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quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Um reformismo quase sem reformas: o governo Lula no Brasil, uma análise em perspectiva histórica (2003/2010)


Valerio Arcary*
                                                
Quem a si próprio elogia, não merece crédito.
      Sabedoria popular chinesa

Não se deve elogiar o dia antes da noite.
Sabedoria popular alemã

Se você está em uma mesa de pôker e não sabe quem é o otário, é porque o otário é você.
                                            Sabedoria popular brasileira

       A análise crítica do significado do governo Lula é complexa, principalmente, por três razões. Primeiro, porque a eleição de um líder de origem operária foi uma experiência inusitada na história do Brasil. Segundo, porque o governo Lula se encerrou com elevadíssima popularidade, tanto dentro do país como na esfera internacional, o que foi excepcional na história do Brasil. Terceiro, porque o governo Lula é história recente, e a ausência de distanciamento dificulta a perspectiva. A hipótese deste artigo é que, contrariando a percepção dominante no tempo presente, o trabalho de investigação histórica irá diminuir o balanço do governo Lula e revelar que houve muito mais continuidades do que rupturas com os governos anteriores.
       Na verdade, em certa medida, a eleição de um líder operário grevista foi raríssima, até na história mundial. Apesar do seu peso social e sua longevidade histórica, muito raramente as lideranças do proletariado conquistaram a luz da ribalta do palco político. Seus interesses foram representados mais freqüentemente por lideranças com origem social na classe média.
      Na virada do século XX para o XXI, pela primeira vez, a maioria da população mundial deixou de viver em áreas rurais e se urbanizou. Entretanto esta transformação demográfica relativamente recente nos países periféricos não deve ocultar que, nos últimos cento e cinquenta anos, o movimento operário foi o mais ativo e organizado movimento social das sociedades contemporâneas. A luta pela emancipação dos trabalhadores tem sido a maior das forças de impulso das lutas de classe. O projeto socialista foi o seu programa, com todas as vicissitudes do estalinismo, e da adaptação da socialdemocracia à gestão do capitalismo. No Brasil do início dos anos oitenta, o PT abraçou esta simpatia quase intuitiva da classe trabalhadora pelo igualitarismo social. Lula foi o porta-voz desta esperança. [1]
      Um presidente com origem social na classe trabalhadora, eleito por um partido de esquerda, em um país capitalista periférico, apenas uma década e meia depois da restauração capitalista no Leste Europeu, foi um acontecimento atípico. Em outras palavras: do ponto de vista da dominação capitalista foi uma anomalia. Mas não foi uma surpresa. A trajetória do Partido dos Trabalhadores como partido de oposição eleitoral aos governos nacionais, em pouco mais de duas décadas, o credenciava diante do povo, e Lula se consolidou nesse processo como a inquestionável liderança do partido.
      Mais importante, todavia, Lula conquistou a confiança da imensa maioria da vanguarda operária e popular, e dos trabalhadores dos setores mais organizados: uma força militante de algumas centenas de milhares de ativistas motivados. A proeminência de Lula foi uma expressão da imponente potência social do proletariado brasileiro e, paradoxalmente, ao mesmo tempo, de sua impressionante inocência política. O proletariado o projetou quando assumiu o protagonismo da luta final contra a ditadura, deslocou a velha burocracia dos sindicatos, e apoiou a construção do PT e da CUT [2].
       Mas a classe trabalhadora, apesar de uma vanguarda ativa que pressionou seriamente o PT e a CUT durante uma década de ascenso nos anos 1980, não foi capaz de manter o controle sobre as suas organizações e os seus líderes, depois da inversão da correlação de forças entre as classes em 1995. [3]
      A derrota da greve dos petroleiros, um dos setores mais fortes do proletariado, incidiu na consciência de forma devastadora. Na hora do refluxo das lutas sindicais, o impacto da estabilização da moeda, e da vitória eleitoral burguesa com a posse de Fernando Henrique Cardoso abriu uma etapa de estabilização do regime democrático, dez anos depois do fim da ditadura. Sem vigilância, o aparato burocrático dos sindicatos agigantou-se e se deformou, e o aparelho do PT se adaptou ao regime.
       Carismático, Lula uniu um dom excepcional de oratória ao gênio político. Líder intuitivo e inteligente demonstrou capacidade de improvisação espetacular em situações adversas. É verdade que Lula conquistou a sua liderança assumindo o papel de principal porta-voz das reivindicações populares nos anos 1980/90. Sua liderança foi uma das refrações da acelerada urbanização e industrialização. Foi, também, expressão de proletariado jovem, concentrado, sem experiência política, recém deslocado dos confins miseráveis das regiões mais pobres e semi-letrado. [4]
     
