por Victor Farinelli on 3 de julho de 2014
Primavera de 1973. Ela não se
chamava Ana, mas era assim que todos a conheciam. Ana, a guerrilheira, detida
em uma prisão militar feminina, construída especialmente para mulheres
tupamaras, em algum lugar desconhecido no interior do Uruguai, com uma carta na
mão, que era de Emiliano, ou Ulpiano, ou seja lá qual fosse o seu verdadeiro
nome.
Em junho daquele ano, o fim do
MLN-T (Movimento de Liberação Nacional, também conhecido como Tupamaros), foi
um dos episódios que marcou o início da ditadura uruguaia, e levou centenas de
jovens revolucionários à prisão, quinze deles como reféns de guerra. Ulpiano
era um deles. Se os tupamaros ainda livres voltassem a atuar, ele seria
fuzilado.
Lucía Topolanski
Ana, a guerrilheira
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Um torturador chuta as grades
da cela enquanto ri jocosamente e relembra as últimas humilhações, de
diferentes tipos, que a fez sofrer. Ana continua lendo a carta. Ele insiste:
- Você é a nossa preferida,
bebê. Vai ficar aqui por milhares de anos.
A raiva a faz apertar o papel
em suas mãos até quase rasgá-lo:
- Olha, daqui a doze anos eu
vou sair daqui e viver a minha vida. Você viverá com o fantasma dessas
perversões, atormentando até o dia da sua morte.
Enquanto ele aumentava o volume
das gargalhadas, Ana buscava algo onde escrever uma resposta. Precisava contar
sua verdade, que seu nome não era Ana, que era filha de uma família de classe
média de Pocitos, bairro nobre de Montevidéu. Tinha uma irmã gêmea, tinha uma
família enorme, sofria pelas saudades e pelo medo, mas não medo da morte, era o
único medo que não tinha, pois lhe bastava a certeza de sair dali e para se
encontrar com ele.
Dias depois, seu advogado lhe
forneceu papel, caneta e a grande coincidência de suas vidas. Ele era casado
com a advogada de Ulpiano. Os dois nada podiam fazer pelos dois guerrilheiros.
Livrá-los da prisão em meio a uma ditadura era impensável. Mas puderam ser um
casal de carteiros, trabalhando por um amor que lutava para sobreviver.
Dois prisioneiros vivendo um
típico amor tupamaro. O MLN surgiu em meados dos Anos 60, fundado por um grupo
de estudantes socialistas que queria fazer a revolução no Uruguai. Diferente
das guerrilhas urbanas de outros países, os tupamaros começaram a atuar antes
de instalada a ditadura. A vida na clandestinidade impedia que houvesse
relações fora da organização e saber o verdadeiro nome da pessoa amada. O amor
deles nasceu quando ela se chamava Ana e ele Ulpiano, e não importava a
verdade.
Amor que nasceu com um passo
para fora da prisão. Ela, uma estudante de arquitetura com talento para a
falsificação de documentos, lhe fazia uma identidade falsa, e assim se
conheceram. Ana tinha um namorado que também era do MLN, se chamava Blanco
Katrás, que meses depois seria capturado junto com ela. Ana só passou alguns
meses na cadeia, mas Blanco seria executado pela polícia uruguaia. “Não era o
primeiro namorado que eu perdia naquelas condições, e naquela altura, já tinha
visto muitos outros companheiros morrerem. Não há tempo para sentir pena quando
você precisa salvar a própria pele”, pensava Ana, libertada em 1972, antes de
encontrar refúgio no mesmo porão em que estava escondido Ulpiano – na época, um
dos homens mais procurados do país.
Ulpiano, o mais procurado
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A caça aos tupamaros no Uruguai
passou a ser mais intensa nos Anos 70, com a ajuda dos Estados Unidos. Os
tupamaros sequestraram e assassinaram um agente do FBI, em agosto de 1970 (Dan
Mitrione, que anos antes esteve no Brasil, ensinando técnicas de tortura aos
militares). Ulpiano era acusado de fazer parte dessa operação – que é narrada
pelo filme Estado de Sítio, de Costa Gravas.
