“O comunismo, como ideário
antiestatizante das oportunidades realmente iguais para todos, é hoje a melhor
hipótese, ideia e guia para os movimentos políticoslibertários antipoder”. O
comentário é de Santiago Zabala, pesquisador e professor de filosofia da
Instituição Catalã de Pesquisa e Estudos Avançados ICREA[1], da Universidade de
Barcelona em artigo publicado pelo sítio Outras Palavras, 30-07-2012.
Eis o artigo.
Ler Marx e escrever sobre Marx
não faz de ninguém comunista, mas a evidência de que tantos importantes
filósofos estão reavaliando as ideias de Marx com certeza significa alguma
coisa. Depois da crise econômica global que começou no outono [nórdico] de
2008, voltaram a aparecer nas livrarias novas edições de textos de Marx, além
de introduções, biografias e novas interpretações do mestre alemão.
Por mais que essa ressurreição
[2] tenha sido provocada pelo derretimento financeiro global, para o qual não
faltou a empenhada colaboração de governos democráticos na Europa e nos EUA,
esse ressurgimento [3] de Marx entre os filósofos não é consequência nem
simples nem óbvia, como creem alguns. Afinal, já no início dos anos 1990s,
Jacques Derrida [4], importante filósofo francês, previu que o mundo procuraria
Marx novamente. A previsão certeira apareceu na resposta que Derrida escreveu a
uma autoproclamada “vitória neoliberal” e ao “fim da história” inventados por
Francis Fukuyama.
Contra as previsões de
Fukuyama, o movimento Occupy e a Primavera Árabe demonstraram que a história já
caminha por novos tempos e vias, indiferente aos paradigmas econômicos e
geopolíticos sob os quais vivemos. Vários importantes pensadores comunistas
(Judith Balso, Bruno Bosteels, Susan Buck-Mors, Jodi Dean, Terry Eagleton,
Jean-Luc Nancy, Jacques Rancière, dentre outros), dos quais Slavoj Zizek é o
que mais aparece, já operam para ver e mostrar como esses novos tempos são
descritos em termos comunistas, quer dizer, como alternativa radical.
O movimento acontece não só em
conferências de repercussão planetária em Londres [5], Paris [6], Berlin [7] e
New York [8] (com participação de milhares de professores, alunos e ativistas)
mas também na edição de livros que se convertem em best-sellers globais como
Império [9] de Toni Negri e Michael Hardt, A Hipótese Comunista [10] de Alain
Badiou e Ecce Comu [11] de Gianni Vattimo, dentre outros. Embora nem todos
esses filósofos apresentem-se como comunistas – não, com certeza, como o mesmo
tipo de comunista –, a evidência de que o pensamento comunista está no centro
de seu trabalho intelectual autoriza a perguntar por que há hoje tantos
filósofos comunistas tão ativos.
A ressurgência do marxismo
Evidentemente, nessas
conferências e nesses livros, o comunismo não é proposto como programa para
partidos políticos, para que reproduzam regimes historicamente superados; é
proposto como resposta existencial à atual catástrofe neoliberal global. A
correlação entre existência e filosofia é constitutiva, não só da maioria das
tradições filosóficas, mas também das tradições políticas, no que tenham a ver
com a responsabilidade sobre o bem-estar existencial dos seres humanos. Afinal,
a política não é apenas instrumento posto a serviço da vida burocrática diária
dos governos. Mais importante do que isso, a política existe para oferecer guia
confiável rumo a uma existência mais plena. Mas quando essa e outras obrigações
da política deixam de ser cumpridas pelos políticos profissionais, os filósofos
tendem a tornar-se mais existenciais, vale dizer, tendem a questionar a
realidade e a propor alternativas.
Foi o que aconteceu no início
do século 20, quando Oswald Spengler, Karl Popper e outros filósofos começaram
a chamar a atenção para os perigos da racionalização cega de todos os campos da
atividade humana e de uma industrialização sem limites em todo o planeta. Mas a
política, em vez de resistir à industrialização do homem e da vida humana,
limitou-se a seguir uma mesma lógica industrial. As consequências foram
devastadoras, como todos já sabemos.
Hoje, as coisas não são
essencialmente diferentes, se se consideram os efeitos igualmente calamitosos
do neoliberalismo. Apesar do discurso triunfalista do neoliberalismo, a crise
das finanças globais neoliberais do início do século 21 serviu para mostrar que
nunca as diferenças de bem-estar material foram maiores ou mais claras que
hoje: 25 milhões de pessoas passam a viver, a cada ano, em favelas urbanas; e a
devastação dos recursos naturais do planeta já provoca efeitos assustadores em
todo o mundo, tão devastadores que, em alguns casos, já não há remédio
possível.
Por isso tudo, relatório
recente do ministério da Defesa da Grã-Bretanha [12] previa, além de uma
ressurgência de “ideologias anticapitalistas, possivelmente associadas
movimentos religiosos, anarquistas ou nihilistas, também movimentos associados
ao populismo; além do renascimento do marxismo”. Essa ressurgência do marxismo
é consequência direta da aniquilação das condições de existência humana
resultantes do capitalismo neoliberal como o conhecemos.
O que é “comunismo”?
Por mais que a palavra
“comunista” tenha adquirido inumeráveis significados distintos, ao longo da
história, na opinião pública atual ela significa uma relíquia do passado e é
associada a um sistema político cujos componentes culturais, sociais e
econômicos são todos controlados pelo estado.
