A
morte do cinegrafista Santiago Andrade se torna arma política nas mãos de parte
da mídia e de parlamentares que pedem celeridade na votação do PL 499, que
tenta definir o crime de terrorismo no Brasil
“Posso afirmar que se há pessoas que estão recebendo para participar das manifestações são de grupos de direita”, afirma Juliana Brito, do Comitê Popular da Copa (Foto: Mídia Ninja)
No final do último mês de
janeiro, em uma das mesas de debate do Conexões Globais, em Porto Alegre, o
ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto
Carvalho, resumiu o sentimento da classe política em relação às manifestações
que viraram o país de ponta cabeça desde junho. “Passamos muito tempo para entender
o que aconteceu nas ruas, e ainda estamos tentando entender.”
O comportamento dos movimentos
sociais, permeado por novas táticas de ações nas ruas, como as sugeridas pelo
grupo Black Bloc, e ampliado pelo poder das redes sociais, se modificou para
além das passeatas repletas de coros ensaiados, faixas e bandeiras. O que se
viu foi uma série interminável de conflitos entre manifestantes e forças
policiais, que, sem conseguir dialogar com essa nova realidade, reagem com
força cada vez mais bélica.
De perto, outros dois atores
observam e tentam influenciar a opinião pública. Na mídia, discursos
apaixonados de setores diversos disputam a narrativa dos protestos desse ano
pré-Copa do Mundo. A resposta da classe política é tentar aprovar com
celeridade o Projeto de Lei 499, de 2013, que tipifica o crime de terrorismo no
país.
No fim da tarde do dia 6 de
fevereiro, no Rio de Janeiro, um episódio fomentou a sanha por repressão aos
protestos de rua. Um rojão acertou a cabeça de Santiago Andrade, cinegrafista
da TV Bandeirantes, durante uma manifestação contra o aumento da passagem de
ônibus no Rio de Janeiro. Quatro dias depois, o repórter faleceu.
Na última terça-feira (11), o
auxiliar de serviços Caio Silva de Souza, de 22 anos, se entregou à polícia e
confessou ter acendido o artefato que vitimou o cinegrafista. Ele recebeu o
rojão das mãos do tatuador Fábio Raposo, que teve seu depoimento envolvido em
uma tentativa de incriminar o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ).
Fábio Raposo recebeu apoio
jurídico do advogado Jonas Tadeu e de seu estagiário Marcelo Mattoso. Enquanto
o tatuador prestava depoimento, a ativista Elisa Quadros, conhecida como
Sininho, teria ligado para oferecer assistência ao jovem preso.
Segundo o estagiário, durante a
conversa, a ativista teria dito que Caio, autor do disparo que até então era
desconhecido, seria ligado a Freixo. Um dia depois, em depoimento na polícia,
Sininho negou que tenha feito essa associação e que conhecesse Caio de Souza. O
deputado também afirmou não conhecer o manifestante que acendeu o rojão.
O fato foi o estopim para que
Jonas Tadeu insinuasse, pela imprensa, que há “aliciadores” nas manifestações e
que “carros com rojões e máscaras estão à disposição dos manifestantes” antes
dos protestos. O advogado, que foi defensor do miliciano Natalino Guimarães,
alvo da CPI das Milícias presidida por Freixo, chegou a afirmar que jovens
recebem dinheiro para participar dos protestos.
Juliana Brito, pesquisadora e
integrante do Comitê Popular da Copa, rebate as acusações de Tadeu. “Posso
afirmar que se há pessoas que estão recebendo para participar das manifestações
são de grupos de direita, que querem outras coisas, que não são as nossas.”
Menos de 24 horas após envolver o parlamentar no episódio que vitimou o
cinegrafista da TV Bandeirantes, Tadeu pediu desculpas a Marcelo Freixo e
afirmou que estava “desestabilizado” quando divulgou a acusação.
A forma como a notícia foi
divulgada por parte da mídia reforçou a politização do fato. O portal G1 chegou
a publicar um título/texto que se tornou piada nas redes sociais. “Estagiário
de advogado diz que ativista afirmou que homem que acendeu o rojão era ligado
ao deputado estadual Marcelo Freixo.”
O professor de Direito
Constitucional da PUC-SP, Pedro Serrano, criticou o fato, em artigo publicado
no dia 10 de fevereiro, no site de Carta Capital. “O que significa um dos
suspeitos ser uma pessoa ‘ligada’ a Marcelo Freixo em relação ao delito em
questão? Certamente nada. Entretanto, o tom das notícias e comentários da
internet é de ‘suspeita’ de seu envolvimento no delito, sem evidência ou
indício algum. Uma imensa injustiça, própria de um mau jornalismo ‘ligado’ a
péssimas intenções políticas”, apontou o jurista.
Juliana comentou os efeitos da
repercussão do falecimento do cinegrafista. “A morte dele foi uma tragédia,
lamentamos muito, mas muitas pessoas foram mortas e feridas, majoritariamente
por ação das policias militares, e nenhuma dessas mortes recebeu esse
tratamento”. Para a ativista, “o fato foi usado pela mídia golpista, que também
não protege seus profissionais, a fim de justificar o recrudescimento da
violência policial e da repressão aos movimentos sociais.”
