Valerio Arcary*
Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo (...).
E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti. [1]
Será necessário que se reunam condições
completamente excepcionais, independentes da vontade dos homens ou dos
partidos, para libertar o descontentamento das cadeias do conservadorismo e
levar as massas à insurreição. Portanto, essas mudanças rápidas que as idéias e
o estado de espírito das massas vivem nas épocas revolucionárias não são um
produto da elasticidade e mobilidade da psíque humana, mas, ao contrário, de
seu profundo conservadorismo(...) As distintas etapas do processo
revolucionário, consolidadas pelo deslocamento de uns partidos por outros, cada
vez más radicais, sinalizam a pressão crescente das massas para a
esquerda, até que o impulso adquirido pelo movimento tropeça com obstáculos
objetivos. Então começa a reação: decepção de certos setores da classe
revolucionária, difusão da apatia.[2]
Leon Trotski
O ano de 2011 inaugurou uma nova situação
internacional com a onda de revoluções políticas no Magreb, transbordando em
poucos meses para os países de língua árabe do Oriente Médio. Quando uma ordem
econômica, social e política revela incapacidade para realizar mudanças por
métodos de negociação, concertação ou reformas, as forças sociais interessadas
em resolver a crise de forma progressiva recorrem aos métodos da revolução para
impôr a satisfação de suas reivindicações. Essa foi a forma que assumiu a
defesa de interesses de classe na história contemporânea.
Duas conclusões se impõem de forma irrefutável ao final de quase dois anos.
Primeiro, o que aconteceu nas ruas de Túnis e Cairo, depois na Líbia, Bahrein,
Yemen, e Síria, merece ser considerado como revolução no sentido pleno do
conceito: uma irrupção representativa da vontade popular, com o objetivo de
derrubar ditaduras corrompidas, regimes monstruosos de frações degeneradas de
burguesias nacionais instaladas no poder há décadas.
Segundo, o processo revolucionário se estendeu na forma de uma vaga
sincronizada que foi contaminando, em maior ou menor medida, a maioria dos
países da região, pelo efeito arrebatador do exemplo das vitórias fulminantes
na Tunísia e Egito. Que na Líbia e Síria a dinâmica do processo tenha evoluído
para uma guerra civil nos diz mais sobre a contra-revolução do que sobre a
revolução. Uma revolução que luta com armas nas mãos não é menos legítima, é
mais heróica. Na Síria não está somente em disputa o destino da ditadura do clã
Assad. Nas ruas de Damasco estão se dando neste momento combates cruciais para
o futuro da revolução mundial.
Uma
contra-revolução mundial
Já se disse que as próximas revoluções serão sempre mais difíceis que as
últimas, porque a contra-revolução aprende depressa. A contra-revolução
burguesa foi um dos fenômenos de dimensão mundial do século XX. As revoluções contemporâneas
manifestam-se como revoluções na esfera nacional, mas esta aparência é uma
ilusão de ótica que remete à centralidade da luta política imediata contra o
Estado. As revoluções do século XX não enfrentaram somente os seus inimigos
nacionais imediatos, mas a contra-revolução à escala internacional. As do
século XXI terão desafios ainda mais complexos, e o primeiro deles é a
necessidade do internacionalismo.
Os Estados se definem pela vigência das fronteiras nacionais, todavia a
dominação mundial capitalista foi se estruturando, crescentemente, sobre uma
institucionalidade mundial: o sistema internacional de Estados, ou seja, ONU, a
Tríade ( EUA, UE, Japão), o FMI, o G-8, o G-20, o Banco Mundial, o Banco de
Compensações Internacionais de Basiléia, etc.
As revoluções contemporâneas estiveram inseridas, desde o fim da Primeira
Guerra Mundial, em contextos, pelo menos, regionais, ou semi-continentais, e
assumiram a forma de ondas de expansão que cruzaram mais ou menos rapidamente
as fonteiras nacionais. Por isso as revoluções contemporâneas merecem ser
caracterizadas como processos de refração da revolução mundial.
A revolução mais recente pode ser interpretada, portanto, como “o futuro de um
passado”, e começa onde a última foi interrompida. O ano de 2012 foi o ano em
que a revolução na Síria chegou à sua hora decisiva. Combates se travam
diariamente nas ruas de Damasco. Esta revolução incompreendida pela maioria da
esquerda brasileira vive as suas horas decisivas. A solidariedade maior a Gaza
durante as duas últimas semanas de novembro de 2012 demonstrou que está
aumentando o isolamento político de Israel, e potencializando a resistência
palestina. Os governos da França e Reino Unido se apressam a compreender a nova
relação de forças e sinalizam a disposição de votar a favor de um novo estatuto
para a Autoridade Palestina na ONU, contrariando o alinhamento incondicional
dos EUA com Israel. A queda de Kadafi, portanto, não diminuiu a disposição de
apoio à causa palestina na Líbia, ao contrário, aumentou. Não será diferente na
Síria.
