Ilustração: Daniel Kondo |
O que explica a primazia do ensino superior privado no país?
Esse processo advém da ditadura civil-militar, que fez da privatização um
projeto dominante, utilizando-a até mesmo para estancar pressões sociais dos
“excedentes” no vestibular (aprovados, mas sem garantia de vaga) e da força do
movimento estudantil na época
por César Augusto Minto*
e Lalo Watanabe Minto**
A educação brasileira está
organizada em dois níveis: básica e superior. Por razões de espaço, destacamos
aqui o segundo nível. O país adota formalmente um modelo de universidade que
realiza ensino, pesquisa e extensão de forma indissociada. As universidades
públicas produzem, quantitativa e qualitativamente, o que há de mais avançado
em todas as áreas de conhecimento, contribuindo para o desenvolvimento
científico, tecnológico e cultural do país e para a promoção do bem-estar de
seu povo.
Contudo, esse modelo convive
com a existência de inúmeras instituições de ensino superior (IES) que não se
caracterizam como universidades: particulares, comunitárias, confessionais e
filantrópicas00[1].
Em geral, com exceção das IES públicas (sobretudo federais e estaduais, pois as
municipais se assemelham às privadas), as demais não realizam pesquisas, grande
parte delas oferece ensino de qualidade questionável e a quase totalidade visa
exclusivamente ao lucro. De 1999 a 2009, as matrículas de graduação presencial
públicas cresceram 62%; as particulares, 345%; e as privadas sem fins
lucrativos diminuíram 2%; as matrículas em IES não universitárias passaram de 31,7%
para 46,9% do total, sendo 80,9% nas particulares.[2]
O quadro esboçado é
preocupante, mais ainda se considerarmos que, há muito, setores sociais
conservadores têm defendido a “flexibilização” da indissociabilidade
ensino-pesquisa-extensão, sob duas alegações: 1) a diversidade do povo
brasileiro, que supostamente demandaria a variedade de modelos; e 2) nem toda
formação precisa da pesquisa, curiosamente a função que viabiliza a construção
de conhecimento e a mais cara das três.[3]
A partir do governo Collor, essa visão ganhou status de “oficial”, ao mesmo tempo que se interrompeu uma salutar
tendência a avanços sociais iniciada com a Constituição Federal de 1988.
O que explica a primazia do
ensino superior privado no país? Esse processo advém da ditadura civil-militar,
que fez da privatização um projeto dominante, utilizando-a até mesmo para
estancar pressões sociais dos “excedentes” no vestibular (aprovados, mas sem
garantia de vaga) e da força do movimento estudantil na época. Desde então,
fortaleceu-se uma concepção tecnicista de ensino superior que reforçou a
separação entre ensino de elite (em parte das IES públicas e das privadas mais
tradicionais) e ensino de massa, privado, para atendimento de demandas
emergentes, sobretudo da classe média e de setores da classe trabalhadora.
Anos depois, a opção política
pela resposta privatista às necessidades de expansão do ensino superior
resultou no agravamento das desigualdades do setor. Tendo, de um lado, uma
universidade pública de qualidade reconhecida, mas restrita a poucos, e, de
outro, uma porção de IES privadas de qualidade duvidosa, esse ensino tornou-se
sempre mais desigual, afetando em especial as áreas efetivamente menos
valorizadas, entre as quais se destaca a da formação de professores.
Um novo impulso à privatização
ocorreu a partir dos anos 1990, no bojo da reestruturação capitalista global, e
materializou-se por meio da doutrina de reforma do Estado[4].
Tendo a privatização, a terceirização e a publicização como meios e a
administração pública gerencial como fim, a reforma do Estado realizou algumas
inversões conceituais importantes, entre elas a substituição de direito por
serviço. Essa doutrina aponta claramente para a mercantilização.
As diretrizes da reforma
passaram a ser positivadas em leis a partir da Emenda Constitucional n. 19, de
1998, reforçando o caminho da mercantilização dos direitos sociais.
Terceirização é a “execução indireta de serviços públicos, mediada por
contratos submetidos a licitações supostamente isentas, do que deriva o ingresso
de trabalhadores sub-remunerados em atribuições públicas sem o devido concurso”[5].
Já a publicização implica a transferência dos serviços sociais e científicos
então prestados pelo Estado para o setor público não estatal; vale dizer,
promove a indistinção entre estatal e privado/mercantil à medida que
desconsidera os meios e objetivos específicos do processo educativo,
ressaltando apenas seus resultados quantitativos[6].
Explicitamente assumida ou não,
a reforma atinge corações e mentes outrora insuspeitos, e passa a orientar
também as políticas para o ensino superior. Nesse caso, a empreitada foi
energizada pela insuficiência crônica de recursos que resultou, por exemplo, em
um grande desequilíbrio entre candidatos e vagas no setor público. Além da privatização
propriamente dita, a legislação em vigor permite que IES ditas sem fins
lucrativos recebam recursos estatais na forma de: a) subvenção social; b)
auxílio; c) contribuição; d) convênio; e) termo de parceria; f) imunidade de
impostos; g) imunidade de contribuições sociais; h) isenção; i) incentivo
fiscal ao doador; j) voluntariado.[7]
A partir de meados da década de
2000, o governo federal passou a viabilizar duas formas principais de expansão
do ensino superior:
a) estatal, via ampliação de
vagas e criação de novas IES por meio do Programa de Apoio a Planos de
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni, 2007), que
condiciona os recursos ao atendimento de metas nos cursos de graduação
presenciais: dezoito estudantes por docente e taxa de conclusão média de 90%,
entre outras. Ocorre que a relação 18/1 não se coaduna com o modelo da
indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão, e não se tem notícia de que a taxa
citada seja atingida, nem sequer nas melhores universidades mundo afora;
b)privada, via criação do
Programa Universidade para Todos (ProUni, 2004-2005), que utiliza recursos
públicos para comprar vagas “ociosas” de IES privadas, incluindo as com fins
lucrativos. Ademais, registre-se o uso indiscriminado do ensino a distância,
sobretudo na formação inicial e de docentes.
