por
Alessandro Cristo
As
organizações Globo perderam
recurso administrativo contra uma cobrança de R$ 713 milhões do Fisco federal.
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda, que
julga contestações a punições fiscais, rejeitou argumentos contra autuação da
Receita Federal sobre aproveitamento de ágio formado em mudanças societárias
entre as empresas do grupo.
Em uma
delas, a Globo Comunicação e Participações S.A. (Globopar) foi condenada por
amortização indevida no cálculo do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e
da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL). A amortização dos tributos
usou o chamado ágio, valor embutido no preço de uma companhia vendida
equivalente à estimativa de sua rentabilidade futura. De acordo com a lei, a
empresa que compra outra tem direito de abater da base de cálculo de seus
tributos o valor que desembolsou a título de ágio. Mas a Receita Federal alega
que o valor da Globopar é artificial. A empresa espera análise de Embargos
interpostos e ainda pode recorrer à última instância do Carf.
O
desfecho do julgamento é esperado pela advocacia tributária por ser uma das
primeiras vezes que o Carf se debruça sobre a existência de efeito fiscal do
conceito contábil de patrimônio líquido negativo — origem da maior parte do
ágio em discussão no processo da Globo. A autuação se refere aos anos de 2005 a
2008, nos quais a empresa usou o ágio para pagar menos tributos. A Receita
Federal lavrou o auto de infração em dezembro de 2009, no valor de R$
713.164.070,48.
Foram
os advogados Carlos Alberto Alvahydo de Ulhôa Canto e Christian Clarke de Ulhôa
Canto, sócios do escritório Ulhôa Canto, Rezende e Guerra Advogados, os
responsáveis por defender a transação. Na impugnação, eles destacaram o uso do
patrimônio líquido negativo — chamado de “passivo a descoberto” — na construção
do ágio que gerou as deduções. Ou seja, a empresa compradora “adquiriu” o
prejuízo da comprada, assumindo sua dívida, e contabilizou essa aquisição como
investimento. “Não há norma, de natureza fiscal ou contábil, que determine o
expurgo do valor negativo do PL da investida na quantificação do ágio”, diz o
recurso dos advogados.
A
cobrança teve origem no Mandado de Procedimento Fiscal 0719000.2006.01200-5,
que entendeu como receita não informada o perdão de uma dívida de US$ 65
milhões (R$ 153 milhões, à época) concedido pelo banco americano JP Morgan, em
2005, à Globopar. A dívida total com instituições financeiras no exterior,
gerida pelo JP Morgan e avaliada em US$ 213,1 milhões (R$ 504,6 milhões, à
época), foi “adquirida” pela TV Globo, outra empresa do grupo, por 30% menos
que o valor original. O perdão foi considerado deságio. A TV Globo, então,
passou a ser credora e sócia da Globopar, por meio da compra das cotas de uma
terceira empresa, a Globo Rio Participações e Serviços Ltda., então
controladora da Globopar. A compra, por sua vez, se deu por meio do desconto de
uma dívida que a Globo Rio tinha com a TV Globo, fechando o círculo.
Construção circular
Adquirir
a Globopar era interessante por causa de seu prejuízo acumulado. O passivo a
descoberto da empresa, que em 2005 era de R$ 2,34 bilhões, poderia ser usado
para abater impostos de quem a comprasse. Em uma só tacada, ao comprar a Globo
Rio por R$ 65,5 milhões e assumir a dívida de R$ 2,34 bilhões da Globopar, a TV
Globo somou R$ 2,4 bilhões em ágio a amortizar. Em sua contabilidade, a TV
Globo lançou R$ 152 milhões, referentes ao perdão, como ágio a deduzir no
pagamento de impostos, atribuindo à quantia o título de “valor de mercado da
Globopar” — ou seja, um investimento. A compra da Globo Rio pela TV Globo e a
conversão do valor em ágio para a compradora foi auditada e confirmada em 2005
por laudo da Consef (Consultoria Econômico-Financeira), terceirizada.