Lula na presidência: uma refração do peso social do proletariado, mas não só

       Não obstante, seria superficial concluir que o lugar que ocupou nos últimos trinta anos foi resultado somente de seus talentos ou da sorte. A posição privilegiada de porta-voz das aspirações populares foi produto, também, do reforço de sua figura pela própria burguesia, quando ficou claro, durante a Constituinte de 1986/88, que não era uma ameaça ao regime democrático em formação.
         A classe dominante brasileira contribuiu para o reforço de sua autoridade oferecendo-lhe uma visibilidade política crescente diante de seus potenciais rivais, desde os anos oitenta. A burguesia brasileira confirmou a sua habilidade política assimilando Lula e o PT como a oposição eleitoral que o regime democrático necessitava como válvula de escape. Lula foi, portanto, conscientemente poupado, sobretudo depois de chegar ao poder, de ataques diretos mais contundentes, o que reforçou sua imagem. O seu amadurecimento foi elogiado pelas lideranças mais lúcidas que confessaram respeito, e até gratidão pela função que cumpriu como garantia da segurança do regime democrático. Lula se afirmou como a figura política mais importante do país desde Getúlio Vargas.[5]
[...]
Acontece que a história ensina que o passado era um campo de possibilidades. Há sempre mais do que um só caminho. Mas a história tem poucos estudantes, como escreveu Gramsci.

Para ler o artigo por completo, clicar AQUI.

*Professor do IF/SP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia) e doutor em História pela USP.


