Foto: diarioliberdade.org |
Por Sylvia Debossan Moretzsohn*
em 17/07/2012
O
que dizer de um noticiário que dá de manchete exatamente o contrário da
informação correta?
Foi o que ocorreu na cobertura
da coletiva convocada pelo governo, no fim da tarde de 13 de julho, para
anunciar a proposta com a qual pretende pôr fim à greve nas universidades e
institutos federais de ensino, que já dura quase dois meses. O noticiário revelou
mais uma vez a submissão dos jornalistas às fontes oficiais e a absoluta
ausência de apuração própria resultou em matérias que induzem a erro e anunciam
o oposto do que a proposta significa. Pois, em vez do alardeado reajuste, os
professores terão perda salarial, como se verá. E não apenas isso: o plano de
carreira embute armadilhas que, se confirmadas, significarão um retrocesso aos
tempos da ditadura.
Comecemos, porém, pelos
aspectos mais evidentes da cobertura.
Uma primeira comparação entre
as capas de dois dos principais jornais do país já levaria a algum arquear de
sobrancelhas: enquanto O Globo alardeia em manchete “Governo cede e aumenta
professores em até 48%”, a Folha de S.Paulo dá chamada de capa com um índice
menor: “Governo propõe reajuste de até 40% a docentes das federais”. A
discrepância se deve a opções diferentes entre os jornais – o maior índice se
refere a professores de institutos federais, e não de universidades – e ao
cuidado do jornal paulista em abater, do índice anunciado, o reajuste de 4% já
pago aos docentes de universidades no contracheque de maio, retroativo a março,
conforme acordo estabelecido no ano anterior.
Ainda assim, ambos os jornais
associam os números exuberantes aos cargos de “maior titulação”, sem explicar
que esse reajuste máximo atinge apenas o restrito grupo de professores
titulares. Entre doutores com regime de dedicação exclusiva, tanto adjuntos
quanto associados (e essa diferença é relevante, porque os associados ganham
substancialmente mais), o índice fica na faixa dos 30%.
Fazendo
contas
Os jornais informam
corretamente que os reajustes serão concedidos parcialmente, ao longo dos
próximos três anos. Porém, não alertam para o essencial: que se trata de um
percentual bruto, do qual, obrigatoriamente, deveria ser descontada a previsão
de inflação para o período. E é aí que fica clara a primeira armadilha da
proposta: não se trata de oferta de reajuste, mas da imposição de uma redução
salarial, na maioria dos casos.
Há muitos anos, um renomado
colunista de economia, convidado a dar uma palestra para estudantes de
jornalismo, surpreendeu – e provavelmente decepcionou – a plateia ao responder
à pergunta inevitável sobre a preparação dos jovens para a profissão: não
repetiu a ladainha de sempre sobre a necessidade de leitura dos clássicos;
disse que um bom jornalista precisa saber fazer contas.
Essa tarefa, infelizmente,
continua restrita aos especialistas, como o professor Wagner Ferreira Santos,
do Departamento de Matemática da Universidade Federal de Sergipe. Ele fez essas
contas e disponibilizou o resultado num artigo em que demonstra o engodo de se
comparar valores em períodos distintos sem considerar o índice de inflação
correspondente, normalmente calculado pelo IGP-M. Com base nesse índice, ele
projeta uma inflação de 20% até 2015, de modo que, assim (re)ajustada, a
remuneração da grande maioria dos professores (mestres e doutores com dedicação
exclusiva, que compõem a esmagadora maioria nas universidades públicas)
sofreria, de fato, perda de 0,4% a 11,9%, conforme a titulação e o nível de
carreira. Reajuste, a rigor, só para o professor titular (5,9%, nesse
percentual corrigido) e para o doutor adjunto nível 4 (1%), como se pode
conferir nas tabelas publicadas em seu artigo.
Para esclarecer, o professor argumenta,
como se passasse uma tarefa a seus alunos: “Como exercício de fixação, façamos
cálculos análogos com o salário mínimo, que é referência para a maioria da
população brasileira. Primeiro, mostre que os atuais R$ 622 são realmente
maiores que os R$ 510 de julho de 2010. Agora, a pergunta capciosa: se o
governo anunciasse hoje que o salário mínimo sofreria aumentos consecutivos em
três parcelas, chegando a R$ 700 em julho de 2015, você aceitaria?”.
Papagaios
das fontes
Os jornalistas presentes à coletiva
não apenas não fizeram essas contas como nem sequer indagaram por que a
proposta anunciava percentuais brutos e ignorava a inflação projetada para o
período. Seria o comportamento elementar de qualquer repórter minimamente
qualificado e interessado em trabalhar com dados corretos para divulgar
informações confiáveis. Ainda que se considere que o governo, espertamente,
venha convocando suas coletivas mais problemáticas para o fim da tarde, quando
já não sobra muito tempo para que os jornalistas analisem adequadamente os
dados que precisam divulgar “em tempo real”, nos sites e no noticiário
radiofônico e televisivo. Mesmo que não obtivessem a informação precisa, os
repórteres poderiam relativizar o que receberam, e não agir como porta-vozes
oficiosos. Entretanto, o máximo que fizeram foi ouvir “o outro lado”, o dos
dirigentes sindicais, e publicar breves declarações contrárias à proposta, mas
tampouco esclarecedoras.