Um mês
depois, a Globopar, antes endividada, agora recomeçava o ciclo, ao comprar sua
controladora, a TV Globo, em um negócio conhecido como “incorporação às
avessas”. A triangulação dava à Globopar um patrimônio líquido novamente
positivo, e agora com ágio a amortizar — já que o direito de abater impostos
adquirido pela TV Globo agora passava à sua compradora. A contabilização
parcelada dessa incorporação culminou, em outubro de 2010, no valor de R$ 2,28
bilhões em ágio a amortizar. Mas segundo o Fisco, esse ágio era formado nada
menos que pela aquisição, pela Globopar, de forma indireta, de suas próprias
ações.
Para a
Receita, embora os lançamentos tenham se baseado em “eventos reais”, foram
“operações legais apenas no seu aspecto formal”, o que configuraria um
planejamento tributário indevido. Isso porque, embora empresas diferentes
tenham uma adquirido a outra, todas pertenciam às mesmas pessoas. Roberto
Irineu Marinho, João Roberto Marinho e José Roberto Marinho eram sócios das
quatro empresas envolvidas no negócio: Globopar, TV Globo, Globo Rio e
Cardeiros Participações S.A. Assim, para a Receita, o crédito dedutível criado
pela transação foi artificial. “Como podemos perceber, operou-se um milagre
dentro da Globopar, que teve um PL [patrimônio líquido] negativo de R$ 2,34
bilhões transformado em PL positivo, de R$ 318 milhões, tudo isso no exíguo
prazo de 30 dias”, apontou a fiscalização. “A Globopar passou a desfrutar de um
ágio a amortizar que nada mais é que seu próprio patrimônio líquido negativo.”
Além
disso, a chamada “incorporação às avessas” é, para a Receita, abuso de direito,
como entendeu, em 2006, a Delegacia da Receita Federal de Julgamento no Rio de
Janeiro, conforme acórdão 10.007, que tratou de caso semelhante. A decisão diz
ser indedutível o “ágio de si própria” gerado em incorporações dessa natureza.
“Inúmeras decisões do Carf têm considerado que a operação realizada pelo
contribuinte precisa ter propósito negocial, ou seja, não é lícito realizar
operação de ‘incorporação às avessas’, com a consequente transferência do ágio,
simplesmente com o intuito de redução da carga tributária”, citou a
fiscalização ao analisar recurso da Globopar. “Todas as aquisições foram
efetivadas por intermédio de acertos de passivo existentes entre as empresas,
ou seja, não ocorreu transferência de numerário.”
A
empresa rebateu dizendo que o propósito não foi meramente evitar tributação. “O
longo processo de reestruturação da dívida da recorrente, que culminou com as
operações realizadas em 2005, ora em discussão, teve sempre um objetivo:
reunir, em uma única pessoa jurídica, o endividamento da recorrente e a
capacidade financeira da TV Globo”, defendeu-se. E criticou o assombro do Fisco
com a rapidez da transação. “A celeridade com que os atos societários foram
elaborados e os contratos celebrados é inteiramente neutra em termos fiscais.
Tivessem as operações societárias acontecido em um único dia ou ao longo de dez
anos, os efeitos fiscais seriam rigorosamente os mesmos. Por isso, tal fato
jamais deveria ter sido levado em conta pela fiscalização.”
Em
2007, foi a vez de a TV Globo ser intimada a justificar o ágio de R$ 2,4
bilhões. À Receita, a empresa respondeu que o valor se referia à “rentabilidade
futura da Globopar”, devido a “projeção dos resultados da sociedade para o
período de 2006 a 2014”.
Mas o
Fisco desconsiderou as deduções e exigiu o recolhimento da diferença de IR e
CSLL. A Receita entendeu como omissão de receita a realização do deságio de R$
152 milhões referente ao perdão da dívida bancária internacional. “Quando há
extinção de um passivo (obrigação), sem o desaparecimento concomitante de um
ativo, de igual ou superior valor, é inegável a ocorrência de um acréscimo
patrimonial. Portanto, o perdão (remissão) da dívida há de ser reconhecido como
receita, o que repercute no lucro líquido positivamente”, diz decisão da Turma
Julgadora na Delegacia de Julgamento da Receita no Rio.
