Publicado em 29 de agosto de
2013
“Se ser ‘Ceará Moleque’ é vaiar médicos estrangeiros, afasto-me por inteiro de sua valia como modo de expressão, porque isto me cheira a fascismo
Por Rosemberg Cariry
(Este texto é dedicado ao Dr.
Luiz Teixeira Neto e à memória do Dr. Caetano
Ximenes de Aragão, dois médicos-poetas e
humanistas, que muito me ensinaram da vida
e da solidariedade).
Um choque profundo, uma
sensação de mal-estar, uma vontade de vomitar… Algo me atingiu em cheio, acho
que não no corpo, mas no espírito. Não posso precisar o que senti naquele
momento, em que vi, pela TV, o constrangimento que alguns médicos cearenses
infligiram aos aqui aportados médicos estrangeiros, em franca ação de
hostilidade. Esses senhores, vestidos de branco, em nome dos seus interesses
corporativos e econômicos fizeram um
espécie de “corredor polonês”, por onde os médicos estrangeiros, que vieram
para trabalhar pela saúde da população, nos mais distantes e miseráveis rincões
do país, foram obrigados a passar, entre vaias e xingamentos. Talvez o melhor
termo para traduzir o que senti seja a palavra VERGONHA. Acreditem, fui
acometido de uma profunda vergonha, ao ver um ato de tamanha hostilização e
incivilidade acontecer na minha terra, sob a tutela do Sindicato dos Médicos do
Ceará. Pensei comigo: chegamos ao fundo do poço!
Posso compreender toda a
mística que se faz em torno do “Ceará Moleque” e do sentido cultural do uso da
vaia, ao longo de toda a nossa história. Porém, se ser “Ceará Moleque” é vaiar
médicos estrangeiros, afasto-me por inteiro de sua valia como modo de expressão,
porque isto me cheira muito mais a xenofobia e a fascismo. Quanto ao significado deste ato, como ação
política, podem os senhores sindicalistas ter a certeza de que atraíram para si
o desprezo de milhões de cearenses e de brasileiros. Em todo canto deste imenso
Brasil, nos últimos dias, não se comenta outra coisa, a não ser esta atitude
vergonhosa.
Eu sou de um tempo em que os
médicos eram conhecidos pela civilidade, pela erudição, pelo humanismo, pelo
saber profundo que nascia de uma vocação, do ser e do construir-se na vida
dentro de uma comunidade de destinos. A maioria destes médicos de boa cepa,
pois, além de grandes profissionais, eram ainda homens que cultivavam as artes,
que sabiam filosofia, que refletiam sobre a vida e o destino da humanidade,
colocando a ética como um bem supremo.
Eram homens sábios, homens de
tal grandeza, dos quais as comunidades se orgulhavam, chegando a nomear ruas e
praças para que as futuras gerações deles se lembrassem, quando eles deixavam o
nosso convívio. Quem na vida não conheceu um desses médicos, também escritores,
poetas ou filósofos, com os seus ensinamento de caráter iniciático na vida e
nas artes? Quem poderia imaginar um médico desta envergadura espiritual vaiando
um colega estrangeiro, em um ato cheio de ódio e xenofobia? Impossível
imaginar!
Mas o que acontece hoje? No
Ceará, alguns médicos hostilizam, de forma escandalosa, estrangeiros com
ameaças e xingamentos. É bem possível, que as universidades, sobretudo as
universidade e faculdades particulares, fábricas de lucro e de técnicos
destituídos de cultura e de humanismo, estejam produzindo estes “monstrinhos
vestidos de branco”, analfabetos de qualquer humanismo, incapazes de ler a
dimensão humana de um romance de Dostoievsky ou a metafísica de um conto de
Guimarães Rosa. Falar em Darcy Ribeiro, Ariano Suassuna, Gilberto Freire,
Graciliano Ramos ou Euclides da Cunha, perto deles, é falar em javanês. Pobres
médicos-tecnocratas, jogados a um convívio viciado e naturalizado com a
indústria farmacêutica, quantas vezes submetidos aos grandes laboratórios que,
em nome do lucro e da ganância capitalista, erguem o seu reinado da morte,
travestidos de tecnologias arrojadas e mascarados de patentes.
