Paraisópolis, Zona Sul, um dos bairros mais atingidos pelas ações da polícia: 37 presos (7 menores) em dois dias |
por Antonio Martins
06/11/2012
Breve dossiê revela: onda de assassinatos que apavora Estado foi
iniciada e radicalizada pela PM. Governo Alckmin omite-se. Mídia silencia
I.
Ao descrever, num ensaio
recente (breve em português, em Outras Palavras), a situação tormentosa vivida
pela Grécia, o jornalista Paul Mason, da BBC, recorre à história da Alemanha,
às portas do nazismo. Só uma sucessão de erros crassos, mostra ele, pôde
permitir que Hitler chegasse ao poder. Mas havia algo sórdido por trás destes
enganos. Embora não fosse conscientemente partidária do terror, a maior parte
das elites alemãs desejava o autoritarismo, pois já não conseguia tolerar o
ambiente democrático da república de Weimar.
As circunstâncias são
distintas: não há risco de fascismo no cenário brasileiro atual. Mas é
inevitável lembrar de Mason, e de sua observação sobre a aristocracia alemã,
quando se analisa a espiral de violência que atormenta São Paulo há cinco
meses. Em guerra com a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC),
parte da Polícia Militar está envolvida numa onda de assassinatos que já fez
dezenas de vítimas, elevou em quase 100% o índice de homicídios no Estado e
aterroriza as periferias.
Pior: a escalada foi iniciada
(e é mantida e aprofundada) por integrantes da própria PM, a força que deveria
garantir a segurança e o cumprimento da lei no Estado. Mas apesar de inúmeras
evidências, o governo do Estado não age para refrear tal atitude. E a mídia
omite, ao tratar da onda de mortes, a participação e responsabilidade evidentes
da polícia. É como se tivessem interesse em manter, em São Paulo, um corpo
armado, imune à lei e ao olhar da opinião pública, capaz de se impor à
sociedade e diretamente subordinado a um governador cujos laços com a direita
conservadora são nítidos.
Para ocultar o papel de parte
da PM na avalanche de brutalidade, a mídia criou um padrão de cobertura. As
mortes de autoria do PCC são noticiadas, corretamente, como assassinatos de
PMs. Informa-se que o número de crimes deste tipo cresce de modo acelerado — já
são 90 vítimas, este ano. Mas se associa a insegurança que passou a dominar o
Estado apenas a estes atos. Também informa-se sobre parte das mortes praticadas
pela PM — seria impossível escondê-las por completo. No entanto, aceita-se,
sempre sem investigação jornalística alguma, a versão da polícia: morreram “em
confronto”, depois de terem reagido.
Este estratagema permite
silenciar sobre três fatos essenciais e gravíssimos: a) parte da PM abandonou
seu compromisso com a lei e a ordem pública e passou a agir à moda de um grupo
criminoso, colocando em risco a população e a grande maioria dos próprios
policiais, honestos e interessados em cumprir seu papel; b) diante desta
subversão do papel da PM, o comando da corporação e o governo do Estado estão,
ao menos, omissos; c) procura-se preservar este estado, evitando,
recorrentemente, caracterizar a atitude do setor criminoso da polícia e, muito
menos, puni-lo.
II.
Algumas iniciativas permitiram,
nos últimos dias, começar a quebrar a cortina de silêncios e omissões. O
jornalista Bob Fernandes, editor-chefe do Terra Magazine, sustentou, num
comentário corajoso, em noticiário da TV Gazeta, que havia algo além do crime
organizado, por trás da onda de assassinatos. “Rompeu-se um pacto entre polícia
militar e PCC”, frisou Fernandes — e atribuiu a esta ruptura tanto a “guerra”
entre os dois grupos como a espiral de morte que se seguiu. “Criminosos matam
de um lado? Vem a resposta: alguns, quase sempre em motos, com munição de uso
exclusivo de forças policiais, dão o troco e também matam.”
A fala do editor do Terra
Magazine teve o mérito de romper o consenso que a mídia fabricava, até então,
em torno de uma explicação inconsistente. Mas a que se referiria ele, ao
mencionar, em linguagem quase enigmática, a ruptura de um pacto?
Uma das pistas, para encontrar
a resposta, é seguir o fio da meada da onda criminosa. Quando ela teria
começado? Por quais motivos? Entre o final de maio e o presente, os jornais
estão fartos de notícias sobre os assassinatos, sempre no padrão descrito acima.
Mas não é difícil encontrar um ponto de inflexão, o momento a partir do qual o
cenário se transforma.
Ele situa-se precisamente em 29
de maio. Nesta data, quando ainda não adotava a confirmação sem checagem das
versões da Polícia Militar, O Estado de S. Paulo registra um massacre. Seis
pessoas foram mortas pela ROTA, uma unidade da PM conhecida pela truculência.
Estavam num estacionamento, próximo à favela da Taquatira, Zona Leste da
capital. Foram vítimas de um comando constituído por 26 policiais. A própria PM
afirmou, na ocasião, que eram integrantes do PCC. Alegou-se que estariam
reunidas (num estacionamento?) para “traçar um plano de resgate de um preso”.
Segundo as primeiras versões, teriam “atirado contra os policiais”. Apesar de
numerosas (segundo a PM, 14 pessoas, das quais três foram capturadas e cinco
fugiram), e “fortemente armadas”, nenhum soldado sequer se feriu.
