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Alvaro Bianchi e Ruy Braga
dezembro 17th, 2012
Desde a eleição de Lula da
Silva, em 2002, a relação do sindicalismo brasileiro com o aparelho de Estado
modificou-se radicalmente. Nunca é demais rememorar alguns fatos. Em primeiro
lugar, a administração de Lula da Silva preencheu aproximadamente metade dos
cargos superiores de direção e assessoramento – cerca de 1.300 vagas, no total
– com sindicalistas que passaram a controlar um orçamento anual superior a R$
200 bilhões. Além disso, posições estratégicas relativas aos fundos de pensão
das empresas estatais foram ocupadas por dirigentes sindicais. Vários destes
assumiram cargos de grande prestígio em companhias estatais – como, por
exemplo, a Petrobrás e Furnas Centrais Elétricas –, além de integrarem o
conselho administrativo do BNDES. O governo Lula promoveu, ainda, uma reforma
sindical que oficializou as centrais sindicais brasileiras, aumentando o
imposto sindical e transferindo anualmente cerca de R$ 100 milhões para estas
organizações.
Tudo somado, o sindicalismo
brasileiro elevou-se à condição de um ator estratégico no tocante ao
investimento capitalista no país. Esta função, não totalmente inédita, mas
substancialmente distinta daquela encontrada no período anterior, estimulou
Francisco de Oliveira a apresentar, ainda no início do primeiro governo de Lula
da Silva, sua hipótese acerca do surgimento de uma “nova classe” social baseada
na articulação da camada mais elevada de administradores de fundos de
previdência complementar com a elite da burocracia sindical participante dos
conselhos de administração desses mesmos fundos.
Na opinião de Oliveira, a
aproximação entre “técnicos e economistas doublés de banqueiros” e
“trabalhadores transformados em operadores de fundos de previdência” serviria
para explicar as convergências programáticas entre o PT e o PSDB e compreender,
em última instância, o aparente paradoxo de um início de mandato petista que,
nitidamente subssumido ao domínio do capital financeiro, conservou o essencial
da política econômica estruturada pelos tucanos em torno do regime de metas de
inflação, do câmbio flutuante e do superávit primário nas contas públicas.[1]
Ao mesmo tempo em que Oliveira
avançava a tese da “nova classe”, apresentamos a hipótese de que o vínculo
orgânico “transformista” da alta burocracia sindical com os fundos de pensão
poderia não ser suficiente para gerar uma “nova classe”, mas seguramente
pavimentaria o caminho sem volta do “novo sindicalismo” na direção do regime de
acumulação financeiro globalizado. Apostávamos que essa via liquidaria
completamente qualquer possibilidade de retomada da defesa, por parte desta
burocracia, dos interesses históricos das classes subalternas brasileiras.
Chamamos esse processo de “financeirização da burocracia sindical”.[2]
Assim como várias análises
críticas do governo do Partido dos Trabalhadores o problema da hipótese da
“nova classe” era explicar como se chegou até esse ponto. Não foram poucos os
analistas que acreditaram que a Carta ao Povo Brasileiro, na qual Lula da Silva
garantia a segurança dos operadores financeiros, teria modificado de modo
radical o curso seguido até então pelo PT e seu candidato. A tese de uma
transformação abrupta e imprevista só poderia encontrar apoio na ingenuidade do
analista ou na sua incapacidade de enxergar as óbvias mudanças que se processavam
nesse partido. A hipótese da “financeirização da burocracia sindical”
enfrentava esse problema e localizava sua origem em uma burocracia sindical
presente no partido desde seus primeiros passos no ABC paulista e que ao longo
dos anos 1990 associou-se gradativamente ao capital financeiro. A trajetória do
PT só surpreendeu quem não quis ver ou ouvir.
A história recente da
burocracia do Sindicato dos Bancários de São Paulo é exemplar. Como muitas
entidades filiadas à CUT, a dos bancários de São Paulo alinhou-se com a
administração Lula da Silva,
transformando-se em porta-voz do governo na categoria. Em todas as
situações nas quais os trabalhadores enfrentaram o governo, a diretoria dessa
entidade procurou colocar-se na condição de amortecedor do conflito social,
papel desempenhado pelos tradicionais pelegos sindicais. No jornal e nas
revistas do Sindicato a propaganda do governo dá o tom.[3] O “Sindicato
cidadão” deu lugar ao “Sindicato chapa-branca”.