Por mais que talvez seja o caso
na China, Vietnã ou Coreia do Norte, para a maioria dos filósofos e pensadores
contemporâneos esse significado é insuficiente, está superado, é efeito de propaganda
maciça e, sobretudo, é diariamente desmentido pela evidência de que o mundo não
estaria vivendo uma “ressurgência” do marxismo, se o comunismo marxista fosse
apenas isso.
Como diz Zizek, o comunismo de
estado não funcionou, não por fracasso do comunismo, mas por causa do fracasso
das políticas antiestatizantes: porque não se conseguiu quebrar as limitações
que o estado impôs ao comunismo, porque não se substituíram as formas de
organização do estado por forma ‘diretas’ não representativas de auto-organização
social.”
O comunismo, como ideário
antiestatizante das oportunidades realmente iguais para todos, é hoje a melhor
hipótese, ideia e guia para os movimentos políticos libertários antipoder, como
os que nasceram dos protestos em Seattle (1999), Cochabamba (2000) e Barcelona
(2011).
Por mais que esses movimentos
lutem em nome de causas e valores específicos e diferentes entre si (contra a
globalização econômica desigualitária, contra a privatização da água, contra
políticas financeiras danosas), todos lutam contra o mesmo adversário: o
sistema de distribuição não igualitária da propriedade, em democracias
organizadas pelos princípios impositivos do capitalismo.
Como o demonstram a pobreza
sempre crescente e o inchaço das favelas, este modelo deixou para trás todos os
que não foram “bem-sucedidos” segundo suas regras, produzindo novos comunistas.
Comunismo e democracia
Em resumo, enquanto Negri e
Hardt [13] buscam no “comum” (quer dizer, nos modos pelos quais a propriedade
pública imaterial pode ser propriedade dos muitos), e Badiou busca nas
insurreições (em ações como a da Comuna de Paris) [14], a possibilidade de se
alcançarem “formas de auto-organização” não estatais, quer dizer, a
possibilidade de formas comunistas, Vattimo (e eu) [15] sugerimos que todos
examinemos os novos líderes democraticamente eleitos na Venezuela, Bolívia e
outros países latino-americanos. [16]
Se esses líderes conseguiram
chegar ao governo e começar a construir políticas comunistas sem insurreições
violentas, não foi por terem chegado ao mundo político armados por fortes
conteúdos teóricos ou programáticos; mas por suas fraquezas.
Diferente da agenda pregada
pelo “socialismo científico”, o comunismo “fraco” (também chamado
“hermenêutico” [17]) abraçou não só a causa ecológica [18] do de-crescimento,
mas também a causa da decentralização do sistema burocrático estatal, de modo a
permitir que se constituam conselhos independentes locais, que estimulam o
envolvimento das comunidades.
Que ninguém se surpreenda se
muitos outros filósofos, atraídos para o comunismo pelas ações e políticas de
destruição da vida do neoliberalismo, também vislumbrarem a alternativa [19]
que se constrói na América Latina. Especialmente, porque as nações
latino-americanas demonstraram que os comunistas podem ter acesso ao poder
também pelas vias formais da democracia.
Notas:
[1] http://www.icrea.cat/Web/Links.aspx
[2]
http://50.56.48.50/article/new-communism-resurrecting-utopian-delusion
[3]
http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2009/oct/08/communism-university-workplace-occupations?INTCMP=ILCNETTXT3487
[4] www. routledge. com/
books/ details/ 9780415389570/
[5]
http://www.guardian.co.uk/uk/2009/mar/12/philosophy
[6] http://marxau21.blogspot.com.es/2009/12/puissances-du-communisme.html
[7] http://www.volksbuehne-berlin.de/praxis/en/idee_des_kommunismus__philosophie
_und_kunst/?id_datum=2533
[8]
http://www.versobooks.com/blogs/706
[9] Império, 2005, Rio de Janeiro: Ed. Record, 501 p.
[10] A hipótese comunista, 2012, São Paulo: Boitempo
Editorial, 152 p.
[11] http://www.fazieditore.it/Libro.aspx?id=572
[12] http://thenewalexandrialibrary.com/trends.html
[13]
http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2011/feb/03/communism-capitalism-socialism-property
[14] http://www.lacan.com/baddiscipline.html
[15]
http://www.cup.columbia.edu/book/978-0-231-15802-2/hermeneutic-communism
[16] http://southoftheborderdoc.com/
[17] Hermenêutico: adj. Relativo à interpretação dos textos,
do sentido das palavras. (…) 3) Rubrica: semiologia. Teoria, ciência voltada à
interpretação dos signos e de seu valor simbólico. Obs.: cf. semiologia 4) Rubrica: termo jurídico. Conjunto de regras
e princípios us. na interpretação do texto legal (…). Etimologia: gr.
herméneutikê (sc. tékhné) ‘arte de interpretar’ < herméneutikós,ê,ón
’relativo a interpretação, próprio para fazer compreender’ [NTs, com verbete do
Dicionário Houaiss, emhttp://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=hermen%EAutica&cod=101764]
[18] http://therightsofnature.org/bolivia-experience/
[19] http://www.thenation.com/article/muscling-latin-america
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/511955-o-retorno-dos-filosofos-comunistas
Fonte: Fórum Realidade