Foto retirado do site Outras Palavras. |
Joseph Stiglitz explica: por que desigualdade, redução do Estado e rentismo financeiro produzem, além de injustiça, cada vez mais ineficiência.
27 MARÇO, 2013
Vamos começar por estabelecer
uma premissa básica: a desigualdade nos Estados Unidos aumenta há décadas.
Todos estamos conscientes deste facto. Certas vozes na direita negam a
realidade, mas analistas sérios, em todo o espectro político, reconhecem o fenômeno
Não vou elencar todas as evidências neste texto: basta lembrar que a diferença
entre o 1% e os 99% é muito vasta quando a analisamos em termos de rendimento
anual; e ainda maior quando observamos a riqueza — ou seja, o capital acumulado
e outros bens. Considere a família Walton: os seis herdeiros do império do
Walmart possuem uma riqueza combinada de cerca de 90 mil milhões de dólares, o
que é equivalente à riqueza somada dos 30% mais pobres, entre os
norte-americanos (muitos deles possuem patrimônio líquido zero ou negativo,
especialmente depois do colapso imobiliário). Warren Buffet [leia, de sua
autoria, “Parem de mimar os super-ricos”] situou o tema de forma correta quando
disse: “Houve uma guerra de classes nos últimos 20 anos, e a minha classe ganhou”.
Portanto, o debate real não é
sobre o fenómeno da desigualdade, mas sobre o seu significado. À direita,
ouve-se algumas vezes o argumento de que a desigualdade é basicamente uma coisa
boa: se os ganhos dos ricos crescem, afirma-se, toda sociedade segue no seu
vácuo. Este argumento é falso: enquanto os ricos têm ficado mais ricos, muitos
norte-americanos (e não apenas os mais empobrecidos) não conseguem manter o seu
padrão de vida, muito menos avançar. Um trabalhador em tempo integral típico
ganha hoje o mesmo salário que recebia há três décadas atrás.
Entre a esquerda, por outro
lado, o crescimento da desigualdade frequentemente provoca um apelo por
justiça: por que tão poucos podem ter tanto, enquanto tantos têm tão pouco? Não
é difícil entender por que, numa era dirigida pelo mercado, na qual a própria
justiça é em si uma mercadoria que pode ser vendida e comprada. Mas alguns
rejeitariam o argumento, rotulando-o como coisa de sentimentais piedosos.
Mesmo colocando o sentimento à
parte, existem boas razões para que os próprios plutocratas se importem com a
desigualdade — até mesmo por egoísmo. Os ricos não existem num vácuo.
Necessitam de uma sociedade que funcione em torno deles, para sustentar a sua
posição. A evidência histórica e do mundo moderno é inequívoca: vamos chegar a
um ponto em que a desigualdade desencadeará disfunções económicas que se
espalham por toda a sociedade. Quando isso acontecer, até os ricos pagarão um
grande preço.
Vamos examinar algumas razões.
O problema do consumo
Quando um grupo social
concentra muito poder, torna-se capaz de assegurar políticas que o beneficiam a
si próprio, a curto prazo — ao invés de contribuir, a longo prazo, para a
sociedade como um todo. Foi o que ocorreu nos EUA, no que diz respeito às
políticas tributárias, regulatórias e de investimento público. As consequências
(aumento dos rendimentos e da riqueza em favor de um único setor da sociedade)
tornam-se visíveis quando se observam os gastos das famílias, um dos motores da
economia norte-americana.
Não por acaso, os períodos em
que setores mais amplos da sociedade norte-americana registaram aumento dos
rendimentos líquidos — ou seja, quando a desigualdade foi reduzida, em parte
graças a impostos progressivos — foram aqueles em que a economia cresceu mais
rápido. Também não é por acaso que a atual recessão, assim como a Grande
Depressão, foi precedida por grandes aumentos na desigualdade. Quando muito
dinheiro é concentrado no topo da sociedade, os gastos do norte-americano médio
tornam-se necessariamente menores — a menos que haja algum estímulo de outra
natureza. A concentração do dinheiro reduz o consumo porque indivíduos de renda
mais alta consomem uma fração muito menor dos seus rendimentos, se comparados
às pessoas de rendimentos mais baixos.
Aparentemente, não é assim. Os
gastos dos ricos são extraordinários, como se constata admirando, nas páginas
do Wall Street Journal de fim-de-semana, as fotografias coloridas dos anúncios
imobiliários. Mas a realidade torna-se visível quando faz a conta. Considere
alguém como o candidato do Partido Republicano à Presidência, Mitt Romney,
cujos rendimentos chegaram, em 2010, a 21,7 milhões de dólares. Mesmo se Romney
optar por um estilo de vida muito mais perdulário, gastará apenas uma fração
desse montante, num ano típico, para se manter a si mesmo e à sua esposa, nas
suas diversas casas. Mas tome a mesma soma de dinheiro e divida por
aproximadamente 500 pessoas — na forma, digamos, de empregos que paguem 43.400
dólares por ano — e você descobrirá que quase todo o dinheiro é gasto.
