de segurança nacional, esse
movimento delicado deveria merecer muita mais atenção e preocupação por parte
do governo. Vender dessa forma irresponsável uma parcela essencial de nossa
capacidade econômica pode trazer conseqüências irreparáveis no médio e no longo
prazos. A crise econômica internacional reduziu as taxas de ganho por todo o
planeta. Se o Brasil é efetivamente um dos principais pólos de atração para
novos investimentos estrangeiros, nossa postura deveria ser muita mais exigente
e seletiva na procura dos interessados. Ao invés de oferecer mundos e fundos,
deveríamos sim é colocar nossas exigências em termos de contrapartidas. Isso
significaria estabelecer condições quanto a re-investimento dos lucros
auferidos, internalização de tecnologia aportada, limitação das taxas de
retorno financeiro nos projetos, multas para não cumprimento de cláusulas
importantes, entre outros aspectos.
Em poucas palavras, seria uma
excelente oportunidade para demonstrarmos ao resto do mundo que não existe mais
espaço para o servilismo nem para o excesso de cordialidade nas relações
econômicas com o capital estrangeiro. Que a partir de agora, o Estado
brasileiro iria responder - em primeiro lugar - aos interesses nacionais e
soberanos, sempre da perspectiva da maioria de sua população. Porém, como o
governo não trabalha com um projeto de País nem com uma estratégia de Nação,
vamos cedendo e concedendo o futuro para tocar o ramerrame do dia-a-dia.
*Especialista em Políticas
Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em
Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta
Maior
Nenhum comentário:
Postar um comentário