O Fisco
também glosou a amortização do ágio com base na rentabilidade futura da
Globopar. “O ágio pago efetivamente equivale apenas a R$ 65 milhões, não sendo,
portanto, lícito considerar o valor do passivo a descoberto, isto é, R$ 2,4
bilhões”, diz a decisão.
Bem negativo
Ao
analisar o recurso da Globopar, a relatora na Turma, conselheira Edeli Pereira
Bessa, observou que, embora alegasse que o ágio tenha sido gerado por
transações sucessivas por meio de empresas dos mesmos sócios, o Fisco não negou
a existência do ágio, mas apenas contestou sua amortização na base de cálculo
dos tributos. No entanto, ela negou que haja a possibilidade de existir
patrimônio líquido negativo que dê origem a ágio aproveitável por empresa que
compra outra no vermelho.
Edeli
lembrou que as leis que disciplinam o assunto — a Lei 6.404/1976 (a Lei das
S.A.), o Decreto 3.000/1999 (o regulamento do Imposto de Renda) e o Decreto-lei
1.598/1977 — não tratam de patrimônio líquido com saldo devedor ou de ativo de
valor negativo. “Os dispositivos legais sempre adotam como referencial para
avaliação de investimentos os valores de patrimônio líquido, e nada mencionam
acerca dos procedimentos a serem adotados em caso de passivo a descoberto”,
mencionou. “É possível concluir que não existe, conceitualmente, patrimônio
líquido negativo. (…) É possível, portanto, interpretar que as leis, ao se
reportarem ao valor de patrimônio líquido como referência para cálculo da
equivalência patrimonial, tinham em conta, apenas, situações nas quais o
investimento apresenta um valor patrimonial positivo.”
Por
fim, a relatora arrematou com argumento lógico: “Admitir que um investimento
apresente valor contábil negativo significa reconhecer a responsabilidade da
investidora pelas dívidas da investida para além do capital nela aplicado.” O
entendimento é compartilhado pelo especialista em Direito Societário Modesto
Carvalhosa, citado no voto de Edeli. No livro Comentários à lei das sociedades
anônimas (4ª edição, editora Saraiva), o advogado e professor afirma que “se a
empresa investida tiver prejuízos que transformem seu patrimônio líquido em
número negativo (passivo a descoberto), a conta de equivalência na sociedade
investidora pode, na pior das hipóteses, assumir o valor zero”. Em sua opinião,
se houver ágio ainda não amortizado, ele deverá ser baixado e contabilizado
como prejuízo. “Isso porque ativo negativo não existe.”
Na
prática, para a conselheira, não há ágio — direito utilizável pela empresa
compradora — enquanto a sociedade comprada está com passivo a descoberto, salvo
o equivalente ao valor do investimento feito, o efetivamente pago pela
aquisição. A situação muda se a investida tiver patrimônio positivo novamente.
Fundamentos do recurso
Ao
contrário do que afirmou o Fisco, para a defesa do grupo Globo, ao assumir a
responsabilidade pelo passivo a descoberto da Globopar, a TV Globo ganhou
direito ao um “ágio indireto” equivalente ao passivo a descoberto da companhia
adquirida, que deveria ser somado ao ágio direto — custo da aquisição de sua
participação na sociedade comprada.
Quanto
à possibilidade contábil de existência do patrimônio líquido negativo, a
empresa citou a Resolução 847/1999 do Conselho Federal de Contabilidade, que
trata de nomenclaturas contábeis e diz, em seu item 3.2.2.1: “No caso em que o
valor do patrimônio líquido for negativo, [o patrimônio líquido] é também
denominado de passivo a descoberto”. O texto, que reconhecia a possibilidade de
existência de PL negativo, foi alterado posteriormente pela Resolução
1.049/2005 do CFC, que excluiu essa possibilidade. A nova norma, porém, só veio
depois que as operações societárias na Globo foram registradas.
