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terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Ucrânia: da insurreição ao golpe

Carlos Serrano Ferreira*
23 Fevereiro 2014

O golpe se consolidou hoje na Ucrânia. Tenho alertado desde o início deste processo que nessa ex-república soviética não ocorria um processo revolucionário, ao contrário do que diz a mídia internacional, como atestam os depoimentos dos mais variados setores organizados da esquerda naquele país, de anarquistas aos comunistas.

 A confusão se relaciona ao caráter de massas do movimento dos primeiros momentos. Contudo, isto não basta para definir um processo revolucionário, como provam os movimentos de massas que levaram ao poder Mussolini ou Hitler. Para ser algo mais que uma insurreição – que pode ser tanto progressista como reacionária – deve entrar na conta o sentido dessas manifestações e suas direções.

O processo ucraniano começou como uma insurreição de massas e se tornou ao longo do tempo, com seu esvaziamento e captura pelos setores de ultradireita, um golpe, que alcançou um ponto alto na queda de Yanukovich hoje, mas que não tende a se esgotar nisto. Para entender os fatos de hoje e o caráter do processo é preciso voltar atrás no tempo.


Com o fim da URSS a Ucrânia se tornou independente e passou por processos sociais e econômicos muito parecidos com as demais ex-repúblicas soviéticas: destruição e desorganização econômicas que ampliaram as desigualdades sociais e ampliaram a pobreza das massas e permitiram que setores secundários do antigo aparato estatal se aproveitassem para se apropriar dos espólios do Estado em desmoronamento e enriquecessem. Estes são conhecidos como oligarcas. As privatizações que lhes fizeram a riqueza foram um escândalo só e totalmente corrompidas. Estes grandes monopolistas floresceram através de suas relações com o aparato estatal e por meio de negócios escusos. Contudo, como o Estado não pode garantir o funcionamento dos negócios de todos os oligarcas, as disputas em torno ao controle do Estado de cada um dos "clãs" são constantes, e esta tem sido a marca da história ucraniana desde 1991, como ocorreu em 2004, na chamada "Revolução" Laranja, e agora novamente.

A principal líder do maior partido oposicionista (Batkivshchyna) a ex-primeira-ministra Yulia Timoshenko é um dos exemplos dos oligarcas, tendo sido presa em 2001 e em 2011 por seus negócios escusos. Ela emergiu através de um golpe contra as finanças do Estado, em parceria com o então primeiro-ministro, hoje também preso nos EUA, Pavlo Lazarenko, especulando com o preço do gás russo e em parceria com o chamado clã de Dnipropetrovsk, liderado pelo então presidente Kuchma. Ela entrou em desgraça quando Kuchma passou a se relacionar com outros clãs locais, incluindo o clã de Donetsk (do sudeste do país). Este é encabeçado pelo homem mais rico do país e um dos cinqüenta mais ricos do mundo, acusado de ligação com a máfia, Rinat Leonidovych Akhmetov, um dos grandes patrocinadores do Partido das Regiões, de Viktor Yanukovich, que é de Donestk.

A "Revolução" Laranja se assemelhou às outras revoluções coloridas, particularmente ser uma disputa entre setores oligárquicos emersos do aparato estatal. Isto se repetiu novamente agora, nos eventos do chamado EuroMaidan, de fins de 2012 e início de 2013.

Sobre a disputa entre estas frações da oligarquia incidem as potências imperialistas, apadrinhando cada setor em sua disputa geopolítica e para colonizar economicamente este país, com algumas das terras mais férteis do mundo e com um razoável parque industrial no Leste. Timoshenko se aproximou da UE e dos EUA, enquanto outra fração, ligada aos interesses industriais e da oligarquia do sul e leste se aproximaram naturalmente da Rússia.

Contudo, até as portas da assinatura do Acordo de Associação com a UE, houve uma convergência das oligarquias em torno ao mesmo. Mas, as pressões moscovitas, através de um embargo; a crise econômica – para qual a UE não a oferecia nenhum tipo de saída – e os próprios termos do acordo levaram ao recuo presidencial e ao adiamento do mesmo. Os termos do AA significavam o fim das relações econômicas com a Rússia e as outras ex-repúblicas soviéticas participantes da União Aduaneira, principal destino das exportações ucranianas, principalmente industriais, mas também das importações, como do gás russo. Mas, não só isso: significaria a desindustrialização do país, que se tornaria uma enorme fazenda fornecedora de produtos primários para a Alemanha; e os custos de adequação às normas da UE seriam de insustentáveis 165 bilhões de euros (em Portugal 165 mil milhões de euros).