Projetos desse tipo fragilizam
ainda mais as condições de funcionamento das instituições. Por um lado,
corroboram a tendência de separação entre IES de ensino e IES de pesquisa,
assim como acirram as divisões entre as áreas de conhecimento, sobretudo pela disputa
por recursos. Por outro lado, distanciam o país da construção de um efetivo
sistema nacional de educação (menos desigual e mais orgânico e adequado às
necessidades regionais). Também pioram as condições de trabalho dos servidores
e de estudo dos alunos, ao passo que se reduzem os espaços para contestação
institucional, uma vez que boa parte das IES públicas mantém estruturas
oligárquicas e anacrônicas, algumas com eleição indireta de dirigentes
(reitores e diretores) e composição de órgãos colegiados sem ampla
representação dos envolvidos (a USP, por exemplo). Nas particulares, a situação
é dramática: em 2009, 53% dos docentes eram horistas, enquanto 25,5% atuavam em
tempo parcial.
Soma-se a isso o
recrudescimento do autoritarismo. Em nome de garantir um ambiente propício à
perenização de muitas funções privadas às quais as universidades públicas foram
sendo submetidas (fundações, convênios com empresas, contratos de
terceirização, cursos pagos etc.), a onda repressiva se espalha e, de certo
modo, se naturaliza. As formas de controle de movimentos organizados, vozes
dissonantes e contestadoras, ocultam os fundamentos reais dos problemas
educacionais, buscando “resolvê-los” com medidas duras. Não raro, conflitos
políticos tornam-se casos de criminalização judicial, para não dizer do
reavivamento de práticas ditatoriais: espionagem, incursões policiais e
crescente militarização do espaço físico dos campi (cancelas, catracas, câmeras
de vigilância)[8],
criando uma tendência torpe de as universidades se parecerem cada vez mais com
presídios do que com locais de produção e disseminação de conhecimento.
Diante da atual tendência de
mercantilização – agravada pela entrada das IES particulares nas Bolsas de
Valores e por práticas como os fundos privados de captação de recursos
(endowments) nas IES públicas – e de sufocamento dos conflitos nas
universidades, o ensino superior que está sendo construído corresponde aos
anseios da sociedade?
Para que cumpram um papel
emancipador, é preciso propiciar condições às IES: recursos adequados, pessoal
bem formado, autonomia. Indivíduos com formação crítica podem tornar-se
protagonistas de sua própria história, individual e coletiva. A pesquisa
precisa ser patrocinada e não pode ser submetida a retornos rápidos, encurtamento
dos prazos de formação na pós-graduação, enxugamento curricular, interesses
próprios do mercado e do tempo da lucratividade das empresas.
Numa era em que o saber se
torna cada vez mais fluido e fragmentário em todas as áreas, formar
profissionais capazes de formular perguntas e respostas originais, antes de ser
uma demanda do mundo em que se vive, é uma necessidade da sociedade que se
almeja construir. Conhecimentos apenas adaptados a ritmos e forças do mundo
atual não bastam. É preciso abrir portas para o futuro.
A recente greve dos servidores
federais na área da educação pode ser tomada como exemplo: 1) de descaso
governamental, que permite a situação chegar a limites intoleráveis (sua
proposta desestrutura a carreira, descaracteriza o regime de trabalho de
dedicação exclusiva, fere a autonomia universitária e sinaliza a retirada de
direitos expressos em legislação anterior)[9];
e 2) de resistência dos trabalhadores organizados em contraposição a situações
adversas, o que demonstra a possibilidade de construir as alternativas
necessárias.
É urgente reverter o retrocesso
na educação superior!
*Professor da Faculdade de
Educação da USP e vice-presidente da Associação dos Docentes da USP
** Professor da Faculdade de Filosofia
e Ciências da Unesp, campus de Marília.
Fonte: Le
Monde Diplomatique
[1] Ver Lei n. 9.394, de 20
de dezembro de 1996 (LDB), art. 20, incisos I a IV.
[2] A Sinopse estatística
da educação superior 2010 (Inep) não traz dados que permitam diferenciar as IES
privadas.
[3] Atende-se, assim, aos
“critérios do mercado”, em duplo sentido: a flexibilização da formação resulta
em mão de obra precarizada e com custo rebaixado, da mesma forma que permite a
operação mais lucrativa das próprias IES privadas, as grandes responsáveis por
esse tipo de formação.
[4] Consulte os dezessete
volumes dos Cadernos Mare da Reforma do Estado, Brasília, 1997-1998.
[5] Rudi Cassel, “Terceirização
no serviço público”, Valor Econômico, 18 jul. 2012, p.E2.
[6] “Em síntese, a estratégia de
publicização visa a aumentar a eficiência e a qualidade dos serviços, atendendo
melhor o cidadão-cliente a um custo menor” (Cadernos Mare n.2, Brasília, 1998,
p.12).
[7] Sugerimos ver a
“justificação” do Projeto de Lei n. 7.639, de 2010, da deputada Maria do
Rosário (PT-RS) e outros. Trata das Instituições Comunitárias de Educação
Superior (Ices).
[8] A maior parte também decorre de
contratos (terceirizações) com a iniciativa privada.
[9] Decreto n. 94.664, de 23 de julho de
1987 (PUCRCE). Aprova o Plano Único de Classificação e Retribuição de Cargos e
Empregos de que trata a Lei n. 7.596, de 10 de abril de 1987.
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