1 de setembro de
2013
Estranha esta dita esquerda que, entre torcionários, pensa que escolher um deles é condição de progresso social. Por Passa Palavra
A esquerda e a defesa do regime sírio
À medida que se aproxima a
tenebrosa perspectiva de uma intervenção militar dos EUA na Síria, cresce
também o debate político sobre a situação no terreno. No que alguns
convencionam denominar-se de esquerda, o apoio deveria ser dirigido para a
defesa no imediato de Bashar al-Assad (veja aqui). Neste modo de ver, seria
preferível defender a hipotética soberania de um povo contra a invasão externa.
Esta maneira de colocar a
questão parte de premissas equivocadas.
Em primeiro lugar, o ponto de
apoio para parte significativa da esquerda defender o regime sírio é unicamente
o facto de ele ser antiamericano. Se o regime estivesse exatamente na mesma
situação em que se encontra hoje mas se fosse anti-russo ou antichinês, os
mesmos que hoje o defendem seriam os primeiros a clamar pela sua queda. Nessa
situação as forças islâmicas fanáticas que se encontram na oposição já seriam
politicamente aceitáveis para toda essa gente. Aliás, quando as forças armadas
francesas invadiram o Mali há uns meses atrás, a mesma esquerda que hoje levanta
o perigo do fundamentalismo islâmico era a mesma que, naquele caso, preferiu os
integralistas e fanáticos que, entre massacres, aspiravam a destruir o patrimônio de Tombuktu. Por isso é que o principal critério para toda essa
gente que se autoclassifica de esquerda é unicamente a potência imperialista
que lhes interessa apoiar ou atacar.
Em segundo lugar, é preciso que
a esquerda tenha atingido um enorme grau de miséria intelectual e política para
avaliar cada situação política como se de um produto geoestratégico se
tratasse. Nada na avaliação desta esquerda se baseia no antagonismo classista.
Pelo contrário, a avaliação dessa esquerda baseia-se unicamente na defesa dos
interesses políticos e geoestratégicos de uma determinada fracção das classes
dominantes contra outra facção rival. É isso que explica a tolerância abjecta
dessa esquerda relativamente ao regime sírio, um regime torcionário. Aqui, os
assadistas portugueses replicam com a tese de que o imperialismo
norte-americano também o é. Estranha esta dita esquerda que, entre
torcionários, pensa que escolher um deles é condição de progresso social…
Que fazer? Escolher entre
rivais capitalistas ou resgatar o espírito de Zimmerwald?
A prática desta esquerda
escuda-se na falácia de que perante dois contendores, mesmo que das classes
dominantes, devemos escolher um deles.
Ora, isto é falso por dois
motivos fundamentais.
Por um lado, porque basta
imaginarmos um mundo dominado por regimes políticos como o de Bashar al-Assad
para se perceber a involução que ocorreria: um mundo capitalista ainda mais
arcaico, permeado pela perseguição religiosa e política. Quem vive no Ocidente
rodeado de tecnologia e escreve que o atual regime sírio é preferível só por
ser antiamericano esquece que o modelo de sociedade oferecido pelo regime sírio
não difere do capitalismo em que vivemos. Aliás, consegue ainda ser muitíssimo
pior, mais autárquico e ainda menos tolerante.
Talvez fosse interessante que
os que do Ocidente escrevem maravilhas sobre o progressismo de al-Assad
tivessem vivido uns anos por aquelas bandas. Das três uma. Ou acabariam por se
opor ao regime. Ou sentiriam falta do conforto urbano e moderno que dizem
desprezar e regressariam a casa para continuar a mesma atividade que chamam de
revolucionária. Ou tornar-se-iam quadros ou apoiantes ativos do regime sírio no
terreno. Dado o irracionalismo em questão, esta última hipótese era capaz de
conquistar muitos adeptos na esquerda leninista e nacionalista portuguesa.
Mas se escolher entre dois
modelos opressivos já é um erro, escolher o pior deles só pode ser interpretado
como a concordância da esquerda leninista e nacionalista com a aplicação desse
modelo.
Por outro lado, a recusa de
apoiar qualquer um dos lados não é sinônimo de imobilismo.
Se assim fosse, os próprios
leninistas teriam de recusar o comportamento do seu pai fundador. Ora, perante
a Primeira Guerra Mundial, a esquerda internacionalista reunida em Zimmerwald
rejeitou apoiar os potentados britânico, russo e francês contra as monarquias
conservadoras alemã e austro-húngara. Essa foi a atuação de cada socialdemocracia
nacional, quando preferiu apoiar a classe dominante do seu país.