O tamanho do retrocesso atingiria em cheio as oligarquias do sul e do leste, financiadores do Partido das Regiões. Não só isso: atingiria a base eleitoral principal desse partido, a população dessas duas regiões. Pela história ucraniana, sendo sempre dividida entre o Leste e o Oeste, tornou-se muito diferente: as partes leste e sul, mais industrializadas, são ligadas culturalmente e linguisticamente à Rússia; a parte norte e oeste são mais agrárias e de língua ucraniana. Do ponto de vista econômico a associação com a UE seria terrível, e para a oligarquia do Sul e do Leste seria um suicídio. O embargo russo só deixou isto claro.

A Rússia se aproveitou e estendeu a mão à Yanukovich e abriu os cofres e usou sua principal arma: o preço do gás. Esta reaproximação com a Rússia e a negação do AA com a UE levou à revolta popular nas regiões norte e oeste do país, que já se acumulava contra a fração oligárquica governante, pela incapacidade de superar a crise econômica e pelos laços com a Rússia, com quem estas regiões queriam se afastar. Somem-se a isto as ilusões de progresso que as frações oligárquicas ligadas aos EUA e à UE disseminavam sobre um possível acordo com o bloco imperialista europeu. Como a Grécia e Portugal e outros países do Leste mostram, não passam do que são, meras ilusões. Mas, quando as idéias ganham as massas, como já dizia Marx na introdução a sua "Crítica à filosofia do direito de Hegel", elas se tornam forças materiais.

O primeiro a ficar claro, então, é que nunca houve uma maioria pró-UE em toda a Ucrânia, como mostram as pesquisas do instituto de pesquisa independente ucraniano Research & Branding Group (R&B): apenas 46% nacionalmente apoiavam o acordo com a UE, sendo majoritário o apoio apenas no norte e oeste. Da mesma maneira, o EuroMaidan só era apoiado majoritariamente nessas regiões, enquanto era rejeitado pela maioria esmagadora do leste e sul, que apóiam esmagadoramento a União Aduaneira da Rússia.

O segundo é que o EuroMaidan se moveu desde o início por bandeiras pouco claras, que se materializavam por uma progressiva rejeição ao governo e sua fração oligárquica, mas regressivamente não ao conjunto da oligarquia; uma rejeição à aproximação com o imperialismo russo, mas em defesa de um acordo que estabeleceria a colonização do país pelo imperialismo europeu e teria conseqüências ainda mais devastadoras para a economia e o povo ucraniano; em nenhum momento esteve colocado como pauta nada que envolvesse direitos dos trabalhadores ou posições de classe. De fato, essa confusão serviu unicamente para que com o tempo a fração oligárquica oposicionista ligada aos imperialismos estadunidense e alemão passagem a dirigir as manifestações em favor de seus próprios interesses, seqüestrando o movimento insurrecional e convertendo-o num golpe.

Assumiram a direção então o partido de Timoshenko (ligado ao imperialismo estadunidense), o UDAR do ex-boxeador Vitali Klitschko, ligado à Alemanha, e o Svoboda (que até alguns atrás se chamava Partido Nazista da Ucrânia). Klitschko nem mesmo tem moradia fixa na Ucrânia, mas mora na Alemanha, e seu partido foi criado e financiado pelos conservadores alemães da democracia cristã, que salivam com as possibilidades de saquear as riquezas ucranianas. O líder do Svoboda, Oleh Tyannybok é um fascista conhecido, anti-semita e russófobo raivoso.

Destas três forças, o setor mais organizado e com mais militância é o partido fascista, que deu a tônica nos últimos tempos. A derrubada da estátua do Lênin, festejada pela grande mídia mundial, foi perpetrada pelos membros do Svoboda e rejeitada por 70% da população de Kiev, sendo apoiada por apenas 13%, como mostra a pesquisa da R&B.

