Ao dizer que não vai haver Copa
do Mundo, o que se está a afirmar é que não haverá consenso nacional algum.
Eduardo Tomazine
29 de janeiro de 2014
Sei que ninguém perguntou a
minha opinião a respeito, mas vou dizer o que entendo com o programa político
revestido pelo bordão Não vai ter Copa. Afinal, quando eu disse em uma
discussão que era necessário um pouco de sutileza intelectual para se compreendê-lo,
argumentaram que esperar sutileza intelectual das “massas” era, no mínimo,
pouco pedagógico. (O curioso é que foi justamente parte dessa mesma “massa”
quem mais repercutiu a palavra de ordem…) Tendo em vista que agora até mesmo
parte da esquerda de oposição ao governo resolveu adotar um slogan de
conciliação, como ”Vai ter luta na Copa” (PSTU) – o qual já vem sendo
compartilhado por militantes do partido do governo empenhado em organizar o
evento –, creio ser importante discutir sobre essas diferenças que superam em
muito as picuinhas semânticas.
Em primeiro lugar, o Não vai
ter Copa é resultado de um acúmulo de debates e de ações de uma parte
importante de movimentos organizados contra os abusos cometidos sob o alvará
dos preparativos para a Copa: as remoções forçadas, a truculência da polícia, a
criminalização dos movimentos, os gastos astronômicos do dinheiro público, os
desmandos da Fifa, a imposição de uma legislação de exceção etc. No princípio,
inclusive, defendeu-se o programa ”Por uma copa com direitos” (ou algo do
gênero), mas os acontecimentos mostraram que a realização de um megaevento como
a Copa do Mundo da Fifa com respeito aos direitos dos trabalhadores é uma
contradição em termos, então o Não vai ter Copa acabou prevalecendo naquele que
é o fórum mais adequado para se elegerem programas políticos: as ruas em luta.
Lembrar disso é importante para que não se pense que o Não vai ter Copa teria
sido cunhado sob as ordens de uma direção qualquer ou que teria resultado do
diversionismo de uma ultraesquerda inconsequente.
Ora, pelo que eu saiba e tenha
acompanhado nos protestos que se seguem desde muito tempo antes de junho de
2013, os manifestantes que exclamam “não vai ter copa” ainda não começaram a
rasgar dinheiro ou acreditar que Elvis realmente não morreu. Todos sabemos que
a Copa do Mundo, de um jeito ou de outro, protegida pelas Forças Armadas e
caucionada por uma enxurrada ideológica da classe política e da grande mídia,
irá acontecer. Nem mesmo o sequestro da delegação israelense nos Jogos
Olímpicos de Munique foi capaz de interromper esse tipo de evento insensível às
desgraças sociais, e seguramente não é bem isso o que os manifestantes daqui
desejam. Àqueles que duvidam da sutileza intelectual alheia, uma tentativa de
explicação: Não vai ter Copa significa a negação radical do que é a Copa do
Mundo tal qual ela é no mundo realmente existente, e não na fantasia daqueles
que reclamam o espírito esportivo, a união dos povos e essas coisas que constam
no manual da Fifa ou nos álbuns de figurinhas. A Copa do Mundo sempre foi uma
peça de legitimação política dos dirigentes que compram o direito de sediar tal
evento em suas jurisdições, um instrumento poderoso da ideologia do consenso
nacional, uma autorização para o desperdício do dinheiro público, uma concessão
dada a empreiteiras para fazerem lucros excepcionais e um alvará para a
despossessão da população pobre que tem o infortúnio de residir ali onde os
organizadores rabiscam seus mapas da mina.
Ao dizer que não vai haver Copa
do Mundo, o que se está a afirmar é que não haverá consenso nacional algum; que
uma parte da população não é estúpida o suficiente para endossar
sorridentemente a rapina; que as manchetes e videorreportagens das vitórias e
derrotas das seleções em campo terão que dividir espaço com o noticiário das
ruas apinhadas pela multidão em protesto, as bombas da polícia, a violência
arbitrária do Estado e manifestantes presos e/ou feridos no país do futebol. Em
acontecendo dessa maneira, não vai haver Copa – mesmo que no dia 13 de julho o
capitão do time campeão erga bem alto a taça diante das câmeras de TV do mundo
inteiro. O que teremos, afinal, não será aquela Copa do Mundo da montanha
mágica da Fifa em seu paraíso fiscal da Suíça, mas a irrupção à cena pública
das contradições e disputas que constituem a nossa sociedade até o caroço, além
de um chamamento em grande estilo aos povos do mundo para que se revoltem
contra essa mais nova modalidade de controle ideológico capitalista, que é o
circo sem pão.
Fonte: Passa Palavra
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