Pilar Oliva. François esteve presente no VI Congresso do MST e concedeu entrevista exclusiva |
Por Alan Tygel, Leonardo
Ferreira e José Coutinho Júnior
Da Página do MST
O filósofo marxista François
Houtart, da Bélgica, em entrevista exclusiva à Página do MST, analisa os
motivos da crise global, o impacto das recentes mobilizações de massa na
sociedade e a importância da integração latinoamericana para o continente.
François esteve presente no VI Congresso do movimento. Confira a entrevista:
Você afirma que as diversas
crises que vivemos estão interligadas. O que conecta essas crises?
O que liga as crises é a lógica
do sistema capitalista, que privilegia o valor de troca, dizendo que tudo deve
ser mercadoria para contribuir na ganância e acumulação do capital.
Essa lógica se aplica a todos
os âmbitos da vida humana, influindo nas políticas agrárias, industriais, na
relação com a natureza e submetendo tudo à lógica de reprodução do capital.
Estamos numa crise global, não
só geograficamente, mas uma crise de sistemas, na relação com a natureza, do
sistema alimentar, energético, climático etc.
A crise não é somente
financeira ou econômica, é geral, e uma das coisas novas é a crise dos
ecossistemas e do clima. O capitalismo desregula o equilíbrio entre a natureza
e seres humanos.
O ritmo de reprodução do
capital é completamente diferente do da natureza, e como o capital impõe seu
ritmo sobre a natureza, isso gera catástrofes naturais.
Os países socialistas também
destruíram a natureza como no capitalismo. Porque o socialismo real também
tinha esta visão de um progresso infinito e uma terra inesgotável. Por isso,
nos últimos anos se desenvolveu o ecossosialismo em países da Europa, da
América Latina, Venezuela em particular, com várias experiências de um modelo
que respeite a natureza.
É um problema mundial. O
capitalismo monopolístico está hegemonizando grande parte da economia
latinoamericana, e a concepção de desenvolvimento dos líderes políticos, mesmo
nos governos ditos progressistas, não mudou.
Qual é esta concepção?
Há alguns anos moro no Equador,
e Rafael Correa, que é meu amigo e foi meu aluno, tem como concepção de
desenvolvimento a modernização do estado.
Muito bem, modernizar a economia em essência é bom. Mas o que significa
isso para ele? Significa investir em agrocombustíveis, monocultivos,
transgênicos.
No Equador também há mais
mineração, exploração do petróleo, grandes vias. Essa é a visão de
desenvolvimento, que não pensa na realidade do país, no camponês, nos povos
indígenas, ou como construir pouco a pouco um desenvolvimento mais respeitoso
da natureza e dos povos.
Esses fatores vão criar mais e
mais conflitos, por alguns motivos: primeiro por parte do povo, que não
compartilha dessa concepção de desenvolvimento, mas não tem força política.
Segundo, o esgotamento deste modelo. Já se vê aqui no Brasil, na Argentina, que
o modelo se esgotou, não é sustentável.
Além disso, os novos regimes
latinoamericanos se baseiam em um consenso popular. Houve um melhoramento real
da situação dos mais pobres, mas dentro de uma concepção relativamente
assistencialista de programas ao combate à pobreza, programas que são bem
organizados, mas que não fazem do povo um ator, e sim um cliente.
Assim, o consenso é muito
frágil, pois se as condições econômicas da economia mundial mudam, se o preço
das matérias primas ou das commodities baixam, isso afeta a possibilidade dos
governos de ter políticas sociais, o que põe o consenso em perigo.
Como as recentes manifestações
de jovens pelo mundo se inserem nesse cenário?
Essas mobilizações massivas são
fruto das contradições do capitalismo. Claro que o Occupy é diferente dos
indignados ou das manifestações no Brasil. Mas apesar de serem originadas da
condição estrutural fundamental do capitalismo, a consciência desses manifestantes
ainda é bastante superficial, não vai às causas do problema.
São reações justas, mas
superficiais, pelo fato também que os protestos são uma reação mais de classe
média ou média baixa urbana, não indo à raiz do problema. Por essa razão, não
exercem um tipo de ação eficaz contra o sistema.
Esses protestos têm uma
concepção anarquista, individual, e com pouca visão da necessidade de
organização e ação política. Isso pode mudar, mas até agora, por exemplo na
Europa, é muito claro que não houve nenhum impacto político concreto, a não ser
reforçar a direita, o que não era a intenção.
É um sintoma importante, mas
que não dá realmente uma resposta. As respostas vêm com análises mais claras
das raízes do problema, uma formação e uma organização, senão é relativamente
fácil de marginalizar esse tipo de protestos.
A não ser que a repressão a
essas manifestações seja muito violenta para comover a sociedade, geralmente
elas são reprimidas e não afetam a ordem.
É preciso que estes movimentos
espontâneos se formem teoricamente, analisem as coisas mais à fundo e tenham
juízo político mais adequado. Isso pode ajudar a uma transformação futura.
Qual deveria ser o papel das
organizações de esquerda e movimentos sociais nessas mobilizações?
Há uma certa distância dos
movimentos sociais com essas expressões de protesto novas. Me parece que é um
pouco difícil dos movimentos sociais entenderem as manifestações, e os
manifestantes não querem essa aproximação com medo de “serem dominados ou se perder”.
