23 Fevereiro 2014
O golpe se consolidou hoje na
Ucrânia. Tenho alertado desde o início deste processo que nessa ex-república
soviética não ocorria um processo revolucionário, ao contrário do que diz a
mídia internacional, como atestam os depoimentos dos mais variados setores
organizados da esquerda naquele país, de anarquistas aos comunistas.
A confusão se relaciona ao caráter de massas
do movimento dos primeiros momentos. Contudo, isto não basta para definir um
processo revolucionário, como provam os movimentos de massas que levaram ao
poder Mussolini ou Hitler. Para ser algo mais que uma insurreição – que pode
ser tanto progressista como reacionária – deve entrar na conta o sentido dessas
manifestações e suas direções.
O processo ucraniano começou
como uma insurreição de massas e se tornou ao longo do tempo, com seu
esvaziamento e captura pelos setores de ultradireita, um golpe, que alcançou um
ponto alto na queda de Yanukovich hoje, mas que não tende a se esgotar nisto.
Para entender os fatos de hoje e o caráter do processo é preciso voltar atrás
no tempo.
Com o fim da URSS a Ucrânia se
tornou independente e passou por processos sociais e econômicos muito parecidos
com as demais ex-repúblicas soviéticas: destruição e desorganização econômicas
que ampliaram as desigualdades sociais e ampliaram a pobreza das massas e
permitiram que setores secundários do antigo aparato estatal se aproveitassem
para se apropriar dos espólios do Estado em desmoronamento e enriquecessem.
Estes são conhecidos como oligarcas. As privatizações que lhes fizeram a
riqueza foram um escândalo só e totalmente corrompidas. Estes grandes
monopolistas floresceram através de suas relações com o aparato estatal e por
meio de negócios escusos. Contudo, como o Estado não pode garantir o
funcionamento dos negócios de todos os oligarcas, as disputas em torno ao
controle do Estado de cada um dos "clãs" são constantes, e esta tem
sido a marca da história ucraniana desde 1991, como ocorreu em 2004, na chamada
"Revolução" Laranja, e agora novamente.
A principal líder do maior
partido oposicionista (Batkivshchyna) a ex-primeira-ministra Yulia Timoshenko é
um dos exemplos dos oligarcas, tendo sido presa em 2001 e em 2011 por seus
negócios escusos. Ela emergiu através de um golpe contra as finanças do Estado,
em parceria com o então primeiro-ministro, hoje também preso nos EUA, Pavlo
Lazarenko, especulando com o preço do gás russo e em parceria com o chamado clã
de Dnipropetrovsk, liderado pelo então presidente Kuchma. Ela entrou em
desgraça quando Kuchma passou a se relacionar com outros clãs locais, incluindo
o clã de Donetsk (do sudeste do país). Este é encabeçado pelo homem mais rico
do país e um dos cinqüenta mais ricos do mundo, acusado de ligação com a máfia,
Rinat Leonidovych Akhmetov, um dos grandes patrocinadores do Partido das
Regiões, de Viktor Yanukovich, que é de Donestk.
A "Revolução" Laranja
se assemelhou às outras revoluções coloridas, particularmente ser uma disputa
entre setores oligárquicos emersos do aparato estatal. Isto se repetiu
novamente agora, nos eventos do chamado EuroMaidan, de fins de 2012 e início de
2013.
Sobre a disputa entre estas
frações da oligarquia incidem as potências imperialistas, apadrinhando cada
setor em sua disputa geopolítica e para colonizar economicamente este país, com
algumas das terras mais férteis do mundo e com um razoável parque industrial no
Leste. Timoshenko se aproximou da UE e dos EUA, enquanto outra fração, ligada
aos interesses industriais e da oligarquia do sul e leste se aproximaram
naturalmente da Rússia.
Contudo, até as portas da
assinatura do Acordo de Associação com a UE, houve uma convergência das
oligarquias em torno ao mesmo. Mas, as pressões moscovitas, através de um
embargo; a crise econômica – para qual a UE não a oferecia nenhum tipo de saída
– e os próprios termos do acordo levaram ao recuo presidencial e ao adiamento
do mesmo. Os termos do AA significavam o fim das relações econômicas com a
Rússia e as outras ex-repúblicas soviéticas participantes da União Aduaneira,
principal destino das exportações ucranianas, principalmente industriais, mas
também das importações, como do gás russo. Mas, não só isso: significaria a
desindustrialização do país, que se tornaria uma enorme fazenda fornecedora de
produtos primários para a Alemanha; e os custos de adequação às normas da UE
seriam de insustentáveis 165 bilhões de euros (em Portugal 165 mil milhões de
euros).