Esta versão fantasiosa foi
desmentida logo em seguida. Pouco depois da ação policial, um dos mortos “em
confronto” seria executado a sangue frio, por parte dos PMs que haviam
participado da operação. Os assassinos agiram em pleno acostamento da rodovia
Ayrton Senna, e em área habitada. Uma testemunha presenciou o crime e o
denunciou, enquanto acontecia, pelo telefone 190. A sensação de impunidade dos
assassinos levou-os a ser fotografados pelas próprias câmeras de vigilância da
estrada. Nove dos 26 policiais foram presos, horas depois. Destes, seis foram
soltos em dois dias. Três — apenas os que teriam praticado diretamente a
execução — permaneceram detidos. Não é possível encontrar, nos jornais,
informações sobre sua situação atual.
Atingido, o PCC reagiu
recorrendo, embora em escala limitada, ao método que marcou sua atuação em
2006. Na região de Cidade Tiradentes, uma das mais pobres da cidade e local de
moradia de um dos mortos, o grupo obrigou a população a um toque de recolher no
dia do enterro do comparsa, 31 de maio. Tiveram de fechar as portas, entre
outras, as escolas municipais Adoniran Barbosa e Wladimir Herzog… Mas, também
repetindo o que fizera em 2006, a facção não se limitou a isso. Começaria, logo
em seguida, a longa série de assassinatos de policiais militares.
No ano passado, 47 PMs
paulistas foram mortos, em serviço ou suas folgas. Não é um número excepcional,
para uma corporação que reúne quase 100 mil soldados, exerce atividade de risco
e vive sob tensão permanente (o índice anual de suicídios é muito próximo ao
das vítimas de homicídio). Em 2012, tudo mudou. Até o incidente fatídico de
29/5, haviam sido contabilizadas 29 mortes de PMs — pouco acima da média
registrada no ano anterior. Entre 29/5 e 4/11, os ataques disparam. São 61
novos assassinatos, em apenas cinco meses. Há casos dramáticos: uma policial
morta diante de sua filha; um garoto assassinado apenas por ser filho de
policial, ocasiões em que as próprias bases da PM são atacadas. Inúmeros
relatos narram a situação de pânico vivida por milhares de soldados honestos,
cuja vida foi subitamente colocada em risco numa “guerra” provocada por uma
minoria.
Mas aos poucos — e aqui começa
um dos pontos mais obscuros de todo o episódio –, a PM parece inclinar-se em
favor de sua banda violenta. Além de ter provocado o PCC à luta no final de
maio, num ataque cujo caráter criminoso está demonstrado, a polícia paulista
empenhou-se, nos meses seguintes, em tornar a disputa cada vez mais sangrenta e
mais letal para a população civil.
Alguns episódios são
emblemáticos desta tendência e da barbárie produzida por ela. Em 10 de outubro,
por exemplo, um soldado de 36 anos foi executado em Taboão da Serra, oeste da
Grande São Paulo. Dois homens dispararam seis tiros em seu corpo. Nas horas
seguintes, no mesmo município, nove pessoas foram assassinadas. Duas delas
foram vítimas da ROTA — execuções, segundo testemunhas. As sete outras, em
circunstâncias nunca esclarecidas, mas muito assemelhadas às descritas por Bob
Fernandes, em seu comentário recente. Poucos dias antes, na Baixada Santista,
um outro episódio, em condições muito semelhantes, deixou, em cinco dias, um
rastro de quinze mortos. Em nenhum destes casos houve investigações sobre o
comportamento dos policiais — nem por parte de seus pares, nem da mídia…
A esta altura é perturbador,
porém inevitável, traçar um paralelo. Radicalizar ao máximo a guerra contra o
PCC; afogar o “inimigo” em sangue, sem se importar com o risco de atingir a
população como um todo, foi a estratégia que prevaleceu na PM em 2006, quando a
força enfrentou pela primeira vez o grupo criminoso. Entre 12 e 20 de maio
daquele ano, mais de 500 pessoas foram assassinadas em chacinas e execuções na
capital, região metropolitana, interior e litoral de São Paulo. A grande
maioria não tinha relação alguma com o PCC, como denunciam, desde então, as
Mães de Maio. Adotou-se aparentemente a ideia de que deflagrar terror
indiscriminado contra a população forçaria o grupo criminoso a recuar, temeroso
de perder apoio de suas bases sociais.
III.
Um personagem destacado é comum
aos episódios de 2006 e aos de hoje: o governador de São Paulo, Geraldo
Alckmin. Não estava diretamente à frente do Palácio dos Bandeirantes, durante a
primeira rebelião do PCC (deixara o posto um mês antes, para concorrer à
presidência da República). Mas havia governado o Estado nos seis anos
anteriores e executara uma política de segurança considerada ao mesmo tempo
brutal e ineficiente. Sua ligação com os acontecimentos ficou patente ao
abandonar, de modo abrupto, uma entrevista em que jornalistas britânicos (ao
contrário da grande mídia brasileira) questionaram-no sobre o ocorrido.
Apontado como membro da
organização ultra-direitista Opus Dei, até mesmo por integrantes de seu partido
(o PSDB), Alckmin é visto, por parte da elite brasileira, como uma liderança
importante a preservar. As declarações que tem dado, desde maio, em favor das
posições mais belicosas e agressivas, no interior da PM, são eloquentes.
Falta muito a apurar, na trilha
tenebrosa e caótica para a qual descambou a segurança (?) pública em São Paulo,
desde maio. Por que, após uma tentativa fugaz de investigar ações ilegais e
criminosas de parte de seus integrantes, a PM desistiu do esforço? Que levou a
imprensa — que também denunciou a truculência, num primeiro momento — a
silenciar e a repetir, desde junho, uma versão insustentável? Um setor de
policiais especialmente violento terá conseguido impor sua postura? De que
forma estarão envolvidos o governador e a imprensa?
O certo é que, para interromper
a escalada sangrenta, a sociedade precisa agir — o quanto antes.
Fonte: Outras
Palavras
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