Foto: Naira Hofmeister |
Em 40 dias, quatro pessoas se
suicidaram diante da iminente perda de seus imóveis. A mobilização social para
impedir novos despejos se manifesta em marchas com o lema “Stop desahucios”,
pedindo ao governo a moratória no pagamento dos financiamentos de casas e apartamentos.
Mas a única resposta dada pelo presidente Mariano Rajoy, um decreto de
emergência, é considerada insuficiente por juízes, policiais e associações de
consumidores. A previsão das associações de consumidores é de que até o final
de 2012 o número total de desalojamentos forçados ultrapasse os 100 mil. A
reportagem é de Naira Hofmeister, direto de Madri.
Naira Hofmeister - Madri
Madri - É a face mais perversa
da crise econômica na Espanha: a cada dia mais de 500 famílias são expulsas de
suas casas pela impossibilidade de seguir pagando o financiamento do imóvel ao
banco. A previsão das associações de consumidores é de que até o final de 2012
o número total de desalojamentos forçados ultrapasse os 100 mil.
Como se os números não fossem
suficientes para demonstrar o drama, há outros vários elementos que multiplicam
sua intensidade e que levam milhares de cidadãos a perguntarem: “por quê?”
O primeiro ponto de dúvida
sobre a validade de ações de despejo é que enquanto os antigos moradores passam
a depender do favor de amigos ou parentes para ter um teto, seus lares ficam
vazios, já que a recessão freou o comércio de imóveis em todo o país.
De fato, em 2011 (antes de que
o problema atingisse seu auge, portanto) o número de financiamentos concedidos
foi 33% inferior ao do ano anterior, mais um dado ruim para um setor que já
acumula cinco anos no negativo.
Pior: além de não resolver o
problema do banco – que de qualquer maneira fica sem receber dinheiro pelo
imóvel que retomou – tomar a casa do comprador inadimplente não o livra da
dívida, como acontece no Brasil. Pelo contrário, o sujeito desalojado fica sem
teto e com um débito que varia entre 150 e 300 mil euros, segundo cálculos das
associações que lutam pelos direitos desses cidadãos afetados pelo problema.
“É um embargo à vida da pessoa
porque quando recupera a sua condição econômica, terá uma dívida imensa para
fazer frente”, condena o técnico da Associação de Usuários de Bancos, Caixas e
Seguros da Espanha (Adicae), Francisco Javier Alvarado, que mantém uma
organização para tentar evitar os despejos.
Ocorre que grande parte dos
inadimplentes estão incluídos nos 25% da população economicamente ativa
espanhola desempregada. Existem 1,7 milhão de lares espanhóis nos quais nenhum
integrante tem uma renda fixa – e mais de 5 milhões são sustentados por uma única
pessoa com renda.
Diante dessa situação, não
parece um absurdo que nos últimos 40 dias quatro pessoas tenham se suicidado ao
receber o comunicado da justiça de que devem deixar seus lares.
“São dramas humanos muito
fortes. Há vários casos de desalojo de famílias com crianças pequenas ou de
anciões que deram sua casa como garantia ao financiamento pedido pelos filhos.
É impossível ficar imune”, reconhece o porta-voz do Sindicato Unificado da
Polícia espanhola, José María Benito Celador.
Os agentes reclamam de um
problema de consciência: por um lado, não podem descumprir o seu dever nem as
ordens que recebem. Por outro, o sindicato já denunciou casos inclusive de
mal-estar físico, de guardas que tiveram que ser levados ao hospital depois de
participar em um despejo. “Já há muitos agentes que se negam a ir a ações deste
tipo”, revela. E coloca o dedo na ferida: “A lei é injusta”.
Inadimplentes são acusados sem direito à defesa
As centenas de pessoas que
perdem suas casas diariamente na Espanha – já são mais de 500 mil desde 2008 –
não são apenas vítimas de uma crise econômica que nem o Partido Socialista
(PSOE) e tampouco o atual governo comandado pelo Partido Popular (PP) souberam
solucionar.
Muitos dos contratos que
permitem hoje aos bancos reclamar a casa pelo não pagamento da dívida de
financiamento possuem cláusulas abusivas – a mais famosa é a que institui um
mínimo de juros a serem pagos mesmo nos casos em que o índice que gerencia o
reajuste das parcelas se reduza.