O tamanho do retrocesso
atingiria em cheio as oligarquias do sul e do leste, financiadores do Partido
das Regiões. Não só isso: atingiria a base eleitoral principal desse partido, a
população dessas duas regiões. Pela história ucraniana, sendo sempre dividida
entre o Leste e o Oeste, tornou-se muito diferente: as partes leste e sul, mais
industrializadas, são ligadas culturalmente e linguisticamente à Rússia; a
parte norte e oeste são mais agrárias e de língua ucraniana. Do ponto de vista
econômico a associação com a UE seria terrível, e para a oligarquia do Sul e do
Leste seria um suicídio. O embargo russo só deixou isto claro.
A Rússia se aproveitou e
estendeu a mão à Yanukovich e abriu os cofres e usou sua principal arma: o
preço do gás. Esta reaproximação com a Rússia e a negação do AA com a UE levou
à revolta popular nas regiões norte e oeste do país, que já se acumulava contra
a fração oligárquica governante, pela incapacidade de superar a crise econômica
e pelos laços com a Rússia, com quem estas regiões queriam se afastar. Somem-se
a isto as ilusões de progresso que as frações oligárquicas ligadas aos EUA e à
UE disseminavam sobre um possível acordo com o bloco imperialista europeu. Como
a Grécia e Portugal e outros países do Leste mostram, não passam do que são,
meras ilusões. Mas, quando as idéias ganham as massas, como já dizia Marx na
introdução a sua "Crítica à filosofia do direito de Hegel", elas se
tornam forças materiais.
O primeiro a ficar claro,
então, é que nunca houve uma maioria pró-UE em toda a Ucrânia, como mostram as
pesquisas do instituto de pesquisa independente ucraniano Research &
Branding Group (R&B): apenas 46% nacionalmente apoiavam o acordo com a UE,
sendo majoritário o apoio apenas no norte e oeste. Da mesma maneira, o
EuroMaidan só era apoiado majoritariamente nessas regiões, enquanto era
rejeitado pela maioria esmagadora do leste e sul, que apóiam esmagadoramento a
União Aduaneira da Rússia.
O segundo é que o EuroMaidan se
moveu desde o início por bandeiras pouco claras, que se materializavam por uma
progressiva rejeição ao governo e sua fração oligárquica, mas regressivamente
não ao conjunto da oligarquia; uma rejeição à aproximação com o imperialismo
russo, mas em defesa de um acordo que estabeleceria a colonização do país pelo
imperialismo europeu e teria conseqüências ainda mais devastadoras para a
economia e o povo ucraniano; em nenhum momento esteve colocado como pauta nada
que envolvesse direitos dos trabalhadores ou posições de classe. De fato, essa
confusão serviu unicamente para que com o tempo a fração oligárquica
oposicionista ligada aos imperialismos estadunidense e alemão passagem a
dirigir as manifestações em favor de seus próprios interesses, seqüestrando o
movimento insurrecional e convertendo-o num golpe.
Assumiram a direção então o
partido de Timoshenko (ligado ao imperialismo estadunidense), o UDAR do
ex-boxeador Vitali Klitschko, ligado à Alemanha, e o Svoboda (que até alguns
atrás se chamava Partido Nazista da Ucrânia). Klitschko nem mesmo tem moradia
fixa na Ucrânia, mas mora na Alemanha, e seu partido foi criado e financiado
pelos conservadores alemães da democracia cristã, que salivam com as possibilidades
de saquear as riquezas ucranianas. O líder do Svoboda, Oleh Tyannybok é um
fascista conhecido, anti-semita e russófobo raivoso.
Destas três forças, o setor
mais organizado e com mais militância é o partido fascista, que deu a tônica
nos últimos tempos. A derrubada da estátua do Lênin, festejada pela grande
mídia mundial, foi perpetrada pelos membros do Svoboda e rejeitada por 70% da
população de Kiev, sendo apoiada por apenas 13%, como mostra a pesquisa da
R&B.