Ninguém sabe se foi aí, no
ocaso do movimento tupamaro, quando viviam de porão em porão pelos bairros do
centro velho de Montevidéu, que começou a história de amor de Ana e Ulpiano.
“Eles passaram a andar juntos na época mais dura, quando nem sempre havia um
teto. Às vezes, era preciso dormir em pântanos fora do perímetro urbano da
cidade. Talvez a relação, digamos, física, não começou nessa época, mas com
certeza o carinho mútuo sim”, relata Henry Engler, um ex-tupamaro, amigo
pessoal de Ulpiano.
O pouco que se sabe sobre o
começo da relação é que eles se tornaram imprescindíveis um para o outro nesses
últimos meses do MLN, antes do fim definitivo da organização, em junho de 1973.
Ambos foram presos. Ana foi levada a uma prisão de mulheres. Ulpiano virou
refém, ficava numa solitária, sob ameaça de morte se algum ex-companheiro
voltasse a atuar.
Tentaram trocar
correspondências entre si para sobreviver, com a ajuda dos advogados-carteiros.
Ela se confessou, disse que se chamava Lucía, Lucía Topolansky, e que sonhava
em sair dali e encontrá-lo. Ele respondeu com sua própria revelação: “meu nome
é José Alberto Mujica”.
A carta-desabafo de Pepe
Mujica, ex-Ulpiano, era a mais bela carta de amor de todos os tempos, segundo
as companheiras de presídio de Lucía – “era toda sentimentalona, como todas as
coisas do Pepe”, segundo María Elia Topolansky, irmã gêmea de Lucía, também
ex-tupamara. Passou por todas as mãos e fez sucesso até entre os carcereiros –
“naqueles anos, cada carta que chegava era para todas”, conta Lucía, sobre a
falta de ciúmes com o bilhete.
Diz a lenda que a ternura das
palavras de Mujica amoleceu as restrições que havia para correspondência entre
presos, e assim eles puderam trocar mais cartas que os demais casais tupamaros
separados entre prisões.
Essa situação durou exatamente
os doze anos que Lucía deu de prazo ao seu torturador, até que seu amor
renasceu como na primeira vez, com um passo para fora da prisão. No dia 14 de
março de 1985, ela e a irmã gêmea saíram da cadeira e foram para a enorme casa
da família – no mesmo dia em que Pepe foi libertado, depois de onze anos na
solitária, “conversando com os ratos e agarrado na esperança” segundo ele
mesmo. “No dia seguinte, Lucía foi embora, foi morar com o Pepe, e nunca mais
voltou”, conta María Elia Topolansky.
Desde então, vivem juntos em
uma chácara de um bairro de classe baixa, na periferia de Montevidéu. Começaram
criando flores e vendendo no mercado municipal, mas sem esquecer os ideais
políticos. Pepe se candidatou e se elegeu deputado em 1995. Em 2000, ele passou
a ser senador, e Lucía deputada. Em 2005, ela se elegeu senadora, e nesse mesmo
momento, trinta anos depois do começo da relação, vinte anos depois de
começarem a viver juntos, decidiram formalizar o matrimônio. Cinco anos antes
de Pepe assumir como presidente do Uruguai.
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Ana La Guerrillera
A melhor forma de mergulhar na
história de amor de Pepe Mujica e Lucía Topolansky, e também na história dos
Tupamaros, é mergulhar na história dela. Por isso os jornalistas e
historiadores uruguaios Nelson Caula e Alberto Silva escreveram o livro Ana, La
Guerrillera, que traz detalhes de tudo o que se contou neste tópico e muito
mais episódios sobre a criação do MLN, a vida na clandestinidade e a disputa
política que levou o Uruguai à sua mais recente ditadura.
Fonte: Rede LatinAmérica
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