Fevereiros heróicos, mas intervalos mais longos até
Outubros
Mas afirmar que têm sido
revoluções políticas democráticas significa dizer, também, que não só não
realizaram rupturas anticapitalistas, como destacar que a participação política
dos trabalhadores não ocorreu ainda, predominantemente, de forma independente.
Ou seja, remetendo a uma metáfora histórica ancorada na experiência da
revolução russa, estamos diante de Fevereiros muito difíceis que sugerem ainda
um longo intervalo antes que possam ocorrer Outubros.
Estas formas da revolução árabe não foram, historicamente, incomuns. As
ditaduras do Cone Sul da América Latina – Argentina, Uruguay e Brasil – foram,
também, desafiadas por mobilizações de massas entre 1982/84. Estes processos
sugerem que existe um padrão recorrente, se analisarmos a dinâmica política da
época contemporânea. Parecem corresponder a duas regularidades:
(a)
regimes ditatoriais em países periféricos em processo de urbanização podem se
manter no poder, até por algumas décadas, mas serão derrubados por revoluções
democráticas, mais cedo ou mais tarde, pelo surgimento de um bloco social muito
mais poderoso do que a oligarquia arcaica que os sustentou: um
proletariado e uma classe média asssalariada plebéia massiva. A questão
decisiva é se este bloco é dirigido pelo proletariado ou por frações burguesas
dissidentes e seus aliados internacionais;
(b)
o efeito exemplo do triunfo de uma revolução democrática, em uma época
histórica em que a informação circula quase instântaneamente, acelerou a
experiência política de massas, e funcionou como um gatilho que incendiou os
países da região vizinha, produzindo uma internacionalização rápida da
revolução.
A urgência da
revolução
A história, contudo, não é sujeito, mas processo. O seu conteúdo é uma luta.
Essa luta assume variadas intensidades. A revolução política é uma dessas
formas, e a frequência maior ou menor em que ela se manifesta é um indicador do
período histórico. Todas as revoluções contemporâneas tiveram uma dinâmica
anticapitalista, maior ou menor, mas não foram todas elas revoluções,
socialmente, proletárias. Todas as revoluções socialistas da história começaram
como revoluções políticas, ou como revoluções democráticas, mas nem todas as
revoluções democráticas transbordaram em revoluções sociais.
Estará em disputa a possibilidade da revolução no norte da África e do Oriente
Médio abrir o caminho para segundas independências, com todas as sequelas que
teria a perda de controle do imperialismo sobre as maiores fontes de
abastecimento de petróleo, mas, também, a destruição das políticas públicas de
bem estar social que ainda estão de pé na Europa Ocidental, ou a redução da
Grécia, Portugal e, talvez, até da Espanha à condição de semi-colônias do eixo
franco-alemão na União Européia.
O que condicionou, historicamente, a possibilidade de revoluções foi a pressão
objetiva de crises de dimensões catastróficas. Mas, só a existência de crises
nunca foi o bastante para que se iniciassem processos revolucionários.
Foi indispensável, igualmente, que a mentalidade de milhões de pessoas fosse
sacudida pela experiência terrível de que não existiria mais esperança em
saídas individuais. Somente quando a nova geração acordou para a inescapável
constatação de que teria que aceitar condições de sobrevivência inferiores às
dos seus pais, ou seja, somente quando o que era inacreditável em condições
normais se impôs de forma incontornável, se precipitaram situações
revolucionárias. A urgência da revolução voltou a ter significado político imediato.
Mas não autoriza a conclusão de que o socialismo está mais perto. A luta pelo
socialismo requer mais do que ações revolucionários contra o governo e regime
no poder: exige protagonismo proletário independente e projeto
internacionalista.
* Professor do IF/SP (Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo). Valério Arcay estará em
Vitória da Conquista nos dias 7 e 8 de dezembro, a convite do Geilc (Grupo de
Estudos de Ideologia e Lutas de Classes, palestrando acerca das "Esquinas
perigosas da História: memórias revolucionárias". O evento acontecerá no
Auditório do Módulo IV (Pedagogia), às 19:30 horas.
[1] DONNE, John. Meditações VII, in http://pt.wikiquote.org/wiki/John_Donne. Consulta em 27/11/2012.
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