E como é um movimento urbano, é
difícil para muitas entidades intervirem. Os sindicatos perderam muito de seu
caráter revolucionário, e não vão poder trabalhar com estes jovens, pois isso é
uma coisa nova.
Acho que talvez elementos
jovens de um movimento mais radical, como o MST, possam ter um certo encontro
com esses jovens, para ajudar a entender melhor a situação social que nos
encontramos, e também fazer com que esses jovens entendam a situação do campo.
As organizações devem pensar em
novas formas de luta e atuação?
Sim. Pensar nisso é uma reação
contra a burocratizção dos movimentos sociais. Esses protestos são uma chance
para as organizações se autocriticarem frente ao problema de organização, e é
necessário para entender esses novos fenômenos que ocorrem agora.
É um processo que pode ajudar a
uma transformação interna dos movimentos organizados, pois estes jovens chegam
com novas ideias e valores que não devem ser condenados.
Você é um grande defensor da integração latinoamericana. É possível hoje realizar essa integração, e como ela poderia alterar essa conjuntura de crises?
Devemos ser realistas. A
Comunidade dos Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac) é um milagre de
Chávez, por conseguir reunir países com ideias tão opostas como México, Chile e
Bolívia.
Devemos conhecer os limites
dessas organizações latinoamericas que existem, mas é possível tomar várias
medidas importantes. Por exemplo, seria
possível fazer regras em conjunto no setor da mineração.
Não vamos impedir as transnacionais
e a China de explorar minas, pelo menos por ora, mas podemos colocar regras. No
Equador, as mineradoras canadenses se retiraram. Foram ao Peru porque há menos
regras. Se existisse um acordo latinoamericano de regras frentes as
transnacionais de mineração, isso seria considerado uma força. O Equador
sozinho não é nada.
Organismos como a CELAC não têm
muito poder. A União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e o Mercado Comum do Sul
(Mercosul) são mais expressivos. A ALBA seria o ideal, pois é a única
organização com um pensamento pós-capitalistas.
As outras organizações são pós
neoliberais. A Alba tem princípios diferentes, mas é muito marginal. Tem 10
países, e 5 são do Caribe. A Alba não tem poder grande, e sua tendência, com
Equador, Nicarágua, Bolívia, é ser menos anticapitalista.
Pois como eu disse, esses
governos são pós neoliberais, mas não pós capitalistas. Ao mesmo tempo, penso
que devemos insistir sobre a importância da integração e dos organismos, não
sobrevalorizando ou deslegitimando seu papel.
Como você avalia a decisão da
Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) de
considerar 2014 o ano da agricultura familiar?
Como todo organismo dentro das
nações unidas, a FAO ela não vai ser revolucionária. A influência das forças
econômicas e políticas nesse órgão é tal que a relação de forças não é a favor
das ideias mais avançadas.
Mas devemos sempre aproveitar.
É muito bom que uma parte da FAO apoie iniciativas de agricultura
campesina. Em outubro fizemos uma
reunião de agricultura camponesa na Bolívia, que contou com 40 especialistas e
apoio dos movimentos camponeses e indígenas. O representante da FAO esteve
presente e foi muito positivo.
O Papa Francisco também tem
declarado apoio aos camponeses e à luta pela terra...
Todo novo papa é uma mudança
séria. Mas não podemos esperar que um grupo de cardeais muito conservadores
pudesse eleger um papa revolucionário, era impossível. Mas elegeu o melhor
entre os piores (risos).
Ele não vai pregar a teologia
da libertação, mas é pastor, quer uma proximidade afetiva com os movimentos e
os pobres, isso é uma grande mudança. A adoção do nome de Francisco, para um
jesuíta é um passo forte.
É um sinal positivo. Podemos
esperar que ele abra espaços, como esta reunião dos movimentos sociais e dos
mais pobres em Roma. É positivo, mas não podemos esperar uma mudança
revolucionária. Há sinais que demonstram o contrário, como eleger o cardeal de
Honduras [Oscar Rodríguez Madariaga] como homem chave da reforma da igreja.
Por que?
O cardeal tomou posição a favor
do golpe militar, e é odiado pelos movimentos sociais. Ele é um homem da
oligarquia tradicional, apesar de um discurso muito progressista e
anticapitalista, suas práticas internas são problemáticas. Ele ser o eixo
fundamental da reforma da igreja é um problema.
Alguns sinais desse tipo
mostram uma ambiguidade, especialmente política. Os discursos do papa são
anticapitalistas, mas contra o capitalismo selvagem, o que significa que há um
capitalismo civilizado.
É típico da doutrina social da
igreja, mas não da teologia da libertação, que analisa a sociedade em termos de
classes sociais. A doutrina da igreja prega a união e colaboração de todos para
chegar a um bem comum, sem ver a oposição estrutural das classes sociais.
Se condena o capitalismo mais
pelos seus efeitos que pela sua lógica. Mas não devemos ser pessimistas,
devemos estar felizes de que há mudanças e estar presentes nos espaços que se
abrem, porque às vezes esses espaços podem ser mais importantes do que eles
pensam.
Fonte: Brasil de Fato
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