Em assembleia com presença de delegação do poder público, disse
Otoniel Guarani: “A gente sofre violência; as mulheres, estupro”. Nesse
momento, mulheres e homens indígenas se levantaram e encararam o governo
Por Ruy Sposati, no CIMI
6 DE DEZEMBRO DE 2012
Mais de 300 Guarani e Kaiowá,
reunidos no Aty Guasu – grande assembleia dos povos Guarani do Mato Grosso do
Sul – concluíram o encontro declarando às autoridades brasileiras: “não
aceitaremos mais promessas vazias”. Os indígenas estiveram reunidos no
município de Douradina, entre os dias 28 de novembro e 2 de dezembro na aldeia
Panambi.
Com representação de todos os
tekoha - “o lugar onde se é” Guarani, seja aldeia, retomada ou acampamento -,
os indígenas fizeram duras críticas aos poderes executivo, legislativo e
judiciário brasileiros, sintetizadas no documento final do encontro. Para eles,
os Guarani e Kaiowá vivem um contexto de massacre silencioso que “banha nossas
terras apenas com o nosso sangue”, acusando que “este estado de genocídio é
reforçado pelo governo brasileiro”.
A assembleia Guarani culminou
com a visita de uma delegação do poder público composta pela presidência da
Fundação Nacional do Índio (Funai) e da Secretaria Especial de Saúde Indígena
(Sesai), representantes do Ministério da Justiça, da Cultura e da Agricultura,
Polícia Federal e Força Nacional, além da Polícia Civil de Dourados e de
parlamentares do Mato Grosso do Sul e da Câmara dos Deputados.
“Queria deixar a minha palavra
aos três poderes: que ouçam o nosso grito. Nesta terra está um pedaço da nossa
carne. Nessa terra aqui está o sangue dos nossos antepassados, os ossos das
lideranças interrompidas. Essa é a terra que nós queremos”, falou Oriel
Benites, de Limão Verde.
Dezenas de relatos das
comunidades sobre as violências e ameaças sofridas pelos Guarani e Kaiowá foram
minuciosamente repetidos pelos indígenas aos membros do governo. Quando falavam
das retomadas e dos territórios de seus ancestrais, os Guarani jogavam terra
nos pés dos representantes do governo. Quando falavam dos mortos, abriam banners
enormes com fotografias de lideranças assassinadas e cujos processos judiciais
estão todos parados ou já prescreveram.
“A gente tá ameaçado. A gente
sofre violência; as mulheres, estupro”, disse Otoniel Guarani, liderança do
Conselho Continental da Nação Guarani à delegação governalemental. Naquele
instante, os indígenas ameaçados e todas as mulheres presentes no encontro se
levantaram e encararam o governo. Otoniel continuou: “nós estamos falando isso
cara a cara pra vocês verem. Nós não podemos mais esconder nossa cara”.
Governo na corda bamba
A vinda da gigantesca comitiva
do governo federal não foi suficiente para convencer os Guarani e Kaiowá de que
o poder público está interessado em resolver o seu problema. “Nós achávamos que
vocês iam nos trazer aqui propostas concretas”, disse Oriel à delegação que
visitou o Aty Guasu.
“Nós votamos em vocês, nós
elegemos vocês. E agora parece que vocês querem acabar com a soberania
Guarani”, disse a liderança Ládio Veron à delegação.
“Já tá passando já. A gente não
confia muito. Um dia, nossos antepassados confiaram. A gente não confia mais”,
disse Elpídio, liderança Guarani de Potrero Guasu, à presidenta da Funai. “Eu
já avisei o governo que eu ia retomar a minha terra. Eu vou voltar lá pra
Potrero onde está os meus avós. Nós vamos fazer a retomada. Vocês tem que fazer
a lei pra resolver isso. Porque a gente vai retomar a terra”. Em seu
depoimento, Elpídio também expôs relatos dos mais antigos sobre parentes
Guarani Nhandeva mortos pela ditadura militar.
Os indígenas cobraram do
governo o cumprimento das obrigações constitucionais. “O governo brasileiro
somente faz algo concreto para nos proteger quando há grande repercussão na
imprensa e pressão da sociedade – e não por obrigação constitucional, como
deveria ser”, declararam os Guarani e Kaiowá no documento final do Aty Guasu,
entregue aos representantes do poder público junto das cartas das comunidades.