Celeridade legislativa. Casuísmo?
O senador Paulo Paim (PT-RS)
recuou de sua posição em relação ao PL 499 (Foto: Antônio Cruz/ABr)
Desde junho de 2013, 11 pessoas
faleceram durante as manifestações. Porém, o falecimento de Santiago Andrade é
o primeiro registro de morte provocada por um manifestante, desde o início das
jornadas. Ato contínuo, o plenário do Senado foi usado para atacar as manifestações
e pedidos por celeridade na votação do projeto, partindo inclusive de
parlamentares petistas, o que causou certa perplexidade.
“É evidente que nós temos,
junto das manifestações – e aí eu faço a diferença –, a ação de bandidos, de
criminosos. E esses bandidos, esses criminosos, parte deles inclusive
mascarada, têm de ser tratados como criminosos, como bandidos. Não é preciso
esperar que eles matem. Uma pessoa que vai para uma manifestação mascarado, com
artefatos, com pólvora, com bomba na mão tem que ser preventivamente ser
presa”, afirmou o senador Jorge Viana (PT-AC).
O também petista Paulo Paim
(RS), que havia entrado com um requerimento para impedir a votação do PL 499
sem passar por uma avaliação na Comissão de Direitos Humanos e Minoria (CDHM),
ameaçou retirar o requerimento para que o projeto fosse direto para apreciação
da Casa. “Mediante o acontecido com o cinegrafista, que foi covardemente
assassinado, acredito que o Senado tem que responder, não só para esse fato,
mas para alguns que já aconteceram e outros que vão acontecer se nada for
feito. Por isso, estou disposto a retirar o requerimento e fazer o debate que
faríamos na CDH”, afirmou Paim no Plenário.
Porém, em entrevista à Fórum,
concedida no dia 12, Paim reviu seu discurso. “O projeto é um absurdo e um
tremendo exagero, não há dúvida quanto a isso. Tivemos conquistas importantes
nesse país graças aos movimentos sociais, não podemos criminalizá-los agora com
esse projeto”, disse, no mesmo dia em que o presidente do partido, Rui Falcão,
assinou nota condenando o projeto. Ainda
na terça, o senador Humberto Costa (PT-PE) postou em seu Facebook: “Acabo de
sair da reunião de líderes. No PT, cremos que esse projeto contra terrorismo é
muito amplo e pode criminalizar movimentos sociais. Precisamos de lei que puna
os abusos e a violência perpetrados por alguns em manifestações. Mas, para
isso, podemos reformar o Código Penal. Uma lei geral demais, como essa do
terrorismo, pode levar a excessos do Estado contra o cidadão. O Brasil não
precisa de outro AI-5″.
O PL 499 foi criado pela
Comissão Mista de Elaboração das Leis do Congresso, presidida pelo deputado
federal Cândido Vaccarezza (PT-SP) e que tem como relator o senador Romero Jucá
(PMDB-RR). O peemedebista faz coro aos que pedem celeridade na aprovação do
projeto. “Vou defender a priorização do texto da comissão.” Para o presidente
do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) é preciso que se aumente a capacidade do
Estado brasileiro ser, ainda mais, repressivo. “Quando se pune levemente, passa-se
a ideia para a sociedade de que o crime compensa e o crime não pode jamais
compensar.”
O “AI-5 padrão FIFA”
Contra o PL 499 e a
classificação de incidentes como o ocorrido com Santiago Andrade como
“terrorismo” está o argumento de que o homicídio já está tipificado no código
penal brasileiro. “Todas as condutas que são mencionadas nessa lei já são
criminalizadas no Brasil, a única novidade é essa ‘intenção de incutir terror
ou pânico’, que é absolutamente subjetiva, vaga”, afirma a professora de
Direito Internacional do Instituto de Relações Internacionais da USP, Deisy
Ventura.
Para Paim, pode-se “ajustar a
tipificação sobre crime hediondo”, já que a lei antiterror “tem problemas”. O
senador Jucá afirma que o PL 499 é necessário pois o “Código Penal é um texto
sucinto, que não cria penalização e é muito menos abrangente do que o meu
projeto, o projeto da comissão.”
Jucá, querendo defender seu PL,
contraria juristas que enxergam fissuras no texto do projeto. “É preciso ter
cuidado quando o processo legislativo se acelera em demasia em função de
situações excepcionais. Essa preocupação é especialmente relevante no âmbito da
tipificação penal de condutas. Nem sempre uma lei aprovada às pressas produz a
melhor normatização”, afirmou Julio Grostein, professor do Damásio Educacional,
em entrevista ao Última Instância.
“Há espaço para múltiplas
interpretações nesse projeto e podemos caminhar, sim, para uma criminalização
dos movimentos sociais e isso é típico de democracias frágeis ou inexistentes”,
critica Luiz Guilherme Arcaro Conci, coordenador do curso de especialização em
direito constitucional da PUC-SP e presidente da Coordenação do Sistema
Internacional de Proteção dos Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB.