[1] Luiz Inácio Lula da Silva, conhecido como Lula, foi operário metalúrgico e sindicalista. Foi eleito presidente do Brasil em 2002, cargo que exerceu até o final de 2010. Foi o sétimo dos oito filhos de um casal de lavradores analfabetos que vivenciaram a fome a miséria na zona mais pobre de Pernambuco no Nordeste do país. Em 1966 foi admitido nas Indústrias Villares, uma grande empresa metalúrgica de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista. Em 1972, foi eleito como 1º secretário do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Ao ser eleito, ficou à disposição do sindicato, cessando suas atividades de operário. Foi eleito presidente do mesmo sindicato em 1975. Por liderar as greves dos metalúrgicos do ABC no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, Lula foi preso, cassado como dirigente sindical e processado com base na Lei de Segurança Nacional. Foi a liderança operária mais importante da luta final contra a ditadura militar e um dos fundadores do PT (Partido dos Trabalhadores) em 1980. Concorreu à presidência da República em 1989 na primeira eleição direta desde 1960, e surpreendeu ao conseguir passar ao segundo turno contra Fernando Collor (que foi eleito, finalmente, em uma coligação de centro direita), derrotando Leonel Brizola do PDT (Partido Democrático Trabalhista). Concorreu nas eleições de 2004 e 2008 contra Fernando Henrique Cardoso do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) e foi derrotado. Venceu as eleições de 2002 contra José Serra do mesmo PSDB. Mais informações biográficas podem ser encontradas em: http://www.institutolula.org/ Consulta em 28/11/2012.
[2] O contexto no final dos anos setenta era de luta contra a ditadura militar no poder desde 1964. Somente um partido, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), um partido dirigido por representantes da burguesia liberal, no interior do qual atuavam os dois Partidos Comunistas (o maior o pró-soviético, o outro pró-Albânia, nesse momento) era tolerado pelo regime ditatorial. Historicamente, os partidos operários estiveram na legalidade no Brasil - como o PCB (Partido Comunista Brasileiro) entre 1945/48 - só em períodos muito breves de poucos anos. Ao ser fundado o PT desafiava a ditadura e ameaçava o monopólio do MDB como oposição legal. O PT surgiu da confluência de cinco tradições políticas diferentes que se identificaram com o projeto de fundar um partido político legal que deveria ser a expressão independente dos trabalhadores. A primeira, e mais importante, destas  componentes foram os dirigentes sindicais dos metalúrgicos, bancários, professores das redes públicas, petroleiros, entre outros setores mais organizados do proletariado. A segunda foram os militantes da Igreja, na sua maioria católicos ligados à Teologia da Libertação, mais ativos em movimentos populares urbanos de tipo barrial. A terceira foram os militantes sobreviventes das organizações que se engajaram na luta armada contra a ditadura entre 1964 e 1977. A quarta foram os intelectuais de esquerda socialdemocratas que imaginaram possível um partido reformista à semelhança do Labour Party inglês, ou até do PCI (Partido Comunista Italiano). A última foram três organizações trotskistas que, embora ingênuas e jovens, pareciam muito maiores do que efetivamente eram. O PT surgiu rejeitando as tradicionais lideranças do sindicalismo burocrático oficial, tolerado pela ditadura.
[3] Nos anos oitenta surgiu uma vanguarda ampla de algumas centenas de milhares de militantes jovens, em sua ampla maioria estudantes e sindicalistas. Essa militância foi decisiva para a construção do PT e da CUT. Essa vanguarda foi muito ativa até 1995. A partir da derrota das eleições de 1994, e da greve dos petroleiros de 1995, a maioria deste ativismo se desmoralizou. A imensa maioria abandonou a militância. Uma grande parte dos que permaneceram ativos, organizou-se nas diferentes correntes internas do PT, predominantemente na corrente lulista liderada por José Dirceu, e profissionalizou-se nas dezenas de milhares de cargos disponíveis nos gabinetes parlamentares ou dos governos locais.
[4] O censo de 2010 informou que o Brasil tinha 190 milhões de habitantes, dos quais 30 milhões nas áreas rurais, portanto, cerca de 85% da população urbanizada. A dinâmica interna da migração do campo para a cidade foi especialmente intensa entre 1950/80. A população economicamente ativa foi estimada em 95 milhões e a classe operária representa algo em torno de 15 milhões. A taxa de fecundidade no Brasil caiu, aceleradamente, de 2,38 filhos por mulher em 2000 para 1,90 em 2010, mas era de mais de 6 filhos por mulher em 1950. O nível de instrução da população aumentou: a escolaridade média subiu de três anos de escola em 1980 para 7,3 anos em 2010. O percentual de pessoas com pelo menos o curso superior completo aumentou de 4,4% para 7,9%. Dados disponíveis: http://www.ibge.gov.br/home/ Consulta em novembro de 2012
[5] Getúlio Vargas, (1882/1954) foi o mais influente presidente da República do Brasil no século XX. Governou em duas etapas distintas. A primeira de 15 anos ininterruptos, entre 1930/1945, e a segunda entre 1950/54. Vargas foi o líder civil da “Revolução de 1930”, uma insurreição militar que pôs fim ao regime da “República Oligárquica”, um regime de alternância entre as burguesias agrárias de São Paulo e Minas Gerais que tinha entrado em crise. Entre 1937 e 1945, durante o Estado Novo, implantado após um auto-golpe de Estado, dirigiu um regime ditatorial de tipo fascistizante. Getúlio voltou a governar o Brasil de 1951 até 1954, quando se matou. Nesta segunda etapa, Vargas foi hostilizado pelas frações burguesas majoritárias alinhadas, incondicionalmente, com os EUA, da mesma forma que Péron na Argentina. O longo regime bonapartista de Vargas foi contemporâneo  da espetacular transformação do Brasil agrário tardio na mais industrializada economia e urbanizada sociedade do capitalismo periférico.

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