A relação é direta e
obrigatória: quanto mais o dinheiro fica concentrado nas classes mais
favorecidas, mais a procura agregada declina. A não ser que “algo a mais”
aconteça, na forma de intervenção, a procura total será menor do que a economia
é capaz de oferecer. Significa que haverá um aumento no desemprego, o que vai
enfraquecer a procura ainda mais. Nos anos 1990, a bolha da tecnologia foi este
“algo a mais”. Na primeira década do século 21, foi a vez da bolha imobiliária.
Hoje, o único recurso, no meio de uma profunda recessão, são os gastos do
governo — exatamente o que o pessoal no topo da pirâmide está a tentar refrear.
O problema da caça de rendas
Aqui, preciso recorrer um pouco
ao jargão económico. A palavra renda foi originalmente usada, e ainda é, para
descrever o que alguma pessoa recebe pelo uso da terra: é o retorno obtido
simplesmente em virtude de propriedade, e não pelo fato de fazer ou produzir
algo. Renda contrasta com salário, por exemplo, que conota uma compensação pelo
trabalho fornecido pelos assalariados. O termo renda foi, depois, estendido
para abranger os lucros de monopólio — a renda que alguém recebe simplesmente
por controlar um monopólio. E por fim, o significado da palavra expandiu-se
ainda mais, para incluir a remuneração de outros tipos de reivindicações de
propriedade. Se o Estado concede a uma empresa o direito exclusivo de importar
uma certa quantia de um certo bem (como o açúcar), então os ganhos oriundos
deste monopólio são chamados de “renda da quota”.
A concessão de direitos de
mineração ou extração de petróleo produz uma forma de renda. O mesmo ocorre com
o tratamento tributário preferencial, para certos lucros. Num sentido mais
amplo, a caça de rendas [rent seeking] define muitas das maneiras por meio das
quais o nosso processo político favorece os ricos às custas de todos os demais.
Inclui transferências e subsídios do governo, leis que tornam os mercados menos
competitivos, leis que permitem aos executivos abocanhar uma fração
desproporcional dos lucros das empresas e que permitem às corporações ampliar
os seus lucros destruindo a natureza.
Embora difícil de quantificar,
a magnitude da “caça às rendas”, na economia norte-americana, é imensa.
Indivíduos e empresas que se aprimoram nesta atividade são fartamente
recompensadas. O setor financeiro — que hoje funciona em grande medida como um
mercado de especulação, ao invés de uma ferramenta para promover produtividade
económica autêntica — é caçador de rendas por excelência. A prática não se limita
à especulação. Este setor extrai rendas também do seu controlo sobre os meios
de pagamento — por exemplo, cobrando tarifas exorbitantes nas operações
bancárias e cartões de crédito, ou imponto, aos vendedores, tarifas menos
conhecidas, que são repassadas aos consumidores.
O dinheiro que o setor
financeiro extrai dos norte-americanos pobres ou de classe média, por meio de
práticas predatórias de crédito, pode ser visto como uma forma de renda de
monopólio. Nos últimos anos, este setor apropriou-se de cerca de 40% de todo o
lucro empresarial nos EUA, algo totalmente distante da sua contribuição social.
A crise mostrou, ao contrário, como ele pode espalhar devastação pela economia.
Numa sociedade de caça às rendas, como aquela em que os Estados Unidos se converteram,
retorno financeiro e retribuição à sociedade estão perigosamente fora de
sintonia.
Na sua forma mais simples, as
rendas não são mais que transferências de riqueza, de uma parte da sociedade
para os caçadores de renda. Muito da desigualdade na nossa economia resulta da
caça de rendas, porque este processo extrai recursos da parte de baixo da
pirâmide e concentra-os no topo.
Mas há uma consequência
económica mais ampla: a luta pela apropriação de rendas é, na melhor das
hipóteses, uma atividade de soma-zero. A caça de rendas não produz o
crescimento de nada. Os esforços que ela envolve são direcionados a abocanhar
uma parte cada vez maior do bolo, ao invés de fazê-lo crescer. Mas é ainda
pior: a busca de rendas distorce a alocação de recursos e torna a economia mais
frágil. É uma força centrípeta: o retorno da caça de rendas torna-se tão desproporcional
que cada vez mais energia é dirigida a esta atividade, às custas de tudo o
mais.
Países ricos em recursos
naturais são tristemente famosos pela atividade de caça às rendas. É muito mais
fácil tornar-se rico nestes lugares obtendo acesso aos recursos, em condições
favoráveis, do que a produzir bens ou serviços que beneficiam a população e
elevam a produtividade. É por isso que estas economias foram tão mal sucedidas,
a despeito da sua aparente riqueza. É fácil desdenhar e dizer: “Não somos a Nigéria,
não somos o Congo”. Mas a dinâmica de caça às rendas é a mesma.
Fonte: Esquerda
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