Porta-voz dos yanomami, Davi Kopenawa se diz incansável na luta
pelos direitos de seu povo
ELAÍZE FARIAS
Aldeia Watoriki, Barcelos (AM)
02 de Novembro de 2012
Davi Kopenawa: "Ela (Dilma) não conhece nossa floresta, a
nossa terra, a realidade do povo Yanomami. Só conhece o papel, a lei. Mas ela
não está enxergando" (Odair Leal)
Quando os yanomami estavam
quase perdendo a guerra para os garimpeiros e políticos que lhe apoiavam, no
final da década de 80, Davi Kopenawa, 58, foi às Nações Unidas. As tentativas
de homologação já se arrastavam há vários anos, sem uma definição do governo
brasileiro.
Com apoio de lideranças
indígenas que despontavam no cenário político do país – como Ailton Krenak e
Álvaro Tukano – Davi foi a Nova York, nos Estados Unidos, e deu o seguinte
recado: “Aqui é ONU. ONU manda tudo. ONU não é só para olhar Paris, Japão,
Londres. Mas para também olhar para a cidade e comunidade pequena. E também
para olhar o povo yanomami. A ONU deve conversar com o governo brasileiro para
que ele resolva a nossa demarcação e deixar o yanomami ficar tranquilo”.
A repercussão da fala de Davi
reverberou no auditório das Nações Unidas, na mídia internacional e, claro,
veio parar no Brasil e nos bastidores do poder, em Brasília.
Porta-voz e mais conhecida
liderança do povo yanomami, Davi diz que só viaja muito porque precisa defender
seu povo. Ele salienta que sua “casa mesmo” é a aldeia Watoriki, na região do
rio Demini, no Estado do Amazonas, divisa com Roraima.
Sério quando está à frente de
grandes discussões, Davi tem uma faceta divertida e espirituosa que a
reportagem observou nos quatro dias em que passou na aldeia Watoriki. Davi
também tem pendores para o xamanismo, inspirado nos ensinamentos de seu sogro,
Lourival.
Na assembleia da Hutukara, Davi
andava ocupado. Se dividia com inúmeras e diversificadas tarefas: assembleia,
encontros, debates, organização da festa para os visitantes, maestro das danças
e até as coordenadas para as refeições. Davi estava em todos os lugares.
No intervalo de uma dessas
atividades, sentado em um tronco de árvore na entrada da aldeia, Davi conversou
com a reportagem de A CRÍTICA, durante o qual falou sobre sua história de luta,
a batalha pela demarcação, garimpo e sobre a tentativa do Congresso Nacional de
regulamentar a mineração em terra indígena. Davi não poupou ninguém, nem a
presidente Dilma Rousseff, considerada por ele como “uma inimiga dos índios”.
Leia a entrevista:
Como
você entrou na luta em defesa do povo yanomami?
Assumi a responsabilidade para
defender meu povo. O não indígena é o Governo Federal. Ele que manda no Brasil.
Mas eu não acredito. Manda construir a cidade, a estrada. Eu fico pensando,
querendo descobrir, “será que esse homem é como Deus”? Era assim que eu pensava
no começo. Eu falava só um pouco português.
Como
você decidiu enfrentar as dificuldades vividas pelo seu povo?
Eu pensava que o presidente da
Funai protegia nós. Aí eu pensei: “Vou enfrentar o homem-golias”. O
homem-golias é um homem grande. Um homem que não ama a terra, não ama o povo
indígena, não ama a beleza da floresta. Ele quer derrubar tudo. Estão usando as
máquinas pesadas, usando muita gente trabalhadora para trabalhar para ele. E ganhando
pouco. E usando como escravo. Eu fui descobrindo. Eu fui percebendo essa
situação. Percebi a destruição dos rios, desmatamentos. Aqui não chegou, eu que
andava, acompanhava com os outros povos indígenas.
Nessa
época você começou a perceber a luta de outros povos indígenas?
Sim, eu acompanhei a luta dos
macuxi, dos wapichana, ingaricó (Roraima) e outros parentes que lutavam em
Brasília, como os kaiapó, os xavante. Vi que davam um pedaço pequeno para eles.
Eu ficava pensando, “acho que não vai dar certo para o yanomami. O yanomami
precisa de uma terra grande”. Assim que enxerguei.
Os
problemas reais dos yanomami eram os garimpeiros então?
