Novo aplicativo permite desvendar, pelo código de barras, práticas antiéticas que empresas tentam esconder. Ferramenta já é usada para boicotes — por exemplo, contra produtos israelenses
Por Gabriela Leite
Publicado em 8 de agosto de 2014
Imagine-se entrando em um
supermercado para comprar uma garrafa de cerveja. Chegando lá, além de escolher
pelo preço ou pelo sabor, você também pode analisar. Rejeita a marca que
desrespeita os direitos dos trabalhadores. Evita aquela que faz publicidade
machista. Por fim, escolhe a que utiliza ingredientes orgânicos. Na prateleira
de cosméticos, pula os que ainda fazem testes em animais. Assusta-se ao
perceber que uma das marcas faz parte de multinacional de alimentos.
Finalmente, escolhe o creme hidratante da empresa que usa energia renovável.
Essa é a ideia do aplicativo
Buycott (um trocadilho de “buy” — comprar, em inglês — com “boycott” —
boicote). Criado por Darcy Burner, uma ex-desenvolvedora norte-americana da
Microsoft, o programa para celulares ligados à internet baseia-se numa
ferramenta do próprio capitalismo: o código de barras… Estimula os usuários
escaneá-los, com o próprio telefone. E, ao identificar cada produto, associa
seu fabricante a um banco de dados que pode tornar-se cada vez mais completo.
Oferece todas as informações disponíveis: desde se o produto utiliza químicos
cancerígenos até se a empresa apoia o direito dos transexuais.
O software é participativo. As
classificações dos produtos são chamadas de campanhas, e podem ser criadas por
qualquer usuário, dentro de algumas categorias. Algumas delas: direitos dos
animais, justiça econômica, meio ambiente, comida, direitos humanos, direitos
das mulheres. O usuário escolhe participar das campanhas que quiser e, em
seguida, pode passar a escolher um produto de acordo com seus princípios pessoais.
No Brasil, ainda é bastante
difícil achar produtos que estejam em listas. Isso pode ser rapidamente
alterado. Depende apenas de que usuários da internet comecem a registrar
produtos e criar campanhas. Isso permitiria diversos tipos de boicote: contra
empresas que financiam certos políticos; contra uma indústria que esteja na
lista do trabalho escravo; ou alguma marca cujo presidente mostrou-se contra os
direitos das mulheres, por exemplo. Para testar, escaneamos o código de barras
de dois produtos. O primeiro foi uma câmera Canon. Sobre ela, o aplicativo
avisou: “você apoia esta marca por responsabilidade ecológica”, e mostrou que a
marca está na lista positiva de “Energia limpa e renovável”. Acessamos seu site
e vimos que realmente há uma campanha de reciclagem de toners de suas
impressoras, por exemplo.
Já no momento
em que fotografamos o código de barras de um cosmético da L’Oreal, o Boycott
advertiu: “evite este produto”. Em seguida, explica: a marca faz parte do
conglomerado da Nestlé. Por isso, está na lista suja de uma campanha de boicote
à multinacional. O movimento adverte que o presidente da empresa, Peter
Brabeck-Latmathe, já afirmou que “o acesso à água não é um direito humano”, e
sua a indústria rouba a água potável de uma pequena comunidade no Paquistão,
deixando seus habitantes passarem sede.
A L’Oreal ainda pertence a
outra campanha: a “Long live Palestine, boycott Israel” (“longa vida à
Palestina, boicote Israel”). Esta é uma das de mais sucesso nas últimas
semanas, como afirma a página de trends do aplicativo — já tem 230 mil
seguidores. “A L’Oreal estabeleceu Israel como seu centro comercial no Oriente
Médio e aumentou o investimento e atividades manufatureiras”, alerta. Se
acreditar que deve haver um boicote econômico a Israel, após o massacre na
faixa de Gaza das últimas semanas, o consumidor pode escolher não comprar a
marca. Se fizesse isso sozinho, sua ação não seria nem levemente sentida pela
marca de cosméticos. Mas, em rede, essa atitude tende a crescrer
consideravelmente — e, talvez, pode chegar até a incomodar a gigante Nestlé.
Por séculos, o consumo tem sido
uma das bases do processo de alienação capitalista. Ao comprar algo,
legitimamos e fortalecemos relações sociais que ignoramos. É como se nossos
valores éticos fossem irrelevantes ou impotentes, e devêssemos consumir levando
em conta apenas fatores superficiais: preço, aparência, publicidade, suposta
“qualidade” do produto. Agora, parece que a tecnologia pode ser utilizada para
atitudes distintas. Haverá consciência social suficiente para que elas se
disseminem?
Fonte: Outras
Palavras
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