Este não é, entretanto, um caso
de simples adesismo. É possível dizer que a cúpula dos bancários de São Paulo
foi o principal meio de ligação da aliança afiançada por Lula da Silva entre a
burocracia sindical petista e o capital financeiro. Na verdade, como previmos,
o cimento desse pacto foram os setores da burocracia sindical que se
transformaram em gestores dos fundos de pensão e dos fundos salariais. O
Sindicato dos Bancários de São Paulo forneceu os quadros políticos para essa
operação. Enquanto os sindicalistas egressos das fileiras dos metalúrgicos do ABC
ocupavam-se da política trabalhista e Luiz Marinho tomava assento no Ministério
do Trabalho, os bancários de São Paulo voavam em direção ao mercado financeiro.
Pontos importantes de nosso
argumento foram corroborados pela pesquisa de Maria Chaves Jardim que revelou a
existência do que chamou de “elite sindical de fundos de pensão”. Os principais
expoentes dessa elite seriam Luiz Gushiken, Ricardo Berzoini e Adacir Reis.
Segundo a pesquisadora, “os membros dessa ’elite’ são oriundos do setor
bancário de São Paulo, e fazem parte do núcleo formulador das políticas do PT;
passaram pela FGV/SP, são de origem social de classe média, do sexo masculino,
considerados brancos e heterossexuais.”[4] A esta lista seria possível
acrescentar o nome dos ex-sindicalistas Sérgio Rosa e Gilmar Carneiro, este
último também egresso da FGV.
As pretensões dessa “nova
elite” eram antigas. Gilmar Carneiro, presidente do sindicato entre 1988 e
1994, declarou quando ainda era diretor do Sindicato dos Bancários, que ao fim
de seu mandato poderia ser diretor do Banco do Estado do Rio de Janeiro do qual
havia sido funcionário. Seu sonho não foi realizado, mas, logo a seguir,
Carneiro transformou-se em diretor de um dos braços financeiros do Sindicato, a
Cooperativa de Crédito dos Bancários de São Paulo. Seu predecessor Luiz
Gushiken, presidente de 1985 a 1987, foi mais longe. No começo dos anos 2000,
Gushiken mantinha a empresa Gushiken & Associados, juntamente com Wanderley
José de Freitas e Augusto Tadeu Ferrari. Com a vitória de Lula da Silva a
companhia mudou de nome e passou a se chamar Globalprev Consultores Associados.
O ex-bancário retirou-se da empresa e coincidentemente esta passou, logo a
seguir, a fazer lucrativos contratos com os fundos de pensão.[5] Tornou-se,
assim, eminência parda dos fundos de pensão estatais sendo decisivo para a
indicação do comando do fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, a
Previ, da Petrobras, a Petros, e da Caixa Econômica Federal, a Funcef.
O sucessor de Gushiken e
Carneiro, Ricardo Berzoini, tem também sólidos laços com o sistema financeiro.
Foi ele o promotor da reforma da previdência, que além de retirar direitos dos
trabalhadores abriu o caminho para instituição da previdência complementar. Os
fundos de pensão estatais e privados foram os grandes beneficiados por essa
medida. Berzoini tem sido recompensado. Levantamento feito pelo jornal Folha de
S. Paulo em 2009 constatou que 43 diretores de fundos de pensão tem vínculos
com partidos políticos, a maioria deles com o PT. Desses diretores 56% fizeram
doações financeiras a candidatos nas últimas quatro eleições e o então
presidente nacional do PT, Ricardo Berzoini, recebeu quase um terço delas.[6]
A conversão de dirigentes
sindicais em gestores financeiros tem um caso exemplar: Sérgio Rosa. Este
gestor começou sua carreira como funcionário do Banco do Brasil, integrando a
diretoria do Sindicato dos Bancários de São Paulo na gestão de Luiz Gushiken.
Em 1999, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, Rosa assumiu um cargo
de diretor da Previ, representando os funcionários do banco. Com a posse de
Lula da Silva, passou à posição de presidente da Previ, comandando o maior
fundo de pensão da América Latina e o 25º do mundo em patrimônio. Após o final
de seu mandato assumiu o comando da Brasilprev, a empresa de previdência aberta
do Banco do Brasil. Em janeiro de 2011, aos 50 anos, Rosa aderiu ao “programa
de desligamento de executivos” do BB e se aposentou.[7]
A financeirização da burocracia
sindical é um processo que divide fundamentalmente a classe trabalhadora e
enfraquece a defesa de seus interesses históricos. Na condição de gestores dos
fundos de pensão, o compromisso principal deste grupo é com a liquidez e a
rentabilidade de seus ativos. Muitos têm argumentado que os fundos teriam um
papel importante na seleção de investimentos ecologicamente sustentáveis e
geradores de empregos. Pura enganação.
