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domingo, 22 de setembro de 2013

Brasileira pobre morre por aborto inseguro a cada 2 dias no Brasil

A cada dois dias, uma brasileira (pobre) morre por aborto inseguro, um problema de saúde pública ligado à criminalização da interrupção da gravidez e à violação dos direitos da mulher

 Andrea Dip
Agência Publica

Na mesa de madeira em frente a porta de uma sala de audiências no Fórum criminal de São Paulo, repousa uma lista com os processos a serem julgados naquela tarde. Em alguns minutos, será a vez de Marta* ser absolvida sumariamente ou ir a júri popular e pegar até 4 anos de prisão, como explica a defensora pública Juliana Belloque, que atua a seu favor. A primeira folha do processo diz que Marta “provocou aborto em si mesma” e isso basta para condená-la, já que a prática é crime previsto pelo artigo 124 do Código Penal.
Mas, quem seguir lendo os autos, saberá que Marta tinha 37 anos, era mãe solteira de 3 filhos pequenos (com idades entre um e seis anos de idade), vinha de um histórico de abandono por parte dos pais das crianças (inclusive o da gravidez que interrompeu) e estava desempregada quando, em 2010, em um ato de desespero, comprou um remédio abortivo de uma prostituta por 250 reais, tirados de sua única fonte de sobrevivência – a pensão da filha. Descobrirá também que Marta é pobre, só completou o primeiro grau, e que morava com os filhos em um bairro afastado de São Paulo quando, três dias após introduzir o remédio na vagina (de forma incorreta, já que não tinha a quem pedir orientação), ainda não havia parado de sangrar e de sentir fortes dores, e por isso procurou o pronto atendimento de um hospital público de seu bairro.

(Divulgação)
O leitor ficará surpreso ou aliviado, dependendo de suas convicções, ao saber que a médica que a recebeu, imediatamente fez a denúncia à Policia Militar, explicando que retirou uma “massa amorfa” de seu útero, “provavelmente” uma placenta resultante de um aborto mal sucedido.
aborto brasil

“Não existe prova da gravidez, a única coisa é o depoimento desta médica dizendo que retirou uma quantidade grande de massa amorfa que ela avalia como placenta do útero dessa mulher, que chegou com um sangramento no hospital. Enquanto a mulher está hospitalizada essa médica chama a polícia militar e, enquanto ela está internada, a PM vai até a casa dela, sem mandato, e apreende um lençol sujo de sangue e um balde. Não tinha feto, medicamento, caixa, nada. Apenas um lençol sujo de sangue e um balde, em uma casa muito pobre. Com isso se instaura o inquérito policial. Quando ela é liberada, é levada até uma delegacia e existe uma confissão extrajudicial ao delegado. Essa mulher nunca é ouvida em juízo para confirmar ou não essa confissão” resume a defensora Juliana enquanto esperamos.

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Marta aceitou assinar uma confissão para obter a suspensão condicional do processo – prevista para penas mínimas de até um ano, quando o réu é primário e não responde por outro processo criminal, e que suspende o caso por um período de 2 a 4 anos, desde que o acusado cumpra algumas condições como comparecer periodicamente em juízo para atualizar endereço, justificar ocupação lícita, prestar serviços à comunidade entre outras – mas ela deixou de cumprir essas condições e o processo seguiu o curso. Quando pergunto à defensora se ela acredita que a mulher possa ir realmente a júri popular, ela diz que nunca viu isso acontecer mas que não é impossível. E explica que pretende mostrar ao juiz que o processo é marcado por violações, como a falta de provas, já que não há feto, o testemunho extraoficial porque ela não chegou a ser ouvida em juízo, a denúncia feita por uma médica que quebrou o sigilo de sua relação com a paciente, as buscas sem mandato, a falta de uma perícia e de um exame de corpo e delito. “As mulheres costumam assinar a confissão porque chegam muito fragilizadas e querem se livrar daquilo o mais rápido possível. Os casos que chegam para nós são bem parecidos: mulheres pobres, sozinhas, com filhos, sem antecedentes criminais, que praticam o aborto inseguro em um momento de desespero e que são denunciadas pelos profissionais que as atendem nos hospitais públicos. Os companheiros não existem, nem aparecem seus nomes nestes processos” diz a defensora. Como Marta está desaparecida, a audiência aconteceria sem sua presença, mas foi adiada porque a médica, única testemunha de acusação, estava de férias. Marta ali é um número, um crime que será julgado em alguns meses. Mas também é uma em um milhão de mulheres que, apesar da lei, da religião e da sua opinão pessoal, buscam o aborto clandestino no Brasil todos os anos. Com sorte, fugiria da pior estatística: a de que a prática insegura mata uma mulher a cada dois dias no país e é a 5a causa de morte materna.