Juliana Brito, do Comitê
Popular da Copa, também concorda que por trás do PL 499 está uma tentativa de
se criminalizar os movimentos sociais. “Todos aqueles se levantarem nesse país
contra a violência estatal, contra a violência do transporte público, contra os
despejos, todos aqueles que forem às ruas e se reunirem, que é um direito
constitucional, estarão ameaçados por essa lei”, sentenciou a ativista.
O ponto divergente na lei
antiterror, e que abre espaço às conveniências, está no artigo 2: “Provocar ou
infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à
vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade da pessoa.”
Está prevista pena de prisão de 15 a 30 anos para quem infringir o artigo 2.
Caso haja morte, a pena mínima será de 24 anos de reclusão. “O que é ‘provocar
ou infundir terror’? O que é terrorismo? Essa lei não define nada. As condutas
podem ser facilmente caracterizadas como terroristas. Como bem disse, em sua
capa, o jornal Correio Braziliense, é o ‘AI-5 padrão Fifa’”, afirma a
professora Deisy.
Cezar Roberto Bittencourt,
especialista em Direito Penal, se manifestou através de seu perfil pessoal no
Facebook e condenou o PL 499. “O projeto pretende criminalizar a participação
em movimentos sociais, como os atuais, constitui uma homenagem ridícula ao
cinquentenário da Ditadura de 1964. Para completar a homenagem só falta chamar
de Lei de Segurança Nacional. Logo no mandado de um governo, cuja titular foi
vítima desse período”, escreveu o jurista, lembrando a presidenta Dilma
Rousseff (PT), que foi presa e torturada durante o regime militar.
Deisy explica que não há
referências de que casos semelhantes ao brasileiro tenham alcançado êxito.
“Historicamente, leis que supostamente previnem o terrorismo são ineficazes. Na
minha forma de ver, é absolutamente anacrônico falar de terrorismo hoje. Não
foi uma lei antiterrorismo que extinguiu praticamente as ações do ETA na
Espanha, ou do IRA na Irlanda, foi uma evolução da conjuntura política. Chamar
de terrorista é afirmar que você é incapaz de negociar.”
(Foto: Mídia Ninja) |
Imposição bélica
“É evidente que nós temos,
junto das manifestações – e aí eu faço a diferença –, a ação de bandidos, de
criminosos. E esses bandidos, esses criminosos, parte deles inclusive
mascarada, têm de ser tratados como criminosos, como bandidos”, afirmou Paim.
No bojo da criminalização dos
movimentos sociais, vem a legitimação da repressão policial às manifestações.
Em São Paulo, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) prepara um belicoso cenário
para recepcionar os cidadãos que porventura queiram protestar durante a Copa do
Mundo.
Em 7 de janeiro último, Alckmin
criou o 1º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep), que tem como função
cooperar para “ações de controle de distúrbios civis e de antiterrorismo.”
Assim como o PL 499, o texto publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo
que anuncia a criação do agrupamento não conceitua o termo “terrorismo”.
Em respostas enviadas à Fórum,
a Secretaria de Segurança Pública (SSP) de São Paulo demonstra não estar
disposta a colaborar com a elucidação dos fatos que cercam a criação do
agrupamento que inaugura o combate ao terrorismo no Brasil pós-ditadura.
Quando perguntada sobre quem
teria o perfil de “terrorista”, a SSP respondeu que são “as pessoas que cometem
terrorismo”. A linha evasiva continua quando o órgão se recusa a responder se o
agrupamento, que tem sua sede em Campinas, agirá em outras regiões do estado
durante a Copa do Mundo de 2014, além da cidade em que está situado. Das 32
seleções que vão disputar a Copa do Mundo, nada menos do 15 estarão sediadas em
solo paulista, entre elas EUA (São Paulo), Irã (Guarulhos), Rússia e Japão
(Itu). Em Campinas, sede do Baep, estarão as seleções de Nigéria e Portugal.
Além do Baep, São Paulo terá um
outro agrupamento especial, o Comando de Policiamento para a Copa do Mundo,
destacado apenas para o período em que o Mundial estiver sendo disputado. Serão
3.840 policiais militares. A PM paulista já anunciou que não permitirá
fechamento de vias e nem reações violentas. Balas de borracha e gás
lacrimogêneo serão utilizados pelo Comando. A inspiração para a criação do
agrupamento é o Batalhão da Copa, usado pela PM de Minas Gerais durante a Copa
das Confederações.
Os mineiros que forem às ruas
terão pela frente 2,5 mil homens que vão repetir o modelo de comportamento de
2013. Em entrevista coletiva, o tenente-coronel Hércules de Paula Freitas,
comandante do agrupamento, afirmou que espera que “o povo esteja mais ordeiro.”
O governo federal, por sua vez,
prepara a Força Nacional para controlar os protestos. Serão 10 mil policiais
militares que formarão um grupo de elite distribuídos entre as 12 cidades-sede
da Copa do Mundo. Os agentes, que são treinados desde 2011, já atuaram nas
manifestações que ocorreram nos arredores dos estádios usados na Copa das
Confederações 2013, durante o mês de junho.
Fonte: Revista
Forum
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