Para
professores, filósofos e defensores de direitos humanos, o golpe de 64 moldou
um país de estruturas autoritárias, que garante direitos apenas para as classes
proprietárias e que transformou a exceção em consenso. Em seminário realizado
em São Paulo, eles afirmaram que a exceção é o novo modo de governo do capital
e que o povo brasileiro vive um momento perigosíssimo de letargia.
Bia Barbosa
SÃO PAULO - Qual a idéia de
"Estado de exceção"? Na interpretação tradicional do termo, trata-se
de um momento de suspensão temporária de direitos e garantias constitucionais,
decretado pelas autoridades em situações de emergência nacional, ou mediante a
instituição de regimes autoritários. Seu oposto seria o Estado de Direito,
conduzido por um regime democrático. Na avaliação de professores, filósofos e
defensores de direitos humanos, no entanto, a existência de um Estado de
exceção dentro do Estado de Direito seria exatamente a característica do Brasil
atual, forjada no período da ditadura militar e que, mesmo após a
redemocratização do país, não se alterou. Esta foi uma das conclusões do
seminário sobre a herança da ditadura brasileira nos dias de hoje, organizado
pela Kiwi Companhia de Teatro esta semana, em São Paulo.
Para o filósofo Paulo Arantes,
professor aposentado do Departamento de Filosofia da USP, há um país que morreu
e renasceu de outra maneira depois da ditadura, e que hoje é indiferente ao
abismo que se abriu depois do golpe militar e que nunca mais se fechou.
"Que tipo de Estado e
sociedade temos depois do corte feito em 64, do limiar sistêmico construído por
coisas que parecem normais numa sociedade de classes, mas que não são? O fato
da classe dominante brasileira poder se permitir tudo a partir da ditadura
militar é algo análogo à explosão de Hiroshima. Depois que a guerra nuclear
começa ela não pode mais ser desinventada. Quando, a partir de 64, a elite
brasileira branca se permite molhar a mão de sangue, frequentar e financiar uma
câmara de tortura, por mais bárbara que tenha sido a história do Brasil, há uma
mudança de qualidade neste momento", avalia Arantes.
Para o filósofo, o país foi
forjado pela ditadura a ponto de hoje nossa sociedade negligenciar tudo aquilo
que foi consenso durante o autoritarismo dos militares. "A ditadura não
foi imposta. Ela foi desejada. Leiam os jornais publicados logo após 31 de
março de 1964. Todos lançaram manifestos de apoio ao golpe, era algo
arrebatador. CNBB, ABI, OAB, todo mundo que hoje é advogado do Estado de
Direito apoiou. Se criou um mito de que a sociedade foi vítima de um ato de
violência, mas a imensa maioria apoiou o golpe", disse Arantes. "E a
ditadura se retirou não porque foi derrotada, mas porque conquistou seus
objetivos. A abertura de Geisel foi planejada, já tinha dado certo com o
milagre econômico. Tanto que seus ideólogos estão aí, como principais
conselheiros econômicos da era Lula-Dilma, e que a ordem militar está toda
consolidada na Constituição de 88", criticou.
Na avaliação de Edson Teles,
membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos do Brasil
e professor de filosofia da Unifesp, a Constituição de 1988 foi apenas uma das
formas de lançar o Brasil num Estado de exceção permanente, definido por ele
quando a própria norma é usada para suspender a ordem; ou quando aquilo que
deveria ser a exceção acaba se tornando ou reafirmando a própria norma.
Para Teles, além de manter a
estrutura autoritária militar, o novo ordenamento democrático foi construído
sobre o silenciamento dos familiares de vítimas e de movimentos de defesa dos
direitos humanos, que queriam justiça para os crimes da ditadura. O problema,
no entanto, vinha de antes.
"Em um Congresso
controlado pela ditadura, a Lei de Anistia adotou a suspensão da possibilidade
de punição de qualquer crime. Um momento ilícito foi tornado lícito, com o
silenciamento dos movimentos sociais e pela anistia, que exigiam
esclarecimentos sobre os crimes. O que o Estado montou foi algo que manteve a
ideia de impunidade. Depois veio o Colégio Eleitoral, que fez uma opção por uma
saída negociada entre as oligarquias que saíam e as novas que chegavam,
decidindo manter a anista ao crimes da ditadura. Foi o grande acordo do
não-esclarecimento", relatou.