Apesar das enormes diferenças
entre Rosa Luxemburg e Lénine, ambos defendiam, naquele contexto específico de
1914-17, a mobilização dos trabalhadores contra os governos dos seus países
como a única forma de derrubar os militaristas de cada um dos lados. A sua
opção política assumia, assim, uma posição de classe contra a geoestratégia
nacionalista. Opção política que tinha razão de ser e que encontrou na atuação
dos trabalhadores europeus de então uma crescente base espontânea de atuação
contra a guerra. Ou, conforme a fórmula de Lénine que os próprios leninistas de
hoje recusam, transformar a guerra imperialista numa guerra civil. Por outras
palavras, transformar a guerra dos interesses geoestratégicos de rivais dentro
da classe dominante numa guerra em que os trabalhadores passam de um estado de
carne para canhão de um desses rivais, para um estado de mobilização
internacional e solidária.
Mais tarde, Lénine operaria uma
transmutação total de princípios e passaria a aplicar na relação da União
Soviética com a Turquia, o Irão, com sectores fascistizantes da Alemanha de
Weimar, etc. uma política idêntica à que condenou durante a Primeira Guerra Mundial.
Não é esse ponto que aqui nos interessa discutir, apenas mencionar que os
leninistas de hoje não mais têm qualquer contato com o internacionalismo e
apenas prosseguem as piores tendências da sua corrente política: o nacionalismo
e o primado geoestratégico sobre a compreensão da sociedade em termos
classistas.
Regimes como o de al-Assad (ou
como os de Kadhafi ou de Saddam Hussein no passado) são defendidos
acerrimamente por sectores que se colocam à esquerda porque são o resquício da
fusão de temas sociais veiculados pelo leninismo (nacionalizações e a
intervenção estatal na economia e na vida pública) com uma mundividência
orientada por princípios geoestratégicos (o antiamericanismo).
Autonomia de ação
Quase 100 anos depois, a
esquerda nacionalista e leninista conta com a sedimentação do pensamento
geoestratégico no seio dos trabalhadores e cremos que essa é uma das
explicações para que, no plano prático e político, sejam raríssimos os que
defendem uma perspectiva assente na ação autónoma da classe trabalhadora tanto
contra al-Assad como contra a intervenção militar norte-americana.
Um leninista de hoje – que
muito pouco difere de um quadro do regime de al-Assad – pode dizer cinicamente
que a inexistência de uma base prática na classe trabalhadora síria impede a
posição internacionalista. 100 anos de açambarcamento nacionalista e
geoestratégico das lutas sociais dos pobres e dos trabalhadores não são mera
consciência histórica. Implicam efeitos práticos terríveis e particularmente
visíveis em contextos extremos.
Mas se, neste momento, ainda
não se constituiu uma base prática alargada para desenvolver-se uma política
internacionalista (o site http://libcom.org/ tem citado a existência de forças
minoritárias com essa perspectiva de oposição simultânea a al-Assad e a
sectores fundamentalistas da oposição síria), isso não significa que ela seja
impossível. Quando a Primeira Guerra Mundial deflagrou em 1914 não foram poucos
os trabalhadores que então defenderam a intervenção bélica mas que, passados
três anos, começaram a derrubar regimes e a desencadear processos
revolucionários por essa Europa fora (França, Rússia, Alemanha, Finlândia,
Itália, Hungria, etc.). Quando parte importante da esquerda prefere desenvolver
o apoio ao regime sanguinário de al-Assad em vez de defender uma postura de
constituição da classe trabalhadora numa força autônoma quer relativamente aos
títeres sírios quer aos falcões imperialistas, então já não se trata apenas do
caso concreto sírio.
Como sempre, as posições sobre
um acontecimento político concreto nunca se lhe circunscrevem. Elas denunciam a
real substância do projeto político global de cada interveniente. Por isso não
é à toa que a esquerda nacionalista e leninista portuguesa defenda a colagem
dos trabalhadores ao regime de al-Assad. O seu projeto é, nas linhas gerais, o
mesmo: encostar a classe trabalhadora aos interesses da ascensão de uma nova
classe dominante ao poder. E que aqui, na Síria e em qualquer parte do mundo
praticaria uma orientação política transversal: a autarquia econômica o
militarismo e o estatismo extensível a toda a sociedade, a perseguição e a
eliminação política dos opositores.
Fonte: Passa Palavra
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