Indenização para fazendeiros
Como solução aos problemas
fundiários no Mato Grosso do Sul, o governo levantou o debate sobre a
indenização integral aos fazendeiros.
“Minha preocupação é quando
falam em dinheiro. Dinheiro é bom pro não-índio, é o que resolve o problema
dele. O nosso não”, questionou o professor Kaiowá Anastácio Peralta.
“Vocês vieram falar da solução
do problema do fazendeiro, não do nosso”, continuou. “O nosso problema é que a
gente não tem terra, e quando a gente retoma, a terra está degradada. A gente
tem que encontrar uma solução pra esse problema. Esse é o problema do índio”,
apontou.
“Se existe dinheiro, ele tem
que ser usado para a Nação Guarani! Querem dar dinheiro pra quem nos roubou?”,
disse Ládio. “Os indígenas é que têm que receber o dinheiro. Pelos aviões que
passam jogando veneno. Pelos mortos todos”, concluiu.
“O capim é do fazendeiro. Se
quiser levar o capim, pode levar. Mas a terra é nossa”, ironizou Elpídio.
“Essa discussão é feita de um
jeito muito estranho. Estamos mostrando as irregularidades dos fazendeiros na
nossa terra. Mas o poder executivo simplesmente não se questiona se essas
terras eram dos indígenas!”, disse a liderança Kaiowá Eliseu Lopes,
representando a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) no encontro.
PEC 215 e Portaria 303
“Pro governo e o Congresso
mostrarem que quer nos ajudar, eles tem que acabar com a PEC 215, a Portaria
303. Isso precisa ser parado”, afirmou a liderança Lindomar Terena, da retomada
Mãe Terra, em Miranda (MS), que também participou do encontro.
Quanto a isso, os Guarani e
Kaiowá são igualmente taxativos. No documento final do encontro, reafirmam:
“não aceitaremos mudança constitucional”, referindo-se à Portaria 303, proposta
da Advocacia Geral da União (AGU).
A Proposta de Emenda
Constitucional 215 (PEC 215) intenta transferir para o Congresso Nacional a
competência de aprovar a demarcação das terras indígenas, criação de unidades
de conservação e titulação de terras quilombolas. Já a Portaria 303 pretende
permitir que terras indígenas possam ser ocupadas por empreendimentos
hidrelétricos e minerais de cunho estratégico, sem consulta aos povos
indígenas.
“Não adianta a gente retomar e
nem o governo demarcar, se o governo vem com PEC e Portaria. Isso precisa
acabar”, disse Anastácio.
Direitos e representatividade
“Não estamos pedimos para ser
amados, e sim para sermos respeitados e ouvidos”, escreveram os jovens Guarani
e Kaiowá às autoridades.
Foi nesta tônica que os
indígenas apresentaram ao governo suas reivindicações. Eles exigem que o
governo reconheça suas formas de organização como representações legítimas dos
povos Guarani do Mato Grosso do Sul, que devem ser ouvidas pelo poder público.
“O Estado tem que consultar o Aty Guasu e a Comissão de Professores. Não
adianta só dizer que vai demarcar, mandar a Força Nacional… Nós queremos
discutir política, segurança, educação”, disse Otoniel. “Nós queremos pautar
muitas coisas. Temos que ter garantida a nossa autonomia, sustentabilidade.
Saúde de qualidade com política diferenciada. Primeiro, tem que ter atendimento
também pras famílias das retomadas [e não só para as aldeias]. E tem que ter
educação diferenciada, tem que ter concurso público diferenciado”.
Laranjeira Nhanderu
“A Polícia Federal tem que ir
agora lá em Laranjeira Nhanderu abrir a estrada. Isso é a coisa mais urgente,
vocês vieram aqui e tem fazer isso. Eu tô cansado de ouvir vocês falarem,
falarem, prometerem, prometerem. Eu estou sem palavra pra ouvir vocês”, exigiu
Eliseu.
Antes do término da reunião com
o governo, a Polícia Federal se comprometeu a imediatamente ir até a retomada
Laranjeira Nhanderu e desfazer o cerco dos fazendeiros à retomada.
No dia seguinte, contudo,
lideranças indígenas foram ao local, e a cerca permanece onde está, intocada.
Os indígenas continuam em situação de cativeiro
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Fonte: Outras
Palavras
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