É, comecei a ver a entrada dos
garimpeiros na terra yanomami. Vi que o homem branco não tem pensamento, não
pensa no futuro, só pensa nele. Eu fui acompanhando assim. Os invasores então
começaram a entrar na terra yanomami. Pescadores, caçadores, fazendeiros,
garimpeiros, tudo foram diretamente para a terra de Surucucu. Eu fui no garimpo
ver o que estavam fazendo. Encontrei cheio de buraco, tirando as areias, as
pedras, jogavam fora, e os igarapés parados. E a poluição fica dentro da água.
Mercúrio, óleo, gasolina, latas de lixo. A floresta tem vida. A floresta não
nasce mais. A visão do povo indígena era assim. Aí descobri tudo. Que o homem
branco desfaz a mata, maltrata nosso País.
Depois
de ver tudo, você também se engajou na luta?
Em 1975 comecei a lutar. E o
povo não sabia que eu estava lutando. O não índio fica me olhando. Vendo que
estou fazendo, vendo que estou reclamando. “Olha branco, não é assim”, eu
dizia. “Não é bom para branco fazer isso, destruir. Se nós, yanomami, deixar
invadir tudo vai morrer muito meu povo”, falava. Aí comecei a andar para
reclamar em Brasília. Comecei a viajar com outras lideranças: Ailton Krenak,
Jorge Terena, Álvaro Tukano. Eles me explicavam: “Olha Davi, os brancos são
maus. Maltratam nosso País. Nós vamos lutar. Você e nós”. Eu decidi lutar por
causa do meu povo, não por causa de mim.
Que
tipo de atividades que vocês, lideranças indígenas, realizavam?
A gente falava com autoridades.
A Funai não entendia, ficava só prometendo. Dizendo que ia tirar garimpeiro,
sempre repetindo como o branco invadiu nosso País. O branco não descobriu. Nós,
povos indígenas, já protegemos muitos anos. Chegou 1986. Grandes invasores
entraram. O governo José Sarney e o presidente da Funai, Romero Jucá,
derramaram o garimpeiro na terra na terra yanomami. Quarenta mil garimpeiros
entraram na maloca Papiú. Eu me reforcei. Me encorajei. Vou lutar. Esse é
direito meu. Eu ia para lá, voltava para
cá. Difícil deslocamento. Eu não tenho próprio transporte, não tenho recurso.
Pagavam para mim.
O
que você viu quando garimpo chegou na terra yanomami?
Garimpeiro desceu muito.
Chegaram 40 mil, levaram avião, helicóptero, bebida, comida. E assim que
aconteceu. Começou a adoecer meus parentes. Malária, tuberculose, doenças
venéreas. O homem branco é cheio de doença. Sangue dele é contaminado. Os
parentes morriam muito na cidade e na comunidade. Eu fiquei firme. Sem baixar a
cabeça e acreditando na força da natureza.
Como
você foi parar nas Nações Unidas?
O Ailton Krenak escreveu uma
carta e enviou para os Estados Unidos, na ONU. A ONU recebeu e leu que yanomami
estava morrendo. Que precisava de apoio. Em pouco tempo, chegou notícia boa do
amigo Ailton. “A ONU recebeu a sua carta. Você está lutando sozinho”, me disse
ele. Recebi o Prêmio Global da ONU. Esse prêmio abriu meu espaço, meu caminho.
Eu saí do meu País. Fui primeiro para a Europa. Contei que o povo yanomami
precisava da ajuda.
E
como o governo brasileiro reagia?
O governo brasileiro queria
esconder, deixar a gente morrer sozinho, sem ninguém saber. Eu que levei, em
nome do meu povo, a notícia para outro mundo. Foi assim que me reconheceram,
que foi se espalhando nos jornais. Tenho uma amiga, Cláudia Andujar. Pessoa
muito corajosa, muito inteligente. Ela me levava para falar com os jornalistas.
Foi assim que espalhou o nome do yanomami. Fizeram uma grande campanha no mundo
inteiro, fizemos uma carta para o Governo Federal. O governo não queria deixar
o índio sair do país, proibia porque tem medo.
O
que você falou na ONU?
Tive oportunidade de falar
tudinho que acontecia com meu povo. Disse que a ONU não era só pra olhar para
Paris, Japão, Londres. Mas sim para olhar cidade e comunidade pequena. E olhar
o povo yanomami. Pedi para a ONU conversar com o governo brasileiro para
resolver a demarcação da terra. Eu queria resposta, não queria promessa. “Você
vai resolver, você vai mandar?, eu disse. Eu andei muito, mas foi bom.