O julgamento no Supremo
Tribunal Federal em 2010 sobre a interpretação da Lei de Anistia foi, segundo
Teles, o coroamento desse silêncio e a instauração de um Estado de exceçãono
país. "Baseada em ideias fantasmagóricas de que novos golpes que poderiam
ser dados, nossa transição foi a criação de um discurso hegemônico de
legitimação deste Estado de exceção. Faz-se este discurso como forma de
legitimar essa memória do consenso, mas se mantem o Estado de exceção
permanente, reconhecendo as vítimas sem nomear os crimes", acrescentou.
Exceção e consenso hoje
O consenso acerca daquilo que
deveria ser visto como exceção não se restringe hoje, no entanto, àquilo que
pode ser considerado a herança mais direta da ditadura militar. Foi construído
também em torno de uma série de acontecimentos e práticas que deveriam mas não
mais despertam reações da população brasileira.
"A exceção se torna
perigosíssima quando deixamos de reconhecê-la como tal e ela se torna
consenso", alertou o escritor e professor de jornalismo da PUC-SP, José
Arbex Jr. "Ninguém achou um escândalo, por exemplo, no lançamento da
Comissão da Verdade, ver os últimos Presidentes do país juntos, sendo que um
deles foi presidente da Arena, o partido da ditadura, responsável pela tortura
da própria Dilma; e o outros era Collor! Da mesma forma, está em curso em
Osasco uma operação chamada Comboio da Morte, que matou nas últimas horas 16
pessoas. Isso não causa um escândalo nacional, é normal, natural, porque
estamos "na democracia". Os jornais falam da Síria, mas a média de
mortes diária no auge do conflito da Síria não chega ao que temos aqui
cotidianamente. Lá é 60 aqui é 120! Então não estamos discutindo algo que
aconteceu em 64 e que hoje se apresenta de forma mitigada, atenuada",
disse Arbex.
Para o jornalista, o país vive
um estado de letargia hipnótica coletiva, fabricado de maneira competente e
eficiente pelo aparato midiático, que produz um consenso em torno de uma imagem
de país na qual todos acabamos acreditando. "É muito grave quando olhamos
para o Brasil e não percebemos essa realidade de consenso: de nenhuma garantia
de direito para quem esteja fora da Casa Grande, e uma situação de guerra
permanente", acrescentou.
É o que Paulo Arantes chamou de
Estado oligárquico de Direito, um Estado dual, com uma face garantista
patrimonial, que funciona para o topo da pirâmide, e uma face punitivista para
a base. "Esse Estado bifurcado é uma das "n" consequências da
remodelagem do país a partir dos 21 anos de ditadura. Basta pensar no que
acontece todos os dias no país. Trata-se de um outro consenso, também sinistro
e indiferente, senão hostil, a tudo que nos reúne aqui. Um Estado de exceção
que não é o velho golpe de Estado, mas um novo modo de governo do capital na
presente conjuntura mundial, que já dura 30 anos", afirmou Arantes.
Ninguém cavalga a história
O que permitiria dizer da
possibilidade de se encontrar uma saída deste Estado de exceção permanente é o
caráter imprevisível e incontrolável da história. Arbex lembrou que, em
setembro de 1989, quando estava em Berlim, ninguém dizia que o Muro cairia
menos de dois meses depois. "O fato é que, felizmente, ninguém cavalga a
história. Ainda não encontraram uma maneira de domesticá-la. Há um processo
latente de explosão social no Brasil, que se combina com processos semelhantes
na América Latina, e que pode produzir uma situação totalmente nova. Ninguém
previu a Primavera Árabe. Quando um jovem na Tunísia atirou fogo no próprio
corpo, ninguém imaginava que, um mês depois, cairia Mubarak no Egito. Estão,
não estamos condenamos para sempre a esta situação. Só posso dizer que estamos
vivendo numa época que, em alguns aspectos, é mais trágica, mais cruel e
mortífera que a ditadura militar", acredita.
"Este Estado de exceção só
terminará quando a ditadura terminar, quando o último algoz for processado e
julgado. Se a Comissão da Verdade encontrar dois ou três bons casos e levantar
material para ações cíveis, pode haver uma transmutação disso tudo. E o regime,
a sociedade e a economia não vão cair se os perpetradores da ditadura forem
processados, como não caíram na Argentina ou no Chile", acredita Paulo
Arantes. "Mas devemos pensar no que significaria essa última reparação. Se
o último torturador e os últimos desaparecidos forem localizados, em que
estágio histórico vamos poder entrar?", questionou. Uma pergunta ainda sem
resposta.
Fonte: Carta
Maior
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