Mas, há inclusive mais forças
nessas manifestações, existindo claro alguns militantes de esquerda, mas que
são ultra-minoritários e não dão de forma nenhuma a dinâmica do movimento. Há
inclusive um setor que, junto aos militantes do Svoboda, foram os responsáveis
centrais pelos distúrbios violentos e quebra-quebras incendiários, e que se
intitula apenas de "A Direita". Este setor é contrário aos acordos
com a UE e à Rússia, considerando o Svoboda muito recuado e estão no movimento
para desestruturar o regime e tomar o poder.
A transição da insurreição para
o golpe passa também pelo esvaziamento do movimento, que ocorreu conforme o
tempo passou e os setores fascistas começaram a se tornar majoritários e atuar
de forma mais violenta. Se no início de dezembro o movimento era apoiado
nacionalmente por 49% e rejeitado por 45%, no fim desse mesmo mês era rejeitado
por 50% e apoiado por 45%. Nessa mesma pesquisa, 43% achavam que os resultados
seriam negativos e apenas 31% que seriam positivos; 47% consideravam o acordo
com a Rússia fechado por Yanukovich positivo e apenas 27% negativo e o
candidato com mais intenções de votos era o próprio presidente (com 25%),
apesar de o resultado ser muito fracionado. Numa pesquisa entre 25 e 27 de
janeiro deste ano da R&B apontava que 51% eram contrários ao EuroMaidan,
apenas 44% favoráveis, mas, o mais importante, 60% eram contrários à tomada dos
prédios públicos e apenas 32% eram favoráveis e apenas 20% acreditavam que não
havia risco de uma guerra civil.
Hoje a insurreição capturada
pelas oligarquias se confirmou enquanto golpe, com um impeachment relâmpago.
Isto é o resultado de um acordo das duas frações oligárquicas, temerosas com o
crescimento do desafio dos fascistas nas ruas. Afinal, o crescimento do
fascismo é um fato por todo o Leste Europeu, como a ascensão do Jobbik húngaro
demonstra. Os resultados reacionários para o povo ucraniano já podem ser
sentidos: além da libertação da oligarca Yulia Timoshenko; as ameaças de pogrom
contra judeus crescem e o rabino Moshe Reuven Azman já sugeriu aos judeus que
deixem o país; o afastamento completo do acordo de ajuda russo, que tinha
ótimas condições; e a UE sinaliza com a liberação do empréstimo do FMI acertado
em2011, que se baseia em draconianas contrapartidas, como a subida em 40% do
preço do gás para as residências, o que levaria de imediato no inverno
ucraniano milhares de desempregados e aposentados à morte, pois não teriam
condições de pagar suas contas de calefação.
Porém, o jogo não terminou. Não
se sabe como os fascistas atuarão, se continuarão em seus planos de
desestabilização, mas tudo indica que sim. O setor "A Direita" já
anunciou em comunicado à Reuters que continuará com as manifestações. Tentarão
se aproveitar do vazio de poder. Não está descartada nem mesmo a volta de
Yanukovich nas próximas eleições de 25 de maio, apesar de que os golpistas
provavelmente o impedirão de concorrer, senão o prenderem. A guerra civil
parece mais longe, mas a divisão do país, ao menos da Criméia, de maioria russa
e onde está a importante base naval russa do mar Negro, é possível. Vladislav
Surkov, conselheiro do Kremlin que esteve por trás dos intentos das regiões
separatistas da Abkházia e Ossétia do Sul na Geórgia foi visto andando por Kiev
e Criméia. O cenário é ainda incerto. Só é certo que o povo ucraniano sairá
pior do que entrou nessa espiral de caos. (1)
Nota:
(1) Para
saber mais sobre os aspectos históricos, as forças políticas principais do
EuroMaidan e os interesses das várias potências na crise ucraniana, veja meu
artigo que sairá na edição de março de História & Luta de Classes,
intitulado "A Batalha pela Ucrânia".
* Carlos Serrano é cientista social, professor da rede estadual de ensino
do Rio de Janeiro e secretário executivo da REGGEN (Rede de Economia
Global e Desenvolvimento Sustentável), cátedra da UNESCO e da
Universidade das Nações Unidas. É atualmente diretor da Regional I do
Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro e é
membro do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). É
militante desde a adolescência, tendo sido diretor do Diretório Central
dos Estudantes da Universidade Federal Fluminense e Secretário Geral da
União Estadual dos Estudantes do Rio de Janeiro, entidade com a qual
rompeu em 2005 por discordâncias com seu rumo governista.
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