A
empresa protestou ainda contra a incidência de juros sobre a multa de ofício
aplicada na autuação.
Contábil x Fiscal
O
conselheiro Carlos Eduardo de Almeida Guerreiro, que declarou voto no acórdão
do Carf, também não aceitou os argumentos da empresa. Segundo ele, não existe o
tal “ágio indireto”. “A pretensão do contribuinte de considerar como ágio
indireto o valor correspondente ao ‘passivo a descoberto’ é uma criação do
contribuinte sem amparo na lei”, afirmou em seu voto. “O fato de a adquirente
assumir responsabilidade pelo ’passivo a descoberto’ da adquirida pode implicar
apenas registro contábil de provisão (que inclusive será não dedutível). Mas
nunca implicará registro de ágio, nem mesmo sob criativa a denominação de ‘ágio
indireto’.”
Guerreiro
ainda refutou o argumento que se baseou no reconhecimento da existência de PL
negativo pelo órgão contábil máximo do país. “As regras de contabilização ou as
formas de contabilização admitidas ou sugeridas pela CVM ou CFC são corretas,
ou adequadas, apenas para fins contábeis. Porém, elas não podem determinar os
efeitos fiscais. Isso porque, salvo menção expressa da legislação tributária,
as regras de contabilização e as formas de contabilização são totalmente
irrelevantes para determinar efeitos fiscais.” E desafiou a lógica do argumento
da empresa, ao afirmar que “se acaso a adquirente pode perder algo além de sua
participação acionária é porque assumiu dívidas da adquirida. Mas isso nada tem
ha ver com a aquisição do investimento”.
O voto
do conselheiro Benedicto Celso Benício Junior divergiu parcialmente dos
anteriores. Ele concordou que não pode haver ágio sobre passivo a descoberto,
mas entendeu que outros aportes além dos feitos diretamente pela sociedade
investidora — no valor de R$ 65,5 milhões — deveriam entrar na conta do ágio.
“Há
muito tempo, existia o entendimento de que o ágio e o deságio somente surgiam
quando havia uma aquisição das ações de uma determinada empresa (transação
direta entre vendedor e comprador). Com a evolução dos conceitos, tornou-se
consenso de que o ágio ou o deságio também podem surgir em decorrência de uma
subscrição de capital”, afirmou. Os outros aportes seriam, para o conselheiro,
R$ 1,3 bilhão referentes a subscrição de capital e absorção de prejuízos de R$
463 milhões. Assim, o ágio utilizável para dedução de impostos seria de R$ 1,8
bilhão.
Por
fim, os argumentos da Globopar foram rejeitados por maioria de votos. Os
conselheiros acrescentaram ainda que multa e tributo compõem a obrigação
principal devida pelo contribuinte e, portanto, podem ambos sofrer acréscimo de
juros. Essa decisão se deu apenas pelo voto de qualidade do presidente da
Turma, já que houve empate.
Participaram
da votação os conselheiros Valmar Fonseca de Menezes, presidente da Turma, José
Ricardo da Silva (vice-presidente), Edeli Pereira Bessa (relatora), Benedicto
Celso Benício Júnior, Carlos Eduardo de Almeida Guerreiro e Nara Cristina
Takeda Taga.
Falta de regras
Para a
tributarista Mary Elbe Queiroz, presidente do Instituto Pernambucano de Estudos
Tributários, é necessário que uma lei esclareça as regras para o aproveitamento
do ágio, uma vez que no Brasil ainda não existe uma como há em outros países.
Atualmente,
está em discussão no Poder Executivo texto a ser proposto ao Congresso para
disciplinar a matéria. Mas a intenção do Fisco federal é acabar com a possibilidade
de se deduzir ágio.
Alessandro
Cristo é editor da revista Consultor Jurídico
Fonte: Revista
Consultor Jurídico, 16 de setembro de 2013
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