Quando vi estes jovens médicos,
feito moleques incultos e incivilizados, vaiando e xingando os seus colegas
estrangeiros de profissão, pensei comigo mesmo: esperem, mas não somos todos
netos de estrangeiros? Não vivemos em um país que nasceu de um grande encontro
de povos e culturas? Não é esta a grande característica do nosso país? Não é a
generosidade e a hospitalidade o nosso maior tesouro? A cena brutal e
humilhante imposta aos médicos estrangeiros, fez-me imaginar os nossos avós
estrangeiros sendo vaiados, forçados a passar pela humilhação do xingamentos e
do preconceito, nos corredores poloneses armados pelos “reacionários
nacionalistas” da época (filhos também de estrangeiros).
Não devíamos receber estes
irmãos cubanos, espanhóis, portugueses, ucranianos, venezuelanos, mexicanos e
de tantos outros países, com água de coco e maracatu? Não devíamos recebê-los
ao som de violas e rodas de coco? Não deveríamos aplaudir aqueles que quisessem
ficar e ajudar na construção da grande nação, da mesma forma que fizeram os
nossos avós, que aqui chegando, casaram-se com gente de todas as raças e nos
fizeram mestiços e multiculturais? Não somos nós os herdeiros de mil e um povos
e de mil uma culturas?
O que aconteceu no Ceará neste
triste episódio ficará registrado nos anais da nossa história como o Dia da
Vergonha, o dia em que o fascismo triunfou sobre a solidariedade e a
universalidade que tem marcado, por definição cultural, o espírito do povo
cearense e brasileiro.
Acredito que os médicos
cearenses, humanistas e éticos, farão uma “Carta de Desagravo”, pedindo
desculpas aos colegas estrangeiros que aqui chegaram. Da minha parte, como
cidadão cearense, torno público que não compartilho com esta vileza e, em meu
próprio nome, peço desculpas aos médicos estrangeiros hostilizados, acreditando
que este pedido de desculpas é o pedido de milhões de cearenses e de
brasileiros que padecem nos mais profundos sertões, praias, florestas e
montanhas, sem médicos e solidariedade nenhuma por parte daqueles que deviam
ter como missão o sagrado dever do amor e da solidariedade, acima da sede do
lucro e da ascensão social.
Para concluir este meu simples
ato de indignação, cito um fato cotidiano. Discutia o grave acontecimento com
um motorista de táxi e dizia a ele que iria escrever sobre o assunto. Do alto
da sua sabedoria, o motorista de táxi, aconselhou-me: “Escreva não. Um dia o
senhor pode chegar em um hospital, cair nas mãos de um deles e eles podem
desligar os aparelhos”. Eu que preparava-me para fazer duras acusações contra
os “vândalos vestidos de branco”, terminei defendendo-os, quando de pronto
respondi: “Nisto eu não posso acreditar! Sei sim, que estes médicos que
hostilizaram os médicos estrangeiros, com vaias e xingamentos, agem como
moleques, como xenófobos pequeno-burgueses e corporativistas, mas não acredito
que as faculdades de medicina do meu país estejam também forjando potenciais
assassinos”. Acreditar nisto seria descrer não apenas da medicina, mas da sua
deontologia, como princípio e garantia de regulação ética das normas que
regulam esta profissão, cunhada, desde os seus primórdios, para proteger e
salvar a vida humana.
De qualquer forma, cito o fato,
para que estes equivocados “médicos-moleques” saibam qual o conceito que
terminaram por cravar no coração das pessoas, com tal espetáculo público de
despreparo profissional.
Fonte: Outras
Palavras
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