Mas, há inclusive mais forças nessas manifestações, existindo claro alguns militantes de esquerda, mas que são ultra-minoritários e não dão de forma nenhuma a dinâmica do movimento. Há inclusive um setor que, junto aos militantes do Svoboda, foram os responsáveis centrais pelos distúrbios violentos e quebra-quebras incendiários, e que se intitula apenas de "A Direita". Este setor é contrário aos acordos com a UE e à Rússia, considerando o Svoboda muito recuado e estão no movimento para desestruturar o regime e tomar o poder.

A transição da insurreição para o golpe passa também pelo esvaziamento do movimento, que ocorreu conforme o tempo passou e os setores fascistas começaram a se tornar majoritários e atuar de forma mais violenta. Se no início de dezembro o movimento era apoiado nacionalmente por 49% e rejeitado por 45%, no fim desse mesmo mês era rejeitado por 50% e apoiado por 45%. Nessa mesma pesquisa, 43% achavam que os resultados seriam negativos e apenas 31% que seriam positivos; 47% consideravam o acordo com a Rússia fechado por Yanukovich positivo e apenas 27% negativo e o candidato com mais intenções de votos era o próprio presidente (com 25%), apesar de o resultado ser muito fracionado. Numa pesquisa entre 25 e 27 de janeiro deste ano da R&B apontava que 51% eram contrários ao EuroMaidan, apenas 44% favoráveis, mas, o mais importante, 60% eram contrários à tomada dos prédios públicos e apenas 32% eram favoráveis e apenas 20% acreditavam que não havia risco de uma guerra civil.

Hoje a insurreição capturada pelas oligarquias se confirmou enquanto golpe, com um impeachment relâmpago. Isto é o resultado de um acordo das duas frações oligárquicas, temerosas com o crescimento do desafio dos fascistas nas ruas. Afinal, o crescimento do fascismo é um fato por todo o Leste Europeu, como a ascensão do Jobbik húngaro demonstra. Os resultados reacionários para o povo ucraniano já podem ser sentidos: além da libertação da oligarca Yulia Timoshenko; as ameaças de pogrom contra judeus crescem e o rabino Moshe Reuven Azman já sugeriu aos judeus que deixem o país; o afastamento completo do acordo de ajuda russo, que tinha ótimas condições; e a UE sinaliza com a liberação do empréstimo do FMI acertado em2011, que se baseia em draconianas contrapartidas, como a subida em 40% do preço do gás para as residências, o que levaria de imediato no inverno ucraniano milhares de desempregados e aposentados à morte, pois não teriam condições de pagar suas contas de calefação.

Porém, o jogo não terminou. Não se sabe como os fascistas atuarão, se continuarão em seus planos de desestabilização, mas tudo indica que sim. O setor "A Direita" já anunciou em comunicado à Reuters que continuará com as manifestações. Tentarão se aproveitar do vazio de poder. Não está descartada nem mesmo a volta de Yanukovich nas próximas eleições de 25 de maio, apesar de que os golpistas provavelmente o impedirão de concorrer, senão o prenderem. A guerra civil parece mais longe, mas a divisão do país, ao menos da Criméia, de maioria russa e onde está a importante base naval russa do mar Negro, é possível. Vladislav Surkov, conselheiro do Kremlin que esteve por trás dos intentos das regiões separatistas da Abkházia e Ossétia do Sul na Geórgia foi visto andando por Kiev e Criméia. O cenário é ainda incerto. Só é certo que o povo ucraniano sairá pior do que entrou nessa espiral de caos. (1)

Nota:

(1)   Para saber mais sobre os aspectos históricos, as forças políticas principais do EuroMaidan e os interesses das várias potências na crise ucraniana, veja meu artigo que sairá na edição de março de História & Luta de Classes, intitulado "A Batalha pela Ucrânia".
* Carlos Serrano é cientista social, professor da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro e secretário executivo da REGGEN (Rede de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável), cátedra da UNESCO e da Universidade das Nações Unidas. É atualmente diretor da Regional I do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro e é membro do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). É militante desde a adolescência, tendo sido diretor do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal Fluminense e Secretário Geral da União Estadual dos Estudantes do Rio de Janeiro, entidade com a qual rompeu em 2005 por discordâncias com seu rumo governista.
 
Fonte: Diário Liberdade

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