Mas há outras mais: “Durante o
período da bolha imobiliária foram feitos todos os tipos de aberrações. Só
pensavam em vender apartamentos e casas, não importa com que condições”,
condena o técnico da Adicae, Francisco Javier Alvarado.
Não por casualidade a bolha
imobiliária é um dos elementos que está na origem da crise econômica na
Espanha. E embora o argumento seja suficientemente forte ao menos para levar um
juiz a pedir um estudo criterioso de cada contrato, não é possível parar uma
execução de despejo porque há uma cláusula legal que dá razão ao reclamante.
“Contra os bancos ninguém pode se opor”, critica o porta-voz da associação
progressista Juízes para a Democracia, Joaquim Bosch.
Não há direito à defesa, o
sujeito não pode argumentar sobre o porquê não paga nem demonstrar que o
contrato é nulo, abusivo, ou foi feito contra as leis. “No caso das hipotecas
há uma nítida vantagem dos bancos sobre as pessoas. Essa situação vulnerabiliza
o direito fundamental à moradia, que está garantido na Constituição”, denuncia
Joaquín Bosch.
Vale lembrar que os bancos, que
se beneficiaram da negligência dos órgãos de controle e de defesa do consumidor
durante o período de fartura, também são os grandes protegidos dessa crise:
enquanto que nos últimos cinco anos se destruíram 4 milhões de postos de
trabalho no país, e apenas em 2012 houve aumento de impostos e recortes em
serviços sociais, o governo espanhol teve que assumir como seu o resgate que a
União Europeia concedeu às entidades financeiras 100 bilhões de euros. Parte do
dinheiro será aplicada na criação de um “banco ruim”, que reunirá todos os
ativos desvalorizados das instituições para sanear os caixas privados.
Decreto do governo é insuficiente
Diante da comoção social que
tomou conta da Espanha no último mês – além de associações de todo o tipo se
manifestarem contra a forma como estão sendo levadas a cabo as execuções
hipotecárias, vários prefeitos de cidades espanholas liberaram seus corpos
policiais de participar em ações de despejos, se comprometendo a assumir
eventuais problemas judiciais que surjam por “insubmissão” – o governo atuou.
Sem conseguir um acordo com o
principal partido da oposição (PSOE), a gestão de Mariano Rajoy (PP) baixou um
decreto que paralisa durante dois anos os despejos em famílias que se encontrem
em situação de “risco extremo”. Na prática, a medida fez com que os processos
judiciais se detivessem porque agora é necessário reestudar cada caso para ver
se se enquadra no perfil protegido pela lei.
Mas não é o suficiente. As
associações acusam o governo de manobrar para tirar da mídia os casos mais
dramáticos – os de famílias extremamente pobres, por exemplo, que revoltam mais
a população – mas afirmam que o decreto não terá impacto significativo no
número total de despejos.
“Essa moratória é insuficiente
porque exclui a maioria das pessoas afetadas e não aborda o problema da dívida,
que seguirá aumentando durante os dois anos previstos de moratória”, protesta a
Plataforma de Afetados pelas Hipotecas (PAH).
“Pior”, prosseguem, “o decreto
pode piorar a situação porque pode provocar que algumas pessoas atentem contra
sua própria saúde para cumprir com o requisito de 'doença grave' ou que decidam
ter um filho para entrar na categoria de 'família com um filho menor de três
anos'”. De todas as formas, nenhum dos casos de suicídio ocasionado pela ameaça
de despejo seria evitado se o novo decreto já estivesse em vigor.
O que todas as associações
consultadas para esta reportagem defendem é uma moratória geral no pagamento do
financiamento bancário de imóveis que permita revisar a lei que gerencia esse
mercado – que deveria conter a possibilidade de que a entrega do imóvel quite a
dívida do comprador, algo que os bancos temem que gere uma distorção na toma de
empréstimos.
A cidadania também solicita que
o governo institua o “aluguel social”, o que além de tudo movimentaria o setor
de compra e venda de casas e apartamentos ou a construção civil, já que o
Estado deveria adquirir esses locais para logo alugar a famílias necessitadas.
Os bancos se manifestam apenas
reiterando que lamentam o ponto a que chegou a situação, mas não propuseram
nada além dos dois anos de moratória. A PAH já recebeu o comunicado de que para
a próxima semana estão previstos 12 despejos, em oito diferentes municípios do
país.
Fonte: Carta Maior
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