1 milhão de abortos clandestinos e 250 mil internações por complicações por ano


“A gente não classifica um problema como sendo de saúde pública se ele não tiver ao menos dois indicadores: primeiro não pode ser algo que aconteça de forma rara, tem de acontecer em quantidades que sirvam de alerta. E precisa causar impacto para a saúde da população. Nós temos esses dois critérios preenchidos na questão do aborto no Brasil mas essa é uma ótica nova” explica o ginecologista e obstetra representante do Grupo de Estudos do Aborto (GEA) Jefferson Drezett, que há mais de 10 anos coordena um serviço de abortamento legal no país. “Só para contextualizar nós temos hoje, segundo a OMS, 20 milhões de abortos inseguros sendo praticados no mundo. Por aborto inseguro, a Organização entende a interrupção da gravidez praticada por um indivíduo sem prática, habilidade e conhecimentos necessários ou em ambiente sem condições de higiene. O aborto inseguro tem uma forte associação com a morte de mulheres – são quase 70 mil todos os anos. Acontece que estas 70 mil não estão democraticamente distribuídas pelo mundo; 95% dos abortos inseguros acontecem em países em desenvolvimento, a maioria com leis restritivas. Nos países onde o aborto não é crime como Holanda, Espanha e Alemanha, nós observamos uma taxa muito baixa de mortalidade e uma queda no número de interrupções, porque passa a existir uma política de planejamento reprodutivo efetiva”.

O Uruguai, que descriminalizou o aborto em outubro de 2012, também tem experimentado quedas vertiginosas tanto no número de mortes maternas quanto no número de abortos realizados. Segundo números apresentados pelo governo, entre dezembro de 2012 e maio de 2013, não foi registrada nenhuma morte materna por consequência de aborto e o número de interrupções de gravidez passou de 33 mil por ano para 4 mil. Isso porque, junto da descriminalização, o governo implementou políticas públicas de educação sexual e reprodutiva, planejamento familiar e uso de métodos anticoncepcionais, assim como serviços de atendimento integral de saúde sexual e reprodutiva.
(Divulgação)

Jefferson coloca ainda que atualmente no Brasil, acontecem cerca de um milhão de abortos provocados e 250 mil internações para tratamento de complicações pós abortamento por ano. “É o segundo procedimento mais comum da ginecologia em internações. Por isso eu digo: o aborto pode ser discutido sob outras óticas? Deve. Não existe consenso sobre este tema e nunca existirá porque há um feto. Mas não há como negar que temos aí um problema grave de saúde pública e que a lei proibitiva não tem impedido que as mulheres abortem mas tem se mostrado muito eficaz para matar essa mulheres”.

