Alvaro Bianchi
Partido dos Trabalhadores tem
seu mito fundador. Tendo nascido no interior dos movimentos sociais do final
dos anos 1970 e 1980, o partido seria simplesmente diferente. Era diferente seu
programa, expressão dos desejos de transformação social vivificados por esses
movimentos. Era diferente sua organização, resultado da crítica às formas
tradicionais de incorporação passiva das classes subalternas à política. Era
diferente, enfim, a relação que procurava estabelecer entre representantes e
representados. A força do partido no presente remeteria, assim, a sua
originalidade passada. Se non è vero è bene trovato, afirma a suposta máxima
italiana.
A pesquisa de Paulo Roberto
Figueira Leal, revela, entretanto, que ao contrário do que o mito fundador
faria esperar, o eixo sobre o qual giraria a atividade parlamentar dos petistas
não seria aquele que conectaria os deputados com os movimentos sociais e sim o
que vincularia os representantes com o partido. Apenas 14,89% dos deputados
entrevistados por Leal afirmaram dever fidelidade aos movimentos sociais,
categorias profissionais ou localidades, enquanto para 63,82% o partido
mereceria essa fidelidade. Esses dados reafirmariam a concepção, presente nos
estatutos e nos documentos do partido desde sua fundação, de que o mandato
pertence à agremiação. Daí que 61,7% dos entrevistados por Leal possam
responder, sem constrangimentos, que o mandato é eminentemente partidário,
mesmo que em desacordo com os desejos da base.
Contrariar suas bases
eleitorais poderia, entretanto, ter para os deputados um custo medido em votos
perdidos. Para anular ou reduzir esses custos, a regulação partidária da
atuação legislativa dos deputados teria como contrapartida, aponta Leal, a
transformação da estrutura de seus gabinetes em máquinas eleitorais de
atendimento aos movimentos sociais. Os deputados petistas compensariam uma
atividade legislativa centralizada pelo partido, e não por suas bases sociais,
com uma política de profissionalização de quadros oriundos dos movimentos que
lhes dão apoio eleitoral.
Afastemo-nos do livro de Leal e
lembremos o mito fundador. Já se passaram 25 anos desde sua criação. Afirmando
uma prática social renovada o partido se definia contrário ao clientelismo individualizado
que predominava na vida política brasileira. Daí a insistência no caráter
partidário dos mandatos. Mas essa insistência só fazia sentido na medida em que
o partido era a tradução política dos movimentos sociais. Essa tradução há
muito não existe (e é de se perguntar se ela era real na fundação). A máquina
partidária ganhou força e vida, tornando-se autônoma dos movimentos sociais que
lhe haviam dado origem. Dessa autonomia nasceu um neoclientelismo, uma prática
que tem por alvo não a satisfação de demandas de indivíduos, como nas formas
tradicionais de clientelismo, mas aquilo que Leal chama eufemisticamente de
“’atendimento de organizações”.
A profissionalização de
dirigentes dos movimentos sociais pelos gabinetes de deputados e, agora, pelos
postos controlados pelo PT no Estado, é um modo de operacionalização daquilo
que na historiografia italiana assumiu o nome de transformismo político. Os
movimentos sociais, em vez de serem incorporados ativamente na esfera da
política, ingressam passivamente por meio da transformação de seus dirigentes em
funcionários do Estado. Encontram-se aqui processos de reconversão social e
política. Social, pela passagem de sindicalistas, líderes comunitários,
ambientalistas ou estudantis à condição de membros de uma burocracia estatal.
Política, pela passivação dos interesses e práticas desses sujeitos sociais e a
adequação bem comportada destas a seu novo ambiente institucional.
O mito fundador poderia até ser
uma reconstrução da real trajetória do partido em seus primórdios, mas pelo
menos encerrava uma promessa emancipadora: fazer da política atividade autônoma
(autoprodutora de normas) das classes subalternas. No presente, a prática
petista, é desemancipadora. Ao invés da produção de novas regras por meio da
atividade do movimento social, a restrição dos dirigentes à normatividade
presente. A promessa de emancipação de todos cedeu lugar à de alguns. Não são
conclusões às quais o livro de Leal chegue, é bom avisar. Mas é possível
pensá-las a partir dele.
Notas:
Paulo Roberto Figueira Leal. O
PT e o dilema da representação política. Rio de Janeiro: FGV, 2005.
Fonte: Blog
Convergência
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