Na
época, o governo brasileiro queria demarcar da terra yanomami em lotes, não
era?
Quando foi homologado, o
Fernando Collor me chamou em Brasília para entrar no palácio. Quatro yanomami
foram lá. Registrou a terra como criança nasce. Esse documento não está comigo,
está no governo. Mas não aceitei que fosse em lote. Eles queriam 19 ilhas, tudo
pequeno. E o meio? Vai ser a estrada, vai encher de fazendeiro, garimpeiro.
Eles queriam maloquinha. Onde íamos caçar, procurar comida, colocar um roçado?
Eles queriam que yanomami ficasse em pequeno sítio. Yanomami precisa de caça:
anta, queixada, catitu, peixe. Reclamei logo. Eu queria área única, contínua,
grande.
E
era assim que muita gente queria que fosse a Raposa Serra do Sol também, tudo
em ilhas.
A Raposa Serra do Sol aprendeu
com nós. Os macuxi aceitavam terra pequena, cheia de fazendeiro e arrozeiro.
Mas depois os macuxi pensaram: “vamos lutar como o Davi lutou”. Eu disse que
podia dar apoio, lutar com os macuxi. Lutamos até conseguir.
O
que você acha da proposta de autorizar a mineração na terra indígena? Como vai
ser aqui na sua terra?
A entrada da mineração em terra
yanomami vai derrubar milhares de árvores grandes e pequenas. Os igarapés vão
sujar tudo. Vai fazer buraco, muita gente vai morar, vai gostar do lugar, vai
trazer suas famílias, empregados deles. Vai criar uma cidade pequena. Manaus
era pequena. Agora cidade é grande. Grandes máquinas para nós representam os
bichos, um monstro grande. E muita gente vai entrar, muitos países vêm para cá.
Todo mundo quer pegar ouro, diamante e outras pedras preciosas. Os problemas
aconteceram, vencemos, mas estão se repetindo. Agora o povo está comemorando. A
luta vai continuar.
Por
que você acha que o governo quer regulamentar a mineração?
Nós não queremos a
regulamentação. Para que? O mundo está de olho, empresas. Ando de Boa Vista para São Paulo e não há uma
terra sem estar mexida, derrubada. Por que o governo não faz lá? Onde não tem
índio. O governo só quer mexer onde tem índio. Em 2012, os políticos, os
governos, o mundo geral, estão lutando. O governo rico, com bastante dinheiro e
força, estão tentando mexer a terra yanomami. Eles estão unidos. Apoiam o
governo Dilma. A Dilma não é amiga do índio. Ela é inimiga. Ela não conhece a
nossa floresta, a nossa terra. Ela não conhece a realidade do povo yanomami, a
beleza da floresta. Ela só conhece o papel, a lei. Mas ela não está enxergando.
O pensamento dela é só pra destruir o subsolo.
E
ainda tem o problema do garimpo ilegal.
Eu não estou conseguindo tirar
os que já estão aqui. Nem a Funai. A Polícia Federal só se mexe quando índio
está derramando sangue, recebendo tiro. Quando índio está vivo, ela não liga.
Mas a nossa maior preocupação é com a mineração e com as empresas grandes. Já
tem empresa interessada.
Davi,
vamos falar sobre você um pouco. Onde você nasceu?
Eu nasci na cabeceira do rio
Toototobi, a 60 quilômetros daqui dessa aldeia onde moro agora. A minha
comunidade veio andando. Vem mudando. Meu povo é nômade. Depois vai descendo.
Eu sou assim. Quando eu era pequeno,
eles mudaram. Não voltou mais.
Você
fundou a aldeia Watoriki?
Aqui estou há 20 anos. Eu
juntei eles (os índios), estava sendo criada a estrada de Manaus-Caracaraí.
Fiquei aqui, trabalhando, com meu sogro Lourival. Hoje não tenho um lugar
certo. Eu moro aqui, é minha casa. Quando criamos a Hutukara, com sede em Boa Vista
(RR), ela fica na frente da comunidade. Fico na beira da rio Branco.
Perfil:
Nome:
Davi Kopenawa.
Idade:
58
Atividade:
Liderança do povo indígena yanomami e xamã.
Algumas
premiações: Global 500 Award das ONU (1988) e menção honrosa especial do Prêmio
Bartolomé de Las Casas outorgada pelo governo espanhol (2008).
Fonte: A
Crítica
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