SÉRGIO DOMINGUES*
“Quanto vale ou é por quilo?” é
o mais novo filme de Sérgio Bianchi. ONGs e entidades desonestas são acusadas
de lucrarem com a miséria, usando dinheiro público. E ainda mostra como a
miséria tem cor e endereço certos. É negra e favelada.
Infelizmente o filme não vai
chegar ao grande público. Mas é bastante didático e coloca o dedo na ferida da
“indústria da solidariedade”. Deveria ser visto em escolas, cursinhos
populares, associações comunitárias. Mas sempre seguido de debates. Até para
que ONGs e entidades sérias possam se defender.
O filme começa com a história
de uma escrava que conseguiu comprar sua liberdade, no final do século 18.
Trabalhando e poupando, ela conseguiu ter uma pequena propriedade e alguns
escravos. Mas, eis que aparecem alguns capitães-do-mato em seu rancho. São
caçadores de escravos fugitivos. Eles prendem um de seus cativos. Ela protesta,
mas não adianta. Seguindo os caçadores, ela vê que eles entregam o negro na
casa de um senhor branco. A negra bate à porta do dito cujo. Mostra os papéis
que provam ser ela a proprietária do escravo. O senhor branco fecha a porta na
cara dela. Revoltada, ela grita: “lugar de ladrão é na cadeia”. Resultado: é
processada e condenada por perturbação da ordem pública. Trata-se de um caso
verdadeiro. Ao longo do filme, eles se repetirão, com os devidos registros e
datas.
Esta cena mostra que ser
proprietário no Brasil não basta. É preciso ser branco também. Mesmo hoje, ter
um automóvel novo e ser negro é motivo suficiente para ser vítima de batidas
policiais ou coisa pior. Mas o caso revela outra coisa, também. É o mecanismo
de repasse da dominação. A negra liberta também tem seus escravos. É natural,
diz o narrador do filme. É assim que funcionava o sistema na época. Só que esse
mecanismo continua a funcionar, diz o filme.
Para ilustrar isso há uma cena
nos tempos de hoje. Uma Kombi chega na madrugada para ajudar mendigos.
Distribuir cobertas, sopa e café. Logo em seguida, um outro grupo chega em
outra perua. É expulso pela líder do primeiro veículo. Ela quase diz “esses
mendigos são meus. Caiam fora”. É a remediada ajudando os esfarrapados, para
continuar recolhendo donativos e fazendo seu pé-de-meia.
Voltando ao passado escravista,
o filme conta a história de uma escrava idosa que tenta juntar o dinheiro
suficiente para se libertar. Conhece uma senhora branca que não é rica, mas é
esperta. Paga a liberdade da velha escrava em troca do trabalho dela por mais
um ano, pago com juros. O investimento dá resultado. A velhinha acaba tendo que
trabalhar por mais três anos antes de se ver livre de sua “benfeitora”.
O paralelo é claro. Tanto no
tempo da escravidão, como na época atual, há um espaço para fazer jogadas. Num
caso, são os brancos pobres explorando negros cativos. No outro, são
empreendedores espertos da solidariedade transformando a miséria em fonte de
riqueza. De um lado, continuam sendo quase todos brancos. De outro, quase todos
são negros.
Multiplicar
o número de criminosos e crianças pobres para criar empregos
Os paralelos vão se
multiplicando. Mais um caso antigo aparece. Fala sobre os capitães-do-mato da
época da escravidão. A maioria era formada por negros. Viviam de caçar escravos
fugidos. É o caso de um deles, que captura uma negra fugida. Ela está grávida e
aborta no momento em que é entregue a seu dono. A negra sangra ao lado dos
dois, enquanto o narrador explica que o dinheiro ganho pelo caçador servirá
para que o filho tenha uma vida melhor que a dele.
De volta ao mundo atual, um
desempregado é pressionado pela mulher grávida e pela tia a trazer dinheiro
para casa. Desesperado, ele vira matador-de-aluguel. Suas vítimas são negras e
pobres como ele. Não seria mais do que um capitão-do-mato moderno, e também
procura um futuro melhor para seu filho. Apesar disso, a tia do matador explica
que serviços como o que ele faz conta com gente muito mais profissional e
treinada. Enquanto ela fala, aparece a cena mais corajosa do filme. Um camburão
invade o calçadão da Praça da Sé no meio da madrugada. Os policiais arrancam
crianças-de-rua de seu sono, ao pé de uma árvore. Jogam-nas dentro do
compartimento dos presos. Tudo indica que o destino delas será o extermínio.
Continuam os casos registrados.