À parte a questão do reajuste,
que inevitavelmente ganharia destaque no noticiário, há pelo menos outras duas
armadilhas embutidas na proposta do governo para o plano de carreira nas
universidades federais, como se pode constatar aqui, e que sequer foram consideradas
nas reportagens, como observou o professor Kleber Mendonça, chefe do
Departamento de Estudos de Mídia da UFF. Uma delas, que já preocupava as
entidades sindicais, é a de que todos os novos professores, independentemente
de sua titulação, ingressarão no nível mais baixo da carreira, como auxiliares,
e não poderão mudar de classe enquanto estiverem em estágio probatório (o
período de três anos ao final do qual o profissional é confirmado ou desligado
do cargo). Na prática, isso significa que aquele que já poderia estar recebendo
como doutor ficará com remuneração inferior durante esses três anos. Note-se
que os concursos, há muitos anos, vêm sendo abertos apenas para doutores, e só
excepcionalmente para mestres. Ou seja, exige-se a titulação, mas a remuneração
correspondente pode esperar.
É possível perder essa
oportunidade tão clara de ironizar o discurso oficial de “valorização da
carreira”?
Ironias
da história
Além disso, a planilha comparativa
divulgada pelo governo mostra apenas os salários atuais (antes e depois do
reajuste de 4% já concedido no mês passado, e retroativo a março) e os salários
de 2015. O hiato de três anos até lá é apagado, mais ou menos como em certos
anúncios imobiliários em que algumas ruas são suprimidas do mapa para dar a
impressão de que o belo imóvel fica a poucas quadras da praia ou de um
maravilhoso bosque. Quem olha as planilhas fica com a sensação de que os
professores que recebem hoje, digamos, R$ 7.600 (adjunto 1, doutor com
dedicação exclusiva), passarão logo a ganhar R$ 10 mil, quando esta é a
remuneração para daqui a três anos.
A outra armadilha é que o
governo propõe uma mudança no sistema de promoção “nos termos das normas
regulamentares a serem expedidas pelo Ministério da Educação”. Portanto, propõe
que os professores aceitem normas que desconhecem.
É
de fazer inveja a Maquiavel
Mas essa armadilha representa
algo ainda mais grave, como lembrou o jornalista João Batista de Abreu,
professor no Departamento de Comunicação da UFF: significa um retorno aos tempos
da ditadura militar, quando não havia concursos públicos e a cada renovação de
contrato os professores tinham que apresentar o famigerado atestado ideológico,
emitido pelo DOPS. Quem estava respondendo a processo político não conseguia o
documento. Depois da Lei da Anistia, em 1979, essa exigência caiu, mas um chefe
de Departamento que não gostasse de determinado professor poderia simplesmente
não renovar seu contrato.
João Batista, na época em
início de sua carreira docente, recorda da greve iniciada em fins de 1980, que
resultou na conquista desse aspecto fundamental da autonomia universitária que
é a definição do sistema de ascensão funcional, através da constituição de
comissões de progressão docentes, responsáveis também pela regulamentação das atividades
do professor na instituição. “Se os critérios de progressão passarem a ser
definidos pelo MEC”, diz João Batista, “voltaremos 30 anos no tempo”.
Seria uma dessas ironias da
história se isso acontecesse, tendo em vista o passado dos atuais governantes.
Mas a tentação autoritária é um fantasma sempre à espreita.
“Proposta
definitiva”
Apesar de todas essas
considerações, houve quem, embora com vasta experiência profissional – como a
colunista de política da Folha Eliane Cantanhêde –, optasse por simplesmente
reverberar as informações oficiais, afirmando tratar-se de uma “proposta
definitiva”, esse absurdo lógico que ignora que uma proposta, por definição, é
passível de negociação. Do contrário, trata-se de decisão, deliberação,
imposição ou qualquer outro substantivo que expresse uma resolução unilateral
de quem tem, ou pensa que tem, poder para agir dessa forma.
Para concluir, as reportagens
não deixaram de notar o “impacto” de R$ 3,9 bilhões que essa “proposta
definitiva” causará aos cofres públicos, ignorando oportunamente o teor da
Medida Provisória 559, já aprovada pelo Congresso e dependendo apenas da sanção
presidencial, segundo a qual o governo concede às instituições particulares de
ensino R$ 15 bilhões sob a forma de renúncia fiscal.
Assim se faz o jornalismo de
hoje, esse jornalismo que certa vez chamei “de mãos limpas”, porque se contenta
em ouvir um lado, ouvir outro e lavar as mãos, deixando supostamente a
conclusão para o público. Não é difícil imaginar a que tipo de conclusão esse
público poderá chegar, privado que está das informações elementares a partir
das quais poderia elaborar algum raciocínio minimamente fundamentado. Não por
acaso tantos colegas professores receberam congratulações de parentes e amigos
diante da expectativa do magnífico reajuste. Precisaram pacientemente desfazer
o equívoco, para espanto de quem acreditou nos jornais.
*Jornalista
e professora da Universidade Federal Fluminense.
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