Os fundos de pensão brasileiros
têm atuado como uma linha estratégica do processo de fusões e aquisições de
empresas no país e, consequentemente, estão financiando o processo de
oligopolização econômica com efeitos sobre a intensificação dos ritmos de
trabalho, o enfraquecimento do poder de negociação dos trabalhadores e o
enxugamento dos setores administrativos. Isso sem mencionar sua crescente
participação em projetos de infraestrutura, como a usina de Belo Monte, uma das
principais fontes de preocupação dos ambientalistas brasileiros.[8]
Tendo em vista a natureza
semiperiférica de sua estrutura econômica, o Brasil apresenta importantes
dificuldades relativas ao investimento de capital. A taxa de poupança privada é
historicamente baixa e a solução para o investimento depende fundamentalmente
do Estado. Os fundos de pensão atuam nesta linha, buscando equacionar a
relativa carência de capital para investimentos. O curioso é que, no período
atual, a poupança do trabalhador, administrada por burocratas sindicais
oriundos do novo sindicalismo, está sendo usada para financiar o aumento da
exploração do trabalho e da degradação ambiental.
Notas:
[1] Francisco de Oliveira.
Critica a razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003, p 147.
[2] Alvaro Bianchi; Ruy Ruy. Brazil: The Lula Government
and Financial Globalization. Social Forces, Chapel Hill, v. 83, n.4, p.
1745-1762, 2005.
[3] O site do Sindicato dos
Bancários de São Paulo parece uma peça de campanha eleitoral. Em 2011 podia se
ler nele: “A estabilidade econômica, com crescimento médio de 3,6% da economia
a cada ano desde 2002 e a criação, no mesmo período, de 10,8 milhões de novos
postos de trabalho no mercado formal, reforçaram o poder dos trabalhadores e
deram base para a política de valorização do salário mínimo e da correção da
tabela do IR, entre outros avanços importantes garantidos durante os oito anos
do governo Lula.”
[4] Maria Chaves Jardim. “Nova”
elite no Brasil? Sindicalistas e ex-sindicalistas no mercado financeiro.
Sociedade e Estado. Brasília, v. 24, n. 2,
2009.
[5] Ronaldo França. Ação entre
amigos. Veja, n. 1912, 6 jul. 2005 e Fundos de pensão contratam antigos sócios
de Gushiken. Folha de S. Paulo, 3 jul. 2005, Primeiro Caderno, p. 12. Há
indícios de que a influência de Gushiken não diminuiu após sua saída do governo.
Segundo o jornal O Estado de S. Paulo: da “lista dos dez maiores fundos de
pensão de estatais brasileiras, seis estão sob comando do PT e a maioria deles
ainda é dirigida por apadrinhados dos ex-ministros petistas José Dirceu e Luiz
Gushiken, que deixaram o governo há quase quatro anos, em meio ao escândalo do
mensalão.” (Dirceu e Gushiken ainda dão as cartas nos fundos. O Estado de S.
Paulo, 4 mar. 2009.)
[6] Ranier Bragon. PT tem
diretores em 7 dos 10 maiores fundos. Folha de S. Paulo, 8 mar. 2009.
[7] Um relato minucioso da
trajetória de Rosa pode ser lido em Consuelo Dieguez. Sérgio Rosa e o mundo dos
fundos. Revista Piauí, São Paulo, n. 35 agosto de 2009.
[8] Aliás, o silêncio da CUT a
respeito das greves operárias nas obras do PAC, especialmente em Jirau, sem
mencionar sua completa inação após o anúncio da empresa Camargo Corrêa de
demitir 4.000 trabalhadores, poucas horas depois de um acordo coletivo com a
mesma empresa ter sido celebrado pela central, obviamente não são produtos de
sua súbita inexperiência à mesa de negociação. Muito ao contrário: a iminência
de grandes eventos como a Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpíadas do Rio, em
2016, aumenta exponencialmente a demanda por investimentos em infraestrutura
que dependem fundamentalmente do capital estatal e dos fundos salariais. Desde
que não hajam atrasos nas obras, o que implica, naturalmente, a “pacificação”
dos canteiros e a supressão de movimentos grevistas, trata-se de lucro líquido
e certo para a burocracia sindical financeirizada. Ainda que às custas da
crescente degradação das condições de trabalho nos canteiros de obras.
Fonte: Convergência
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