Na época do império, um negro é alugado para fazer a contabilidade de uma
empresa. Acusado de roubo, foge. É preso e violentamente espancado. Seu
proprietário processa o dono da empresa que o alugou. Prova que o escravo não
roubara nada. Exige indenização, dizendo que seu patrimônio foi danificado.
Ganha a causa e recupera com lucros o investimento perdido na recuperação do
escravo.
É desse jeito que nasceu o
capitalismo. Seres humanos eram mercadorias. Depois no capitalismo maduro,
tornaram-se menos do que isso. Apenas objetos de exploração. Mas hoje, também
há os que nem isso são mais. São os desempregados, mendigos, presidiários,
crianças abandonadas.
Nem por isso deixam de ser
fonte de lucros, acusa o filme de Bianchi. Mas também sobram ataques aos
governos. Há, por exemplo, uma propaganda governamental que conta as maravilhas
envolvidas com a criação de empregos através da construção de presídios. Um
outro comercial cita o dinamismo da ação solidária. Um entusiasmado locutor diz
que cada criança desamparada gera cinco empregos. A lógica é óbvia. Multiplicar
o número de criminosos e crianças pobres para criar empregos!
Mas tudo isso tem uma galinha
dos ovos de ouro. É o acesso aos fundos públicos. Seminários e cursos ensinam
como agarrar essa galinha sem ficar só com as penas nas mãos. O caminho passa
por conhecer a pessoa certa na hora certa e no lugar adequado. A taxa de acesso
varia entre 15% e 20%, claro.
Uma conta muito didática é
exposta. Diz o filme que são cerca de 10 mil crianças de rua no Brasil. As
verbas públicas reservadas para dar conta do problema seriam de, mais ou menos,
1 milhão de reais. Este milhão dividido pelas 10 mil crianças seria suficiente
para lhes pagar escola particular do primário até a faculdade, por exemplo. Mas
esse dinheiro precisa passar por ONGs, entidades assistenciais e empresas
“solidárias”. Tal como no caso da senhora escrava e da branca esperta a
liberdade tem intermediários prontos a lucrar com isso.
Entidades
“pilantrópicas” sequestram o dinheiro público usando os pobres como reféns
O que parece ser uma
alternativa a tudo isso surge com o personagem do presidiário negro. Numa cela
superlotada ele olha para a câmera e explica “Quando éramos escravos, éramos
máquinas. Investimentos de capital. Tínhamos que ser mantidos alimentados e
saudáveis. Agora, somos escravos sem senhor”. E conclui: “Na democracia, só
existe liberdade para quem pode consumir”.
Esse mesmo personagem foge da
cadeia. Pagou para isso e, agora, quer recuperar o investimento. Sequestra um
dos sócios de uma ONG. Consegue receber o resgate, depois de enviar uma orelha
e outros pedaços do refém à sua esposa. Chama a isso de redistribuição de
renda.
Enquanto isso, a negra Arminda
descobre o superfaturamento na compra dos computadores feita por uma ONG para
sua comunidade. Consegue provas da maracutaia. Exige que a entidade use o
dinheiro que desviou para comprar computadores decentes. Sem conseguir ser
atendida, ela invade uma festa da entidade e grita: “Lugar de ladrão é na
cadeia”.
Diante disso, os pilantras e
seus amigos políticos decidem resolver o problema. O matador-de-aluguel é
convocado. Vai atrás de Arminda, tal como o capitão-do-mato fizera com a
escrava fugida. Arminda morre com um tiro. O filme acaba. A sensação é de que
não há saída. Mas, há um final alternativo.
Depois de iniciados os
letreiros finais, a cena se repete. Dessa vez, Arminda convence o matador a
poupar sua vida. Propõe formar um grupo para sequestrar todos “os filhos da
puta que roubam dinheiro do Estado”. Agora sim, o filme acaba.
O problema é que o final
alternativo também não aponta soluções. Claro que a vontade é concordar com
Arminda e sair fazendo justiça com as próprias mãos. Mas, justiça será feita
mesmo é coletivamente. A partir da organização dos de baixo para exigir
políticas públicas reais. ONGs desonestas e entidades “pilantrópicas” devem ser
condenadas. Elas sequestram o dinheiro público usando os pobres como reféns.
Mas, sequestrar os sequestradores não resolve. Eles só existem porque se
beneficiam do esquema maior do poder. Da terrível distribuição de renda e da
secular dominação racista.
Além disso, há o risco de
valorizar demais as relações de dominação e exploração entre pobres e menos
pobres. O principal é fazer mira nos poderosos, nos governos ou fora deles. O
resto é consequência. De qualquer maneira, é um filme corajoso.
Fonte: Espaço
Acadêmico
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