Mulher pobre tem risco multiplicado por mil no aborto inseguro


“O aborto não é um bem a ser alcançado. Nenhuma mulher acorda um dia e diz ‘vou engravidar daquele canalha que vai me abandonar, só para ter o prazer de provocar um aborto’. As mulheres buscam no aborto soluções para situações extremas. Mas é importante dizer que existe uma diferença entre aborto clandestino e inseguro. O aborto clandestino não é necessariamente inseguro. Ele pode ser feito em clínicas clandestinas porém com todas as condições de higiene, por médicos treinados, quando a mulher tem dinheiro para pagar. A diferença entre as chances de morrer em um aborto inseguro e apenas clandestino é de 1000 vezes. Então acaba se criando uma desigualdade social, uma perversidade porque uma mulher que tem um nível socioeconômico bom, as mulheres dos melhores bairros da cidade de SP, têm acesso a clínicas clandestinas, que não são legalizadas mas são seguras. Esse aborto pode custar mais de dois mil dólares. Enquanto um aborto inseguro pode custar 50 reais” diz o ginecologista. Apesar das diferenças de tratamento, a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada em 2010 pela Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, mostra que, aos 40 anos, uma em cada cinco mulheres já fez ao menos um aborto. E que o perfil é o da mulher comum em idade reprodutiva. “Não existe surpresa nisso. São mulheres de diversas classes sociais e religiões se arriscando porque a clandestinidade oferece risco. As diferenças mais uma vez estão no fato de que quanto mais pobre essa mulher, mais riscos ela corre por causa dos métodos aos quais tem acesso” explica a autora da pesquisa Débora Diniz. Esta leitura se confirma também no relatório feito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro em parceria com a organização internacional IPAS “Mulheres incriminadas por aborto no RJ: diagnóstico a partir dos atores do sistema de justiça”, que pesquisou casos de criminalização de mulheres por aborto e entrevistou juízes, desembargadores, promotores e atores do judiciário em geral e concluiu que: “é muito mais comum que uma mulher seja incriminada por aborto quando ela utiliza um método abortivo ‘caseiro’ (remédios obtidos no mercado paralelo e outros métodos) do que quando ela recorre à clínica. Estes casos são justamente aqueles nos quais o procedimento dá errado (a mulher reage à medicação) e cai no sistema público de saúde; lá, um servidor público (em alguns casos o médico do posto, em outros um policial militar de plantão) a encaminha para a polícia.

Este aspecto demonstra claramente o recorte sócio-econômico dessa modalidade de criminalização: a maior parte das mulheres que utiliza os serviços públicos de saúde é pobre, muitas das quais desempregadas ou com ocupações de baixa remuneração”. O relatório compara ainda duas sentenças dadas a mulheres diferentes: uma mulher de classe média, professora, mãe de dois filhos que foi presa após realizar aborto em clínica clandestina e teve a fiança arbitrada em 300 reais e outra mulher sozinha, que trabalhava com prostituta e mal sabia ler e escrever e teve a fiança arbitrada em 3 mil reais. “Em geral, o perfil da mulher se repetia: pobre, pouco instruída, moradora de periferia. Contudo, este não é necessariamente o perfil das mulheres que fazem aborto, mas sim o perfil das mulheres que são presas por terem feito aborto. Deste aspecto percebe-se uma grande diferença. O sistema captura apenas algumas mulheres, as que necessitam se submeter à saúde pública. Aquelas que encontram outras soluções privadas, não são atingidas. Um claro retrato do recorte socioeconômico”.
(Divulgação)

Quem dá o pão dá o castigo


Mariana* tinha 20 anos quando chegou ao pronto atendimento de um hospital particular de seu convênio médico em São Paulo com um aborto espontâneo e acabou sendo tratada como criminosa. “Estava com dois meses de gestação, acordei uma noite com muita cólica e sangramento e corri para o hospital. Apesar de não estar mais com o pai do bebê e da minha família ter me dado a opção de fazer o aborto em uma clínica, minha religião me fez desconsiderar essa hipótese” conta. “Assim que cheguei ao hospital, sozinha, e comuniquei à recepcionista o que estava acontecendo, senti a conversa mudar. Ela passou a me tratar com descaso e mesmo passando por uma hemorragia, tive de esperar muito mais tempo do que os outros para ser atendida”. Mariana lembra que assim que entrou no consultório, o médico perguntou se ela havia provocado o aborto e, diante da negativa, continuou perguntando seguidas vezes. “Antes da curetagem também perguntou muitas vezes se eu não havia mesmo usado nenhuma droga naqueles dias. Ele disse que eu estava com um aborto retido e que estava com uma grave infecção no útero. Fiquei vários dias internada no andar da maternidade e todas as vezes que saia no corredor, de cadeira de rodas, todas as mães, enfermeiras e atendentes me olhavam com ar de reprovação. Já estava triste por ter perdido o bebê e ainda tive de passar por isso mesmo sem ter provocado nada”.

Para ler a matéria por